Centros de Saúde tradicionais x Unidades de Saúde da Família: é tudo a mesma coisa?

Em um dos últimos posts aqui no blog confesso ter cometido algumas ironias relativas a “novidades” previsíveis no cenário eleitoral do DF, que tem primado até agora por absoluta carência de propostas consequentes na área da saúde. Uma de tais “novidades” seria a volta dos centros de saúde da era Frejat, que até hoje muitos celebram por aqui (tanto o homem como suas realizações). Discordâncias – estas sim, totalmente previsíveis – já surgiram e na verdade alimentam uma antiga polêmica que tenho com alguns amigos, ou seja, se o modelo tradicional de atenção básica praticada no Brasil equivale ao Saúde da Família contemporâneo. Eles acham que sim, que é tudo a mesma coisa. Eu acho que não. É claro que estou falando de SF nos moldes preconizados na Política Nacional de Atenção Básica (embora a mesma tenha recebido alguns remendos pouco recomendáveis recentemente) e não em alguns simulacros que andam, por aí, os famosos “programas precários para pobre e para ‘por placa’”, para ficarmos só na sua qualificação com a letra “P”. Isso interessa diretamente à nossa cidade, vejamos por que…

Com todo respeito pelos meus interlocutores na questão, tal postura revela, na verdade, um profundo desconhecimento de causa, para início de conversa.

Vejamos algumas das características dos sistemas de saúde regionalizados e hierarquizados, inspirados diretamente no modelo inglês (antigo), que inspirou tanto Bandeira de Mello, o criador do sistema de saúde de Brasília, como Jofran Frejat, alguns anos depois. Nenhum desdouro para os dois. Acredito que, cada um em sua época, estavam ambos corretos. Mas as coisas evoluíram, como veremos.

A atenção básica (AB ou APS – atenção primária à saúde, nos termos da literatura internacional) se caracteriza (usarei os tempos verbais no presente, pois tudo isso ainda é crença e prática difundida por aí), em sua vertente tradicional, por oferecer pacotes básicos e geralmente simplificados de intervenções sanitárias e medicamentos essenciais, além de algumas outras medidas, destinados a populações pobres, rurais (no início) e depois urbanas.

De modo geral, a atenção se concentra em mães e crianças, e no máximo outros grupos de risco (portadores de tuberculose e hanseníase, por exemplo), sempre com foco em determinadas doenças, especialmente nas condições agudas e infecciosas. Busca-se, sim, a melhoria do saneamento e da educação em saúde, porém restritas ao nível local, no nível local

As tecnologias utilizadas são de maneira geral simples, além de praticadas por agentes comunitários de saúde, não totalmente profissionalizados ou visitadores sanitários, na tradição da Fundação SESP, que muitos acreditam representar o supra sumo da atenção primária no Brasil.  Em tais sistemas, sem dúvida, a APS representa uma antítese do hospital, mas sua posição periférica e marginal não lhe permite avançar no sentido de se transformar em instância de coordenação de uma rede.

A participação da sociedade pode estar presente, mas como fenômeno de mobilização puramente local, com eventual formação de comitês locais de gestão.

Em tal modelo tradicional, ainda, tanto o financiamento governamental como a prestação de serviços possuem gestão centralizada, mesmo quando praticados na esfera municipal. São sistemas marginais, no sentido econômico da palavra, nos quais se pratica a gestão da escassez e se tem, quase sempre, a necessidade de ajuda e cooperação técnica de outro níveis de governo. Mas não deixa de ser algo de baixo custo, requerendo investimentos apenas modestos.

E do outro lado, ou seja, como resultante das mudanças conceituais e tecnológicas pelas quais a APS passou os últimos anos – se não décadas – o que temos?

Em primeiro lugar, ela está inserida dentro de processos de transformação e regulação do sistema de atenção à saúde, buscando ampliar e universalizar o acesso e a própria proteção social em saúde. Tratam-se de sistemas voltados para toda a sociedade, dentro de propostas nacionais de políticas, que buscam dar respostas às necessidades e expectativas das pessoas em relação a um conjunto amplo de riscos e doenças.

O foco restrito em programas de saneamento, educação, imunização dá lugar à promoção de comportamentos e estilos de vida saudáveis, além de estratégia de atenuação dos danos sociais e ambientais sobre a saúde. O trabalho isolado do médico ou da enfermagem é substituído pelo trabalho em equipe, de forma a ampliar e facilitar o acesso e o uso apropriado de tecnologias e medicamentos. Constituem, assim, sistemas pluralísticos de atenção à saúde operando em contextos ampliados, não apenas locais.

