Quando assumi o posto de Secretário Municipal de Saúde em Uberlândia, no início da década passada, fiquei abismado com a existência de quase 300 pessoas empregadas na Prefeitura, é bem verdade com recursos do governo federal, para realizarem o “controle da dengue”, que àquela altura ameaçava não só a cidade como muitos outras partes do país. A dengue era e continua sendo uma doença potencialmente grave (mas nem sempre…) e seu controle depende de muito mais ações do que catar latinhas nos quintais e lotes vagos e visitar as casas para constatar a existência de vasos com pratinhos cheios d’água. Não se trata de uma ironia, mas era basicamente isso o que aqueles laboriosos trabalhadores faziam. Na ocasião me perguntava se para doenças muito mais graves, como a hipertensão arterial, a diabetes, as doenças derivadas do stress e do tabaco, além de outras, se haveria, por parte do Poder Público, uma ação semelhante, ou seja, mandar os agentes da saúde nas próprias casas dos pacientes para ver se estavam bem, se tomavam os remédios, se faziam dieta e outras medidas recomendadas. Na dengue algo parecido era feito…
Constato hoje, 17 de agosto de 2018, que minhas preocupações tinham e continuam tendo fundamento. Leio no site Outra Saúde (recomendo! – ver link abaixo) que a médica e pesquisadora da Fiocruz e da UFPE, Lia Giraldo, membro do Grupo de Trabalho Saúde e Ambiente da Abrasco, coloca o dedo na ferida, ao dizer que o problema deve ser realmente revirado do avesso: o maior inimigo não é o mosquito! Diz ela: “Inspecionar as casas, mandar as pessoas olharem seus vasos de planta e ficarem de olho nos vizinhos, passar carro com fumacê, perseguir cada gota de água parada. Há 30 anos o Brasil quer controlar a multiplicação do Aedes aegypti, e há 30 anos falha. Não só a epidemia de dengue volta a cada ano como outras doenças passam a ameaçar: zika e chikungunya se tornaram grandes problemas, e a febre amarela volta a assustar em termos nacionais, inclusive com o espectro da sua versão urbana pairando sobre alguns municípios”.
E prossegue: “… estão em articulação três ecologias: a do vírus, a do mosquito e a humana. Ocorre que, passados 30 anos dessa reemergência da dengue, o que se vê é a força das epidemias aumentando sistematicamente, inclusive com efeitos adversos e agravamentos clínicos que não se viam no passado. A força da densidade da exposição vetorial aumentou em todo o país – ou seja, a despeito do aumento no uso de venenos, a epidemia também aumentou”.
E arremata: “É um programa perdulário, ineficaz e perigoso”
Na ocasião, mesmo visto com olhos de suspeita por parte de meus subordinados na SMS de Uberlândia, e mesmo por gente graúda de Brasília, reduzi drasticamente o plantel da dengue. A Câmara de Vereadores quase me crucificou, pois muitos dos que ali estavam eram protegidos dos políticos, de todos os partidos, alias. Ninguém morreu por causa disso. Aliás, os indicadores da epidemia não se alteraram.
Produzi, então um texto sobre o assunto, que publiquei nos jornais locais e coloquei pra circular na internet. Sem maiores repercussões, diga-se de passagem… Mas acho que ele, uma década e meia depois, continua válido, e segue abaixo.
Mas antes disso, para ler na íntegra a entrevista da Professora Lia Giranldo, acesse: https://outraspalavras.net/outrasaude/2018/08/16/2990/
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Meu texto: TODAS AS FEBRES, A FEBRE...
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades… Esta é a primeira estrofe de um primoroso soneto de Luís de Camões, no qual o poeta lamenta a passagem do tempo e as inúmeras mudanças que esta provoca na alma, nos sentimentos, na natureza, na vida enfim. O último verso, pungente, ressalta a mudança até na maneira do mudar das coisas. A criação do poeta não deixa de ser bastante adequada, também, para despertar algumas reflexões sobre os desafios representados pela (falta) de controle das doenças endêmicas em nosso país, muito particularmente daquela que ronda atualmente Uberlândia, além de muitas outras cidades do Brasil: a dengue. Com efeito, mudaram-se os tempos e estas mudanças tiveram imensas repercussões na forma de organização dos serviços de saúde, no acesso às tecnologias, na formação e no exercício das «vontades» dos políticos, dos técnicos e dos usuários, nas formas de organização social e assim por diante.
O senso-comum já tem, naturalmente, explicações para o fenômeno da chegada da dengue e estas chegam a ser enunciadas com tanta segurança que passam facilmente ao status de teorias firmadas. Assim, duas ordens de argumentos se impuseram. Primeiro: a doença resulta do fracasso da atuação dos órgãos de saúde, acusados de serem cada vez menos eficazes no controle das grandes endemias, como o faziam no início do século. Segundo: a dengue e outras doenças decorrem da crônica falta de verbas e do sucateamento do setor saúde, culpando-se, neste caso, os «governos», não importa de que natureza: ditatoriais, militares, civis, populistas, neo-liberais. Da primeira vertente resultam os discursos de várias naturezas, de ideológicos a catastrofistas, que apontam para a derrocada irreversível do sistema de saúde. Da segunda emanam as propostas de afastamento do Estado da saúde e o recurso aos mecanismos de mercado e da «sagrada» opção individual
Porém, ambos os entendimentos parecem incapazes de captar e explicar a dinâmica das mudanças que ocorrem permanentemente na vida social e de seus reflexos no estado de saúde geral. Assim, por exemplo, já não se fazem cidadãos como antigamente… Ou por outra, eles são feitos de outro estofo. Melhor? Talvez, mas pelo menos mais complexo. Os grandes feitos da antiga saúde pública cruziana foram obtidos através de medidas fortemente autoritárias e intervencionistas sobre a vida social. Atualmente, entretanto, já não se entra nas residências e nos ambientes de trabalho, já não se intervêm no espaço urbano como nos velhos tempos, que alguns ainda querem reviver, saudosos… Melhor para a população, sem dúvida. Entre a dengue e o respeito pelo modo de vida das pessoas, por certo, há uma escolha a fazer. Eticamente, a velha Saúde Pública, em que pesem suas realizações, já teve sua falência decretada pela História, faz tempo. A Revolta da Vacina já prenunciava seu requiem.
