Conserto em Ré…

 Antes que algum leitor reclame que eu troquei “concerto” por ”conserto”, esclareço: estou falando é daquilo que o Houaiss considera como “restauração ou recomposição de coisa rasgada, descolada, partida, deteriorada” e não de um tipo de peça musical. E aproveitando, “ré”, aqui, não é a nota que vem depois do dó e antes mi, mas sim a marcha para trás. Eis a combinação de palavras que me veio à mente quando li que a candidata a governadora do DF, Fátima Sousa, defendeu, em reunião sindical, simplesmente a estatização de todas as áreas da saúde no DF. Está em matéria do Boletim do SindSaúde (ver link ao final), instituição na qual tal discurso deve causar grande agrado.  Disse ela: “No meu governo, eu não vou deixar que nenhum serviço seja privatizado. Quem lhes diz isso é uma filha do SUS”. A candidata disse também que a saúde mental e redução da jornada de trabalho dos servidores será prioridade em sua gestão. E deixou a promessa: “Vamos também trabalhar pelo aumento salarial para que tenham condições de vida melhor e diminuição da carga horária de trabalho”. Música para os ouvidos presentes… Enfermeira e acadêmica da área de saúde que é, Fátima manifesta posições no mínimo anacrônicas ou irrealizáveis.

Com efeito, esta discussão da estatização nos remete a décadas atrás: à Oitava Conferência Nacional de Saúde de 1986, para não irmos muito longe. Na ocasião, esta foi uma polêmica forte, que acabou sendo vencida pelos que defendiam um sistema misto público e privado. Não que os “agentes do mal”, ou seja, da privatização da saúde, fossem ali maioria – não eram, a conferência foi dominada pela esquerda sanitária. O que aconteceu foi apenas o resultado do prevalecimento de argumentos de bom senso, de gente que conhecia a história da saúde no Brasil e que se recusava, legitimamente, em simplesmente “estatizar” tudo. Se valia naquela época, creio que vale mais ainda hoje.

Quando a candidata fala em “não privatizar (na verdade não consta da matéria a palavra “estatizar”), todo mundo que conhece a situação de saúde no DF sabe qual é o ponto focal em questão: a atuação do ICIPE, um Organização Social na gestão do Hospital da Criança de Brasília. De quebra, também, a recente transformação do Hospital de Base em um instituto de gestão flexível, baseado na lógica da eficiência. Na visão de certa esquerda atual, tudo isso é “privatização”, sem atenuações. A própria Fátima Sousa já tinha se posicionado quanto a isso em artigos e outras manifestações antes mesmo de sua campanha para governadora.

Por que considero tal discussão, pelo menos posta assim em termos de “preto no branco”, anacrônica?  

Em primeiro lugar porque ela está superada em toda parte. Os principais sistemas de saúde do mundo são mistos. As exceções de Cuba e Coreia do Norte não contam. Mesmo na China é outra história. A questão essencial é: o Estado consegue reger a orquestra de prestadores públicos e privados? No Brasil já sabemos que não… Mas mesmo aqui a opção estatizante não seria adequada, dada a fragilidade e a submissão a jogos de interesses, principalmente corporativos, da gestão estatal.

Além do mais é preciso analisar detalhadamente as experiências de associação com organismos sociais e sua eficiência, e não apenas taxá-las disso ou daquilo (privatização, por exemplo), e formular raciocínios ou tomar decisões baseadas puramente na ideologia, não na realidade.

As Organizações Sociais na saúde vieram para ficar, com um saldo positivo até aqui. Elas não são, todavia, soluções mágicas, com sucesso garantido. Há que se ver com profundidade as situações para sua aplicação, sem jogar todas as evidências em uma vala comum. É claro que há instituições destituídas de credibilidade para administrar bens públicos, cuja atuação pode ser desastrosa na gestão dos serviços de saúde. Para tanto é que o Poder Público, seja na União, estados ou municípios, ao porventura adotar tal modelo, deve aprimorar sua capacidade de planejar, contratar, monitorar, controlar e avaliar a gestão das organizações sociais. E cabe aos candidatos a postos de mando não afirmar peremptoriamente, ainda mais frente a plateias corporativistas que naturalmente têm enorme receio de algo assim, que não aceitam este tipo de solução.

No Brasil, insiste-se em chamar de “público” (e defendê-lo com ferocidade) um sistema em que a maior parte dos gastos vem dos cofres privados e familiares, além de ser uma instância dentro da qual o Estado financia benesses para parcelas já bem aquinhoadas da população. Assim, a discussão sobre o que é (ou deveria ser) público ou privado no Brasil passa por uma tremenda filtragem ideológica, acho eu. A sanha militante face ao que chamam de “privatização”, como, por exemplo, a gestão de serviços de saúde por Organizações Sociais, sabidamente mais eficaz do que a estatal, é digna de uma Ku-Klux-Kan estatista. E como o rótulo de “privado” é maldito, passa-se a incluir nele, indistintamente, tudo o que a ideologia refuga, desde as empresas lucrativas (e às vezes picaretas) de planos de saúde até as organizações sociais honestas e comprometidas de fato com o bem público, bem como as entidades públicas de direito privado, que têm prestado bons serviços à causa da saúde no Brasil.

O buraco é mais embaixo, todavia. Penso que o real problema não deriva diretamente do tipo de sistema de financiamento, mas sim da forma de atuação do Estado, em termos da implantação da política, do grau de corrupção, da politização do campo ou da mercantilização da saúde. O que deve ser realmente levado em conta é que o os serviços de saúde sejam prestados de forma acessível a quem os demandar – e com qualidade. Não importa quem o faça, mas sim quem coloca as regras no jogo e o controla. Citando Mao, a cor do gato não importa; os ratos devem respeitá-lo… Assim também, com certeza, pensam os usuários do SUS.

Porém, ao contrário do Brasil, uma coisa assim nunca foi renegada, mas sim incentivada e desenvolvida, nas reformas de saúde de países da Europa Ocidental e Canadá, ocorridas na segunda metade do século XX e que até mesmo inspiraram a Reforma Sanitária no Brasil. Nestes países, os sistemas de saúde socializados integraram o financiamento público de serviços privados, com modalidades de contratos que permitem, por exemplo, que médicos e outros servidores pudessem prestar serviços à população, principalmente de atenção primária, sem se constituírem de fato e de direito em servidores públicos típicos (no padrão da Lei 8112), embora regulados e fiscalizados pelo Estado, que participa da equação não apenas como manancial de dinheiro.

Assim, as expressões “público” e “privado” podem ser relativizadas. Na primeira categoria o financiamento é majoritariamente proveniente do Estado (ao menos 70%), mas os serviços podem ser privados, desde que regulados pelo Estado. Já o conceito de privado inclui também aquilo que é “pertencente ao próprio trabalhador” e assim é assumido e praticado na maioria dos países que apresentam um sistema de saúde de fato universal e com financiamento majoritariamente público.

Enquanto isso nossas lideranças fazem questão de se ancorar em discursos de séculos passados. Querem “consertar” de fato alguma coisa? Isso tem nome: é engatar a marcha a ré…  

https://sindsaude.org.br/noticias/sindsaude-df/6564/fatima-sousa-defende-a-estatizacao-de-todas-as-areas-da-saude-do-df.html

PS. Na mesma edição do Boletim do SindSaúde manifesta-se a reivindicação de um “hospital para o servidor público”… Não caberiam outros comentários além deste:  o SUS onde “eles” trabalham só serviria para os outros, não para “eles” e suas excelentíssimas famílias…

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