UPAs: fazem paredes, mas falta alicerce…

Leio na mídia (link abaixo) que ocorre neste país rico que é o Brasil um desperdício de nada menos que R$ 268 milhões, dinheiro investido pelo Governo Federal na construção de 145 UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), que embora já construídas permanecem fechadas, algumas desde 2012. Alguns dados do descalabro: em São Paulo 22 UPAs fechadas; Bahia e Pará, 13 prédios cada um; Paraná, 11, Ceará; 10, Rio Grande do Sul e Pernambuco, 9 cada. E vai por aí a fora. O DF, desta vez pelo menos, não está citado neste ranking negativo. Falta de planejamento, promessas eleitorais e baixo orçamento dos municípios, são algumas das razões (ou desculpas) para justificar esta (mais uma!) vergonha nacional. Mas não é só isso…

Informa a SES-DF que uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h) “é o estabelecimento de saúde de complexidade intermediária entre as Unidades Básicas de Saúde/Saúde da Família e a Rede Hospitalar, compondo uma rede organizada de atenção às urgências. Deve prestar o primeiro atendimento aos casos emergenciais, estabilizando os pacientes e realizando a investigação diagnóstica inicial, definindo, em todos os casos, a necessidade ou não, de encaminhamento a serviços hospitalares de maior complexidade”.  Melhor do que isso só se for verdade…

Em nossa cidade tais unidades são em número de seis: Ceilândia, Núcleo Bandeirante, Recanto das Emas, Samambaia, São Sebastião e Sobradinho. Não obtive informações atualizadas sobre obras paradas, pero que las hay… Isso é pouco ou muito? A pergunta certa não seria esta, mas sim se a estrutura do sistema de saúde no DF está adequada ou não?

Primeira questão: uma UPA, estabelecimento com complexidade intermediária entre as Unidades Básicas e os hospitais, não deve ser a porta de entrada mais utilizada no sistema de saúde. Aqui no DF, com os fluxos de atendimento ainda muito desorganizados, não só elas constituem uma porta de entrada habitual, como rivalizam com os serviços de emergenciais, além das próprias unidades básicas e de Saúde da Família. Assim, em uma fila de UPA, ou de Pronto Socorro (frequentes, diga-se de passagem), o que menos se tem são os tais “casos emergenciais” e o que menos se faz é a tal “investigação diagnóstica inicial” ou a estabilização dos mesmos para definir a necessidade (ou não) de encaminhamento a serviços hospitalares ou de maior complexidade.

Assim, em tal oceano de desorganização é muito difícil que a “ilha” chamada UPA consiga atender os fundamentos conceituais sob os quais foi constituída.

Para não enumerar um número infinito de problemas, a outra grande questão aqui no DF é dada pelo cortejo da escassez de recursos associada a modalidades de gestão bastante capengas e ultrapassadas. Com isso, faltam médicos, faltam medicamentos e equipamentos, obras ficam inacabadas etc etc. Mas, curiosamente, tudo isso acontece numa unidade da federação que não consegue gastar todo o dinheiro federal do SUS a que tem direito legal e onde o número de médicos per capita é simplesmente o maior do Brasil.

Mas tem mais… A matéria em foco fala também falta de planejamento, promessas eleitorais descumpridas e baixo orçamento. Mas não se pode esquecer de alguns outros fatores, como por exemplo, as fortes pressões do movimento sindical para que tudo continue como está (menos os salários, claro); a atuação pífia e clientelista da Câmara Legislativa, que faz de suas tarefas um mero jogo de “toma lá dá cá” ou de “é dando que se recebe”; a ausência de uma comunidade técnica e científica, capitaneada pelas universidades, que se preocupe de fato com os problemas da saúde na cidade e discuta propostas concretas para tanto; a pouca intensidade do “capital social” local, expressão de uma sociedade acostumada e beneficiária de práticas de clientelismo e manipulação por parte dos agentes políticos. Penso que cabe acrescentar ainda: a persistência de certa cultura de desprezo pelo que é bem público, que afeta servidores e usuários dos serviços. Pergunte-se, por exemplo, aos servidores, onde eles costumam levar seus familiares quando os mesmos adoecem… Seria naquelas unidades onde prestam serviços?

O fundamental é o seguinte: serviços de saúde se organizam pela base, pela porta de entrada. O que se vê por aqui – e no país como um todo – é a tentativa vã, se não for muitas vezes mal intencionada, de querer construir paredes e telhado onde não há alicerces. Aí a casa cai…

Uma UPA, enfim, não pode ser a base do sistema de saúde, mas realmente um nível intermediário, o qual, sem o apoio da base, não funciona. Mas não é preciso inventar a roda, embora tal desejo, em momento eleitoral como o presente, mostre enorme presença na cabeça dos políticos. Vejamos o que dizem pessoas que realmente entendem do assunto, como o comitê de especialistas recentemente reunido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO):

<<A APS que queremos no SUS incorpora a essência dos princípios de Alma Ata: a atenção essencial, base de um sistema público de saúde de acesso universal com financiamento e prestação públicos; inseparável do desenvolvimento econômico e social e do enfrentamento dos determinantes sociais para a promoção da saúde, fortalecendo a participação social. A APS que queremos para a garantia do direito universal de acesso a serviços de saúde no SUS estabelece primeiro contato de fácil acesso resolutivo e de qualidade, que garante atenção oportuna, integral, integrada e contínua com orientação familiar e comunitária. Seu modelo assistencial enfatiza a promoção da saúde, garante o equilíbrio entre cuidado individual e coletivo respondendo a necessidades individuais e populacionais. Fortalece os espaços democráticos de controle social e promove a participação ativa para a ação comunitária potente no território para mediação de ações intersetoriais para a promoção da saúde. Realiza-se por equipes multidisciplinares com profissionais de saúde com formação adequada para a APS integral. Sustenta-se em financiamento suficiente e equitativo e na gestão pública democrática, participativa e transparente. >>

Eles sustentam ainda que a Atenção Primária à Saúde, como estratégia reconhecida mundial de organizar a porta de entrada do sistema de saúde, deve ser consolidada nas cidades brasileiras, como instância acessível e resolutiva para o atendimento em redes regionalizadas de saúde, com redução das barreiras de acessibilidade organizacionais, geográficas e culturais, garantindo o respeito às identidades de gênero, étnicas e valores locais, além de , fundamentalmente, garantir o acesso à atenção integral por meio da coordenação do cuidado pela APS nas redes regionalizadas de atenção à saúde.

Não é simples, é certo. Depende, acima de tudo, de decisão política, este ingrediente tão mal distribuído ou mal utilizado no Brasil…

Enquanto isso, um cavalo pasta sossegadamente no interior de uma obra de UPA abandonada na cidade de Muriaé-MG (foto UOL).

Veja também…

https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2018/08/23/governo-federal-gasta-r-270-milhoes-em-145-upas-prontas-e-fechadas.htm

http://rededepesquisaaps.org.br/2018/07/06/contribuicao-da-rede-de-pesquisa-apsabrasco-para-a-formulacao-de-uma-agenda-politica-estrategica-para-a-aps-no-sus/

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