Outro aspecto a ser considerado, é o impacto das tecnologias sobre o controle da dengue e de outras doenças veiculadas por insetos. Aqui, a questão pode ser considerada sob dois ângulos. Primeiro, naquilo que se refere às tecnologias que possuem impacto direto sobre o controle da doença, viabilizando-o de forma imediata. Tal é o caso das vacinas, dos inseticidas e larvicidas e das técnicas de intervenção ambiental em geral. Neste caso, o objetivo é obter o controle e os eventuais fracasso ou mesmo a geração de efeitos indesejados, como por exemplo a resistência aos inseticidas, é jogada na conta dos infortúnios inesperados. Há uma segunda questão, entretanto, que se refere às tecnologias desenvolvidas para outras finalidades e que podem afetar o curso natural da doença. No caso da dengue, que penetra pelas cidades adentro, pode-se prever o imenso impacto representado pelos artefatos de plástico, borracha e seus derivados, desconhecidos no começo do século passado e dotados de capacidade de reter água e não se degradar, a não ser em prazo muito longo. Com efeito, os peridomicílios, os terrenos baldios e os lixões acumulados de vasilhames impermeáveis e não degradáveis, das mais diversas naturezas, os imensos depósitos de pneus usados na periferia das cidades e mesmo dentro de suas áreas urbanas, os ferros velhos e outros depósitos de sucata a ser reciclada, são aspectos das paisagens urbanas totalmente desconhecidos no passado. Sua interferência no controle de doenças como a dengue, a malária, a febre amarela e outras, que dependem da água parada para se propagar, é bastante óbvia.
Mudou a noção de cidadania, mudaram os modelos, mudou a oferta de tecnologia. Não custa lembrar: mudou também – e muito – a sociedade. Contemporaneamente, até como conseqüência da Era dos Direitos de que nos fala Norberto Bobbio, mas também como resultado da comunicação de massa, da globalização e da planetarização da política, não há como negar uma tendência universal de organização de interesses, localistas ou não – a grass roots democracy da sociologia anglo-saxônica. Bem ou mal, a intervenção sobre os espaços urbanos e de moradia, necessita cada vez mais da legitimação das lideranças e organizações locais, pelo menos em sociedades mais complexas. Evidentemente, esta é uma nova realidade, quase totalmente desconhecida até em anos muito recentes. Ocorre também algo que o passado também não conhecia: a estranha «patologia» da vida social dos grandes centros urbanos, representada pela entrada em cena do crime organizado como ator social, provendo a sociedade de benefícios sobre os quais o Estado se omite. A experiência registrada hoje nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, conforme noticiado na imprensa, é de submissão das equipes de controle de mosquitos aos «comandos» do tráfico de drogas, que fornecem salvo-condutos para circulação destes agentes e de outros do sistema de saúde, para não dizer da polícia, do fisco, etc. Fica fora de cogitação, por exemplo, o mapeamento das áreas afetadas, instrumento indispensável para a programação das medidas de controle.
O Estado brasileiro certamente já não é o mesmo: malgrado o atrelamento que ainda apresenta a interesses não estritamente coletivos, é cada vez mais descentralizado, pluralista, regulador e federativo. Estes novos atributos afetam diretamente não só as ações de que o poder público é capaz mas também as expectativas que a sociedade tem do mesmo. A implantação do Sistema Único de Saúde trouxe ingredientes novos à ação do Estado, traduzidos pela emergência de novos poderes, seja dos estados e dos municípios, seja da sociedade organizada nos conselhos de saúde; pela introdução da noção de solidariedade social; pelo conjunto de atributos enfeixados no princípio constitucional da relevância pública da saúde, etc. A noção de direito à saúde, antes talvez impensável face a determinadas situações de risco à saúde (ex. epidemias), tratadas à maneira cruziana, campanhista e militarizada, adquire nos dias atuais novas feições, rejeitando na ação estatal o caráter de concessão com que era vista anteriormente. Ou em uma afirmativa simples: não ter a dengue também passou a ser um direito.
Concluindo, retomo as questões anteriormente colocadas: a Saúde Pública faliu? Os governos não fizeram o que deviam? O certo é que o problema da dengue, bem como das outras doenças endêmicas não se traduz apenas em uma questão de mosquitos ou de um ambiente natural inadequadamente utilizado e maltratado pelo homem. Os governos, embora tenham papel importante e intransferível no controle da doença, pouco podem fazer face a alguns problemas culturais, tecnológicos e políticos. A polarização acima colocada encobre a verdade; ater-se a ela leva aos riscos de «culpabilizar a vítima» ou, quem sabe, prender-se nas malhas de um discurso ideológico, sem maiores consequências. É preciso avançar um pouco além do senso comum para se ter respostas adequadas para mais esta febre que nos assola.
