Enquanto isso, em Patópolis…

Acabei de ler por esses dias o livro do médico patologista paulistano e professor da USP Paulo Saldiva, intitulado Vida Urbana e Saúde. Nele o autor constata que a vida nos centros urbanos, que no Brasil abrigam mais de 80% da população, não traz apenas oportunidades (inquestionáveis) para quem nelas vive, mas também muitos riscos. E a partir daí desenvolve um conceito de Cidade Saudável, através de metáforas médicas. Mas Saldiva é inteligente o bastante para não transformar suas ideias e propostas em assertivas simplórias ou reducionistas e muito menos querer tratar o corpo urbano como se fosse um corpo humano. O que ele vê é uma cidade adoecida, a ser transformada e curada. Poderíamos chamar tal cidade de disfuncional, mas me apeteceu arranjar-lhe outro apelido: Patópolis. A referência, aqui, não é Disney e seus simpáticos palmípedes, nem mesmo a FIESP, mas sim a boa e velha língua grega. Pathos, que está em patologia e em alopatia, por exemplo, e que significa doença, mais polis, cidade.

Assim, Saldiva enumera uma série de autênticas doenças das cidades, nominadas como se fizessem parte de um tratado de patologia humana. E assim ele se refere a obesidade, câncer, bronquite, calvície, insuficiência renal, diarreia, diabetes, hemorragia, arteriosclerose, edemas, impotência, Alzheimer. Gostei da ideia e resolvi acrescentar mais duas condições: psicoses e septicemia. Nas linhas seguintes vocês verão o resultado deste meu encontro (não autorizado formalmente, mas ao mesmo tempo não desautorizado…) com Paulo Saldiva. Melhor dizendo, da adaptação de suas ideias ao panorama de nossa cidade, Brasília.

Obesidade: uma cidade que já não suporta seu corpo deformado pela invasão, não gordurosa, no caso, mas humana. Suas estruturas simplesmente não conseguem dar conta de tanto peso. Poucos morando bem e muitos se aglomerando em espaços precários nas periferias ou mesmo nos prédios degradados do Centro, como é o caso de São Paulo. E de entremeio a isso muita violência, muita pobreza, muita carência de serviços público e sociais.

Calvície: a cidade está careca, desprovida que foi de sua cobertura vegetal original, além de alijada do implante tecnicamente tão viável de novos “pelos” que lhe protejam a epiderme, agora castigada pelas intempéries e não raramente apresentando feridas expostas.

Bronquite, dada pela inalação de ar poluído pelo monóxido dos carros, pelas chaminés industriais, pela poeira insistente que o estado de calvície deixa levantar.

Insuficiência renal, que é a incapacidade da cidade em realizar seu processo de excreção de resíduos sólidos ou líquidos, minerais ou orgânicos.

Diarreia, a contaminar as águas que banham o corpo do paciente, seja nos rios, lagos, nascentes e também outras áreas, que assim se tornam imprestáveis para a vida.

Diabetes, que significa o uso pouco eficiente da energia e a prática abusiva de desperdícios, que envolvem os recursos naturais e a energia, assim como o corpo humano não aproveita a glicose, quando acometido de tal condição.

Hemorragia e anemia: o contumaz desperdício do bem vital que é a água.

Arteriosclerose: a redução do fluxo nas artérias viárias, entupidas por veículos, constrangimentos físicos e obras mal planejadas ou mal executadas.

Edemas: às vezes a hemorragia é substituída ou completada pelo edema, quando a água por não ter outra saída, se empoça em ruas, construções e residências – geralmente de pessoas mais pobres.

Impotência, que significa não conseguir fazer “a coisa”, ou seja, as políticas certas.

Alzheimer, nas palavras do próprio Saldiva: “os neurônios dirigentes esquecem rapidamente dos compromissos assumidos, na certeza de que o quadro clínico exposto não irá se deteriorar substancialmente até as próximas eleições”.

Meus acréscimos…

Psicoses: um mundo permanentemente partido entre ricos e pobres; consumidores e excluídos; incluídos e ousiders, no qual irmão desconhece irmão e se mata só por causa de um celular ou de uma bike, para dizer pouco.  Lideranças políticas que fazem compromissos com seus leitores e logo se esquecem dos mesmos são também habitantes de tal mundo fracionado.

