A Saúde Suplementar e o DF

Há grande repercussão, hoje, sobre as iniciativas do setor da Saúde Suplementar (“Planos de Saúde”) no sentido de aumentar sua cota de afiliados (e seus lucros) no Brasil. Uma das entidades do setor chegou mesmo a organizar evento em Brasília, no mês de abril, conclamando pela criação de um “Sistema Nacional de Saúde”, aparentemente paralelo ao SUS. Antes de passar a uma discussão mais ampla, cabe a pergunta: como é que isso afetaria o setor saúde no Distrito Federal?

Vamos aos dados. Segundo a ANS, a Capital Federal tem hoje cerca de 890 mil afiliados aos planos de saúde suplementar. Comparando capitais do mesmo porte aproximado, como Fortaleza (959 mil), Belo Horizonte (1,2 milhões), Recife (632 mil), Porto Alegre (674 mil), Goiânia (490 mil) e Curitiba (996 mil), vê-se que não estamos muito distantes da média. Em termos percentuais de cobertura populacional, em que Brasília apresenta 31,1%,, temos: Fortaleza (36%), Belo Horizonte (47,3%), Recife (37,7%), Porto Alegre (45,2%), Goiânia (34,4%), Salvador (28,2%) e Curitiba (52,9%). São Paulo e Rio dominam o cenário, com 5,8 milhões (48%) e 3,1 milhões (46% ), respectivamente.

Atualmente, devido a crise econômica prolongada pela qual passa o Brasil, as empresas de saúde suplementar estão assustadas com a evasão de afiliados. Há, assim, duas questões no cenário. A primeira é a de ampliação da oferta de planos, a custa de redução de preços e de benefícios. Isso foi a proposta que o ex-ministro Ricardo de Barros apoiava – e com a qual, aparentemente, também o atual ministro está de acordo.  Mas não é prerrogativa do “governo golpista”… Dilma Rouseff bem que tentou algo semelhante, mas foi derrotada, mais uma vez, pela crise de governabilidade que marcou seu governo.

A segunda questão diz respeito ao impacto que isso traria ao SUS, seja a tal evasão de associados ou a instauração de planos “econômicos”. Provavelmente não serão efeitos de grande monta, eis que em um caso ou outro as pessoas se voltarão ou para o SUS ou continuarão a recorrer ao mesmo. Ou seja, se utilizarão dele para obter toda uma gama de cuidados que os planos de saúde não oferecem, tais como vacinas, exames preventivos, controle de endemias, acesso à Saúde da Família (onde este programa estiver presente) etc. Alternativamente, irão também ao SUS nas situações de alta gravidade e complexidade, para emergências, diálise, UTI e outros procedimentos. Nessas ocasiões, os planos de saúde, como vêm fazendo desde sempre, se verão livres de quaisquer ônus, pois o atendimento foi feito pelo SUS. Ressarcimento? Só com ações judiciais e depois de muito tempo de espera. Pobre SUS…

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Este é um assunto que deve ser tratado com seriedade e isenção, sem deixar que as amarras ou viseiras ideológicas o opacifiquem. Para tanto, selecionamos duas abordagens significativas sobre a questão.

O economista Alexandre Marinho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fala em uma “aposta” em relação a tal cenário. É como na loteria, diz ele, pois a criação dos tais planos acessíveis desenha quatro cenários possíveis: (1) A saúde dos beneficiários dos planos melhora, e a situação financeira do SUS também. (2) A saúde dos beneficiários melhora, mas a situação financeira do SUS piora. (3) A saúde dos beneficiários piora, mas a situação financeira do SUS melhora. (4) A saúde dos beneficiários piora e a situação financeira do SUS também.

Marinho diz que os cenários 2 e 3 têm baixíssimas probabilidades de ocorrência. Afinal, se a saúde dos beneficiários dos planos melhora, eles param de recorrer ao SUS, então não há razão para que as finanças do sistema público piorem. E, se a saúde dos beneficiários piora, eles correm para o SUS, então é improvável que a situação financeira dele melhore. Assim, o cenário 1 é o desejável. É exatamente aquilo que o Ministério da Saúde e os defensores dos planos populares dizem que vai acontecer: se mais gente tem planos de saúde, menos gente procura o SUS, que se desafoga. Já o cenário 4 é o pior de todos, e é aquele para o qual vários pesquisadores críticos à proposta apontam: os planos acessíveis, de cobertura reduzida e com coparticipação não vão melhorar a saúde de ninguém e o SUS vai continuar sendo acessado pelos beneficiários – e, ainda por cima, quando os problemas de saúde já estiverem agravados e exigirem média e alta complexidade, mais custosas. Ou seja, é o cenário em que tudo piora.

