Aqui e agora x nem agora nem aqui…

O triste espetáculo das grandes filas matinais na porta das Unidades de Saúde, formadas muitas vezes durante a madrugada, presentes não só aqui no DF como em muitas partes do Brasil, ao ponto de terem se tornado “partes da paisagem” urbana para muita gente, não reflete apenas o estado de desorganização e precariedade dos nossos serviços de saúde. A questão fundamental é a de que muita gente que está ali não devia ou não precisava estar. Como assim??? O leitor crítico e incrédulo certamente me questionará, com direito não a apenas um, mas a três pontos de interrogação. 

Para falar sobre isso, utilizarei um raciocínio simples. Alguns dos que estão na fila devem, realmente, ser atendidos “aqui e agora”. São as crianças gripadas, as mulheres com cólicas ou corrimentos, as pessoas com pressão alta, os retornos agendados de consultas, as pessoas que apenas precisam um de atestado etc. Outros são para “agora”, mas não “aqui”, como nas emergências de maneira geral: fraturas, sangramentos, perda de sentidos, crises agudas de alguma coisa para a qual os recursos locais não podem dar conta. Tem também aqueles que são para “aqui”, mas que podem esperar, ou seja, “não agora”. Neste rol entram as pessoas que já são acompanhadas rotineiramente na unidade, sejam hipertensos, gestantes, neonatos, diabéticos, tuberculosos. Gente que inclusive está sendo visitada em casa pelos Agentes Comunitários de Saúde (se estes existirem, é claro…).

Existe também a turma do “não aqui e nem agora”, que merece ser contemplada também, pois isso não constitui nenhuma raridade nos serviços de saúde. É gente de variada natureza, na qual se incluem desempregados, usuários contumazes, curiosos, solitários e por aí vai. Estão ali à procura de companhia, de atenção, de um pouco de humanidade, talvez. Para estes, o “não” e o “nem” não devem ser levados ao pé da letra. Às vezes, lhes dedicar alguns minutos de conversa será o bastante.

“Alguns minutos de conversa”… É preciso aprofundar estre tema.

Voltando àquela fila costumeira. No frigir dos ovos, quem faz a seleção dos que devem ou não devem adentrar aos serviços de saúde? Por estranho que pareça, é um utensílio inventado há muitos séculos: o relógio… Assim, quem chegou até certa hora, está dentro; quem chegou depois, está fora. Simples assim. Dom Relógio não tem problemas morais, nem escrúpulos e muito menos capacidade de discernimento.

Para superar o relogismo há de fato algumas ideias no cenário. Neste aspecto, “acolhimento” é uma palavra mágica, mas que, entretanto, não faz milagres; precisa ser contextualizada.

Podemos encarar o acolhimento de pelo menos duas ou três maneiras. A primeira, mais física e concreta, diz respeito à reserva de uma salinha, uma mesa ou algo assim, para que uma moça gentil converse com cada um que ali chegue, meça a pressão, dedique alguns minutos de prosa e devolva à sala de espera (ou à fila) para que aguarde a chamada do médico. Por tal caminho, como se vê, para utilizar uma palavra já incorporada na língua portuguesa, a solução é fake.

Há também outra acepção, mais abstrata. Ela é indispensável, mas incapaz, por si só, de dar solução ao problema do “aqui/agora”. Trata-se de se oferecer uma postura acolhedora por parte de quem trabalha na unidade, em qualquer posição. Isso diz respeito ao vigilante, ao funcionário de portaria, a quem atende o telefone, às pessoas da limpeza, aos auxiliares de enfermagem, para culminar na(o) enfermeira(o) e no(a) médico(a). Sabem aquele tipo de resposta padrão: “não é comigo”, “não é aqui”, “tem, mais acabou”, “o atendimento está suspenso este mês”, “o doutor teve que sair mais cedo” e coisas assim? São exemplos típicos da carência de tal postura de acolhimento, que infelizmente constitui mais regra do que exceção nas unidades do SUS (e dos serviços privados também) por este Brasil a fora.

Uma postura de acolhimento, portanto, é essencial – mas é preciso ir além. E ir além significa, além do exercício de uma postura receptiva e humanizada, utilizar tecnologias de acolhimento que já estão disponíveis no cenário, como é o caso da classificação de risco, em uma de suas diversas variedades.

O sistema de classificação de risco foi criado para evitar postergar o atendimento a pacientes realmente graves, que precisam ser atendidos rapidamente, diferenciando-os daqueles que podem aguardar o atendimento, sem correrem riscos especiais. Em outras palavras, representa um processo dinâmico de identificação dos pacientes que necessitam de tratamento imediato, aqueles do “aqui ou não aqui, mas AGORA!” de acordo com o potencial de risco, agravos à saúde ou grau de sofrimento. Foi criado com foco nos serviços de urgência, mas seus princípios fundamentais se aplicam também à atenção primária.

A palavra “triagem” deve ser evitada, pois lembra algo mecânico e impessoal, sendo preferível a combinação das expressões “acolhimento” e “classificação de risco”. Isso engloba procedimentos realizados mediante a utilização de protocolos pré-estabelecidos, executados necessariamente por profissionais de saúde de nível superior, com treinamento específico, tendo a enfermagem um papel especial nisso. Sua utilização impede que ocorra a dispensa, devolução ou encaminhamento de pacientes antes que estes recebam atendimento ou pelo menos alguma forma de orientação. É o destronamento do Senhor Relógio, sem mais.