Septicemia: cidades invadidas pelos fluxos migratórios descontrolados, que vêm do interior ou mesmo de outras regiões do país, quando não de países vizinhos ou mesmo remotos. Às bactérias se combate e se mata, mas é bom lembrar, ainda mais em uma era psicótica como a atual, que como já dizia Geraldo Vandré, com gente é diferente.

***

Brasília foi, de fato, concebida, para não sofrer nada disso. Talvez a possibilidade de obesidade e de septicemia certamente tenha sido considerada na ocasião, mas a fé do poder regulatório e discriminativo dos governos, associada ao efeito bloqueador da distância, soaram aos nossos Pais da Pátria como suficientes para deter o estrago causada pelas hordas de brasileiros que certamente para aqui afluiriam, como mais tarde se confirmou. Não que os invasores fossem pragas daninhas, apenas estavam em busca de oportunidades melhores de vida, que o resto do país não lhes oferecia.

Certamente nossos problemas metabólicos, caracterizados pelos quadros de insuficiência renal, diabetes e diarreias, também não foram antecipados devidamente, Ou melhor, a ideia de que no final tudo daria certo (e se não desse certo o governo corrigiria) sempre prevaleceu. E assim, com poucas décadas de vida, a jovem cidade se viu acometida pelos mesmos problemas de suas companheiras mais idosas no país:  muito detrito acumulado; lixões intratáveis; cursos d’água poluídos; estreita flexibilidade energética; enormes áreas degradadas; desperdício de recursos; medidas de saneamento sempre correndo atrás da ocupação desordenada do solo. Mas ao mesmo tempo vítima de governos impotentes.

Nosso aparelho circulatório é alvo de ataques diversos e poderosos. Com efeito, quem não conhece as cansativas horas de trânsito estancado na Ponte JK, na subida do Colorado, na BR 040 ou na EPTG? Por todo lado temos edemas, obstruções arteriais, hemorragias. Obras viárias, quando existem, são feitas para alimentar os vorazes e patogênicos monstros de quatro rodas. Ciclovias são objeto apenas de lazer da classe média das zonas mais privilegiadas. Ir ao trabalho de bicicleta, para favorecer a saúde e a natureza, só é possível mediante uma boa dose de audácia, com viagens que muitas vezes terminam no hospital – ou mesmo no necrotério. Para complicar, as políticas recentes de redução do IPVA, que beneficiaram especialmente a classe média das periferias, ansiosa por ter seu carrinho – e há legitimidade nisso – acabam por impactar as artérias urbanas, levando a tromboses em diversos locais, intransponíveis em determinadas horas do dia. E como consequências, o desperdício de combustível, o aumento da poluição, o desencadeamento de tensões interpessoais, os impactos no orçamento das famílias, empenhadas mortalmente em pagar seus bólidos de mil cilindradas em módicas prestações que demoram até 8 anos para serem quitadas… No transporte público o panorama é dominado pela falta de expansão do metrô, pelo grevismo furioso e irresponsável, pela omissão governamental e pelo poderoso domínio das corporações sobre o aparelho locomotor da cidade, seja por parte de patrões ou de trabalhadores.

Se as artérias urbanas estão atacadas, não menos estão aquelas do corpo das pessoas. Apesar de o trânsito matar muito em Brasília, o que mata mais ainda são as doenças cardiovasculares, para as quais os fatores ligados ao trânsito, tais como as tensões do cotidiano e a poluição são fortes responsáveis.