Em termos de participação, esta é bem mais institucionalizada, com a presença obrigatória da sociedade civil no diálogo político e nos mecanismos de prestação de contas.

Sua base é territorial, como também na outra vertente. Mas aqui a preocupação é de preencher de forma total o território e não apenas criar postos descentralizados. porém esparsos, de atendimento.

No quesito dos recursos, seu crescimento tende a ser de expansão, não se tratando realmente de uma solução barata, mas que requer investimentos consideráveis, porém gerando maior valor para o dinheiro investido que todas as outras alternativas Seu foco é a cobertura cada vez mais universalizada, em contextos de solidariedade e aprendizagem conjunta. A APS representa, em tais sistemas, uma instância que é capaz de coordenar respostas amplas em todos os níveis de atenção.

É claro que isso tudo tem valor argumentativo. A realidade, inclusive de nossa cidade, infelizmente mostra outras facetas da questão, principalmente derivadas da implementação pouco atenta aos princípios e diretrizes, seja da PNAB ou da própria OMS. Mas mesmo neste caso, que afeta as políticas públicas de maneira geral, e não apenas a APS, continuo pensando que a soluções que buscam a APS renovada ainda são melhores do que algumas outras, plenas de saudosismo, mas que não são reconhecidas internacionalmente pelas suas evidências reais.

Aproveitando o ensejo, não custa nada lembrar de algo que escreveu, sobre a APS renovada, a médica norte-americana Barbara Starfield, que se notabilizou como grande formuladora teórica da APS, embora calcada com uma profunda visão prática (ver link ao final). Para ela, em síntese, são necessários novos modelos para o provimento de serviços, baseados em novos conhecimentos, já que não existem “causas” únicas para doenças, pois todas as elas representam apenas contribuições ou influências e que nem tudo que os serviços de saúde oferecem são coisas benéficas ou justificáveis; algumas provocam malefícios.

Assim, entre as principais estratégias para a abordagem dos novos desafios está a APS, na qual deve existir integração mediante a formação de equipes e a compatibilização dos sistemas de informação, seja dentro das equipes de atenção primária, entre a atenção primária e a atenção especializada, bem como entre atenção primária e outros setores da sociedade.

São estratégias que exigem planejamento que ultrapassa o nível local, para alocação apropriada de recursos, de forma a: contemplar as necessidades de saúde da população; garantir que os recursos sejam distribuídos equitativamente, de acordo com as necessidades relativas de diferentes subgrupos populacionais; prover acesso, em termos de transporte e comunicação, aos centros regionais de atenção especializada, além de monitorar as mudanças em saúde constantemente, para garantir que as intervenções sejam efetivas e não provoquem qualquer prejuízo imprevisto. Além disso, como estratégia populacional, a APS requer que os governos assumam compromissos para o desenvolvimento de um conjunto de ações básicas orientadas para a população, inserido no contexto de outros níveis e tipos de ações.

Assim conceitualmente, para Starfield, a APS representa: (1) a provisão do primeiro contato; da assistência continuada centrada na pessoa, de forma a satisfazer suas necessidades relativas à saúde, referindo somente aqueles casos muito incomuns para que o nível de competência seja mantido; e a coordenação dos cuidados quando as pessoas recebem assistência em outros níveis de atenção; (2) a assistência primária aplicada em nível direto da população.

Ela ainda argumenta algo muito importante: os países cujos sistemas de saúde são orientados pela APS apresentam também um menor número de crianças com baixo peso ao nascer; a mortalidade Infantil mais baixa, especialmente a pós neonatal; um menor número de anos de vida perdidos por suicídio; um menor número de anos de vida perdidos, atribuídos a todas as causas com exceção de causas externas, e também maior expectativa de vida em todas as idades com exceção da maior ou igual a 80 anos.

 

Saiba mais…

  1. https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/08/29/atencao-candidatos-o-que-fazer-para-melhorar-a-saude/
  2. https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&view=download&category_slug=servicos-saude-095&alias=1402-as-redes-atencao-a-saude-2a-edicao-2&Itemid=965
  3. http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf
  4. STARFIELD, B., 2001. Atención primária: Equilíbrio entre necessidades de salud, servicios y tecnología. Barcelona: Masson.
  5. World Health Organization (2008d)

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