Os protocolos clínicos, já rotineiros nos sistemas de saúde civilizados e nos bons serviços de saúde pelo mundo a fora, são instrumentos de apoio à identificação rápida e baseada em evidências científicas, dos quais surgem os critérios de determinação da ordem em que o paciente será atendido, retirando esta prerrogativa não só dos relógios, mas também de pessoas não preparadas para tanto e também da alçada de certo “compadrio” normalmente vigente nos serviços de saúde. O resultado de sua aplicação é que os pacientes passam a ser encaminhados aos consultórios médicos locais ou de outra unidade mais especializada ou emergencial, assegurando aos mesmos, ainda, a devida garantia de ida e volta (referência e contra-referência, no jargão técnico), através do acionamento das chamadas “Centrais de Regulação”, com fluxos acordados entre as parte componentes do sistema e transparentes. Daí surge a classificação em azuis, verdes, amarelos, vermelhos – de acordo com o nível de gravidade do caso. Se a Atenção Primária à Saúde funcionar bem, de fato, com total exercício de seu poder regulador, as próprias centrais de regulação poderão perder o sentido.

Nos serviços de emergência, o lapso de tempo de atendimento entre um “azul” e um “vermelho” não deve passar de algumas poucas horas. Já na atenção primária pode chegar a alguns dias, mas jamais semanas ou meses, como ainda se vê em toda parte. Isso nos bons sistemas e serviços de saúde, claro.

Uma coisa assim certamente terá seus adversários. A clientela muitas vezes tem outras expectativas, por exemplo, a de que seja rapidamente atendida e saia dali com uma receita, um pedido de exame complementar ou uma guia de encaminhamento. Sendo assim, o “não agora” pode incomodar a muita gente e a indispor contra tal sistema.

Os médicos, que normalmente repudiam as tentativas de racionalização que parte dos gestores, por sentirem (equivocadamente) que aquela sua famosa “autonomia” está ameaçada, veem-se assim impedidos de inflar o peito e proferir aquela famosa expressão “na minha casuística é (ou não é) assim…”. Mas isso está raleando nas gerações mais novas de médicos. Os demais servidores, em geral, que pertencendo ao gênero humano, como os demais citados, são geralmente infensos e tementes a novidades, principalmente quando desconfiam que isso poderá lhes custar mais trabalho – e responsabilidades.

São obstáculos importantes, é claro, mas equacioná-los não seria nenhuma “missão impossível”, ou seja, resulta de uma boa combinação entre busca de consenso, oferta de incentivos e, se for o caso, alguma doce coerção. Assim funciona a Humanidade, desde que o Macaco desceu das árvores…

Parece ser simples a instauração de um regime de classificação de risco e de protocolização nos serviços de saúde. Em muitas cidades brasileiras isso já é rotina, para não falar dos sistemas de saúde verdadeiramente avançados no mundo, tanto públicos como privados. Os fatores culturais podem se antepor, mas há modos de contorná-los.

Mas há outro fator complicador: aquelas portas de entrada que são apenas virtuais, pois na verdade mais parecem queijos suíços (ou um canastra mal elaborado): são cheias de furos e quem de fato as comanda são as relações de compadrio exercidas por quem ali trabalha. Mais um fator a ser considerado, portanto, e interferir nele pode ter um custo simbólico e político alto. Consenso e coerção – é mais uma vez a receita. Como dizia um amigo meu: é preciso incentivar os bons e fazer com que os maus tenham ao menos um pouquinho de temor – regra raramente obedecida nos serviços públicos de maneira geral.

O papel da enfermagem nisso é essencial o e tem que ser de liderança. A carência de pessoal não deve ser desculpa para não fazer, pois a mesma pode ser apenas reflexo do modo como as coisas são (des)organizadas tradicionalmente, com a ditadura do relógio imperando. De fato, existe atualmente uma tendência mundial no sentido de que a enfermagem desempenhe um papel crítico no avanço da Atenção Primária à Saúde, de acordo com disposições da Organização Mundial da Saúde, além de outros organismos internacionais, configurando práticas já consagradas nos bons sistemas mundiais de saúde, como é o caso do Canadá, do Reino Unido, de Cuba e de outros países, nos quais novos perfis, ditos de “enfermeiros em práticas avançadas” são fundamentais na construção da APS e, em particular, na promoção da saúde, na prevenção de doenças e nos cuidados às populações mais marginalizadas.

Além disso, o pessoal da enfermagem é também essencial para atender as necessidades crescentes de saúde da população, em que pese haver lacunas importantes entre os perfis de competência dos profissionais de saúde e as necessidades na APS, em particular na transformação da educação em saúde e na capacitação no planejamento estratégico e gestão de recursos humanos para a saúde.

Em resumo: capacitação, liderança, vontade política são fatores essenciais.

Uma última palavra: a “guarda” da porta de entrada (gate keeper, como se diz no Reino Unido e nos EUA), ou seja, a capacidade de regular a passagem pela mesma, com o bom uso dos instrumentos citados acima, o que representa um atributo nobre da APS, não pode se transformar em mecanismo catraca-símile, que deixa passar uns e impede a entrada de outros… Isso já é uma manifesta preocupação internacional. Não custa nada estar precavidos.

 

 

 

 

 

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