Nossa cidade foi pensada como um eterno paraíso, onde as pessoas viveriam em total sintonia com a natureza. O cerrado, na época de sua concepção ainda era um desconhecido, ou talvez considerado um objeto supostamente inerte quanto a qualquer tipo de intervenção, dada sua rusticidade e capacidade de recuperação. Cedo a história da nova capital mostrou que não era bem assim. O projeto paisagístico teve seu momento de glória nos primeiros vinte anos, nos quais a ideia de “Estradas Parque” foi totalmente bem sucedida e chamou muita atenção. Mas logo a formiga, o fogo, a especulação imobiliária, a má educação ambiental trouxeram seu aporte de aniquilação. O resultado “clínico” não poderia ser outro: muitas áreas de calvície, de desidratação da natureza, além de, paradoxalmente, de edemas renitentes, por exemplo, debaixo das tesourinhas quando chove um pouco além da conta. Alia-se a isso o efeito da baixa governança na cidade, que tem o poder público costumeiramente paralisado por falta de recursos, clientelismo, greves ou simplesmente incapacidade administrativa e política.

Brasília representa um mundo permanentemente partido, em que ricos e pobres, consumidores e excluídos, beneficiários do status quo e outsiders, se vêm em permanente tensão. A classe alta se refugia em verdadeiros bunkers, seja nos Lagos Sul ou Norte, nos blocos aguaritados do Plano Piloto ou mesmo nos condomínios da periferia, quando esta escapa da septicemia e da obesidade crescentes. Aquele famoso sonho de Dom Bosco, que fala de “riquezas escondidas no planalto, de uma terra prometida, onde jorrará leite e mel, de riqueza inconcebível”, na verdade uma forçada de barra sem tamanho para capturar o apoio da Igreja Católica à empreitada kubstichekiana, nunca se cumpriu de verdade. Ou talvez tenha sido sonhado para outra realidade. Quem mora nos confins de Ceilândia, nas ruelas do Itapoã, nas empoeiradas ruas do Novo Gama ou nas periferias áridas de Formosa ou Valparaiso que o diga…

A sensação de vivermos em um país democrático e, principalmente, de se ter conquistado na Capital Federal a prerrogativa de um governo autônomo e eleito diretamente, poderia nos aliviar. Mas… Não custa nada recordar o que nos diz Saldiva a respeito da impotência, ou seja, não se conseguir fazer “a coisa” certa por parte dos governos locais que se repetem, eleitos diretamente ou não, além daquele esquecimento rápido que “os neurônios dirigentes” demonstram face aos compromissos assumidos, ao perceberem, como já previra Maquiavel, que a memória dos eleitores é curta e não irá se reativar substancialmente antes das próximas eleições. E o resultado é a máquina de moer reputações (muitas delas, na verdade, dotadas de frágeis pés de adobe…) em que se transformou a política no DF, com seu séquito de rorizes, arrudas, paulotávios, agnelos, pastores evangélicos, além de outras espécies da mesma família dos manjados políticos tradicionais, movidos a propina e a manipulação do eleitorado. E o que já está ruim, no caso a política urbana, consegue ficar pior.

Mas, como diria Vladimir Illich, diante de tal quadro: o que fazer? Boa e simples pergunta, talvez fácil de responder, mas difícil de executar…

Fomentar a consciência política é fundamental, aqui, ali, em toda parte. Há vários instrumentos para desenvolvê-la, mas seu caráter de mudança cultural nos indica que não ocorrerá no horizonte da atual geração. Ao que parece, está ficando mais difícil enganar o povo, mas os recentes acontecimentos na Câmara Legislativa, com deputados suspensos e processados, mostra que muitos segmentos do tal “povo” ainda se dão por satisfeitos em serem assim enganados. Como disse uma liderança política da atual legislatura, ao se defender das acusações de clientelismo, empreguismo e nepotismo: “há muito desemprego no país e um deputado precisa fazer a parte dele”. Pode?

A questão federativa brasileira é costumeira fonte de dúvidas e de questionamentos sobre sua viabilidade real. Para os mais críticos somos uma Federação de desiguais, na qual a governabilidade estará sempre ameaçada. Para outros, mais mordazes, o que se criou no Brasil e se cristalizou com a Constituição de 1988, representa uma autêntica jabuticaba, uma excentricidade ou algo assim, uma daquelas coisas que só existem por aqui. Seja como for, é em tal geleia que estamos imersos… E podemos dizer que somos até privilegiados, eis que o aqui onipresente Governo Federal paga as contas de nossa polícia, de nossos serviços de saúde e de outras tantas coisas mais. E mesmo com salários de servidores superiores à média brasileira, nem assim o Governo do DF consegue desempenhar bom papel em matéria de políticas públicas.