Marinho explica que não é possível prever matematicamente as probabilidades de que algum desses cenários ocorra. “Estamos diante de uma loteria. Essa loteria tem probabilidades desconhecidas e resultados prováveis totalmente opostos”, diz ele. Uma sociedade avessa ao risco pagaria um prêmio para não entrar nessa loteria, e deveria receber algo para entrar nela. Afinal, quanto deveríamos receber? Esta é a questão que encerra o artigo. Mas não é difícil prever que, qualquer que seja a resposta, o valor provavelmente não será pago.

Conheça o texto integralmente no link abaixo:

http://outraspalavras.net/outrasaude/2018/02/19/planos-acessiveis-uma-escolha-arriscada/

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Selecionei também nota sobre a proposta da Febraplan, sobre a criação de um “Sistema Nacional de Saúde” paralelo ao SUS, elaborada pelo Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde (GPDES), que integra o Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ. Nela, os pesquisadores Ligia Bahia, Mário Scheffer, José Sestelo, Ialê Braga, Claudia Travassos, além de Leonardo Mattos, de reconhecida competência na discussão da relação entre o público e o privado na saúde, fazem considerações sobre a atuação recente do setor privado nas políticas de saúde.

Segundo eles, a ação política das empresas, empresários e entidades patronais do setor saúde é um tema que tem sido negligenciado pelo conjunto do movimento sanitário e por grande parte de seus intelectuais. Nesse sentido, tomar conhecimento e discutir rearticulações dos agentes privados é, sim, tarefa urgente e necessária para aqueles que defendem o direito à saúde e a universalidade.

Quanto ao evento da Febraplan, que causou tanta polêmica, argumentam que a mera realização de uma iniciativa pró-mercado como esta, não pode ser tomada como balizadora da correlação de forças ou como sinal definitivo dos tempos, sob o risco de errarmos na análise, na crítica, no alvo e na ação. Assim, antes de interpretar o que de fato representa a realização do famigerado evento, acreditam que é necessário contextualizar e caracterizar a ação política do setor privado no período recente – em limites não tão precisos, da segunda metade dos anos 2000 até a atualidade.

Afinal, indagam os autores, quem é o setor privado na saúde hoje?

Sob uma concepção liberal e republicana de democracia, em um país que tem um mercado de planos de saúde que abarca aproximadamente 30% da população brasileira, é natural e legítimo que entidades empresariais discutam suas visões e propostas para o sistema de saúde. E isso acontece há décadas. Assim como o movimento sanitário também discute internamente suas propostas e busca constantemente ampliar seu poder de influência na sociedade, fortalecendo a defesa de um sistema de saúde público, gratuito e universal. O problema, definitivamente não está aí.

A questão central é que houve uma profunda inversão da hegemonia, mas ainda não se tem uma noção precisa desta dimensão. Hoje quem define rumo e prumo de políticas estruturantes para a saúde é o setor privado, ao contrário do que ocorria nos anos 1980.

Essa tendência se aprofundou a partir de 2016, mas reconhecer essas evidências não significa fazer coro ao imobilismo, ao derrotismo e à naturalização dos fatos. Ao contrário, significa que para se voltar a produzir transformações a médio e longo prazo, não é suficiente apenas a indignação ou o escracho. Faz-se necessário compreender as regras de crescimento dos mercados, seus padrões de atuação política, identificar crises, contradições e práticas corruptas para, então, dimensionarmos corretamente a correlação de forças e avaliarmos as possibilidades concretas e realistas para ação política em contraposição aos interesses privados.

Leia mais, vale a pena! https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/sistemas-de-saude/febraplan-e-disputa-real-pelo-sistema-de-saude-universal-consideracoes-sobre-atuacao-recente-do-setor-privado-nas-politicas-saude/33855/

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Um comentário deste blogueiro, para finalizar: o buraco talvez esteja em outra parte… Como diz a Constituição, a assistência à saúde é livre à inciativa privada. Mas lá está escrito também que cabe ao Poder Público exercer a prerrogativa de exercer a chamada Relevância Pública. Como diz o Art. 197, não custa nada repetir: São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. O problema, a meu ver, não é apenas o abuso “hegemônico” dos planos ou sua voracidade sobre o bolso do consumidor. Os buracos estão em outra parte, a saber: (1) é preciso melhorar de fato os serviços que o SUS presta à população; (b) o Estado tem que cumprir seu relevante e negligenciado papel de proteger a saúde dos cidadãos, não apenas oferecendo serviços mais também operando sobre a regulamentação, fiscalização e controle do Sistema, mesmo que a execução seja feita através de terceiros  ou por pessoa física ou jurídica de direito privado. É o que diz a Lei – basta respeitá-la, e não propor mudanças de afogadilho. Flavio Goulart

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