E sobre tudo isso vem a cereja, ou melhor, a jabuticaba das jabuticabas: somos um Estado, e não um município! Em princípio, isso poderia ser irrelevante, uma mera questão de nomenclatura. Mas politicamente, não é bem assim. Nosso “governador” não faz parte do fórum político – mais prestigiado – dos Prefeitos de Capitais. Ao contrário, no conjunto dos verdadeiros governadores de Estados, acaba sendo visto como uma excrescência, além do mais já suficientemente contemplado pelas transferências de dinheiro federal.

Mas afinal, que “estado” é este que não tem municípios verdadeiros? Aqui ronda o perigo: volta e meia surgem no cenário propostas de transformar as atuais “cidades” (anteriormente “satélites”) em verdadeiros municípios, com as respectivas prefeituras, câmaras de vereadores, cargos em comissão, palácios municipais e tudo mais que lhes é de direito. Convenhamos: o que já está ruim, pode ficar pior…

Quem sabe a formação de um Estado verdadeiro, incorporando o Entorno do DF e talvez algumas das satélites pudesse representar um alívio político e financeiro para o DF. Mas haveria sempre o risco, nas condições de temperatura e pressão habituais do Brasil, em se criar mais um problema, ou, pelo menos, de se transferir o problema para outro lugar mais adiante.

Analisar a situação política do DF deve envolver a atuação do Poder Legislativo que nos foi oferecido pela redemocratização do país. Eu preferiria dizer que fomos alvo de uma ilusão legislativa… O que se vê ali é o consumo maciço de dinheiro público para satisfazer necessidades grupais e corporativas, com evangélicos, sindicalistas, empresários de baixo clero, além de oportunistas diversos, à frente de tal “negócio”. Churchill já disse tudo sobre isso, ao ponderar sobre a o paradoxo da fragilidade e ao mesmo tempo da necessidade da Democracia, mas certamente há diferentes maneiras de se encarar tal opção. A Câmara Legislativa que aí está, se não for radicalmente renovada, só poderá produzir “mais do mesmo”. Isso nos conduz de volta ao primeiro item dessa série: consciência política… E não menos, mas sim Mais Democracia. É realmente complicado chegar a tal patamar, mas só poderia ser por tal caminho.

É claro que para resolver nossos problemas urbanos precisaríamos ter, como pressuposto, a existência de um pais mais justo e equilibrado, mas estamos muito longe disso… A lição da realidade é que Brasília não resolverá seus problemas sozinha, neste nação de desiguais, onde impera o espírito da competição entre os entes federativos, não a colaboração. A questão da política de saúde, entre outras, na vasta área do Entorno, historicamente mal resolvida, é bem um exemplo dos grandes dilemas que nossa cidade enfrenta e que não resolverá isoladamente. As possíveis soluções não apontam para ações do tipo trumpiano “nós primeiro”, mas pertencentes a um conjunto de mudanças que devem ser estruturais e de caráter nacional. Boas políticas, melhores políticos, mais recursos disponíveis, espírito coletivo de solidariedade e, nunca é demais insistir, vergonha na cara.

Voltemos a Patópolis… Afinal, o que é preciso fazer para transformá-la em um Higiópolis? Não exatamente numa Higienópolis, onde soem residir aquelas pessoas diferenciadas, sabem? Mas também temos de ter cuidado em resistir e procurar superar certas políticas rasteiras, que nos tem feito até agora de verdadeiros patos, no sentido avícola, Disney-fiespiano…

Para encerrar, deve-se admitir que nada pertence a um horizonte de tempo próximo. Tudo talvez se concretize apenas para gerações futuras. Não tenhamos ilusões. Há uma cultura clientelista e de “o meu pirão primeiro” que vem desde os tempos da fundação da cidade, já com um ranço de meio século, portanto, que não é fácil de ser superada. É uma “tara” disseminada, histórica, que veio nos baús de mudança nos anos 60, não sendo susceptível a decretos, imune também a meras boas intenções de transformação…

 

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