O Candidato, o SUS, as Misericórdias…

Muita ênfase foi dada nos últimos dias ao fato de ter sido o candidato a presidente Bolsonaro ter sido atendido, após o atentado que sofreu, em um “hospital do SUS”, a Santa Casa de Juiz de Fora.  Os comentários variaram, desde a constatação do valor irrisório pago pela cirurgia na tabela oficial, coisa de menos de 400 reais, valor a ser dividido entre toda a equipe, até a denúncia de que o candidato já teria dito antes que o dinheiro da saúde destinado ao SUS é mais do que suficiente.  Como sempre acontece em ocasiões catastróficas de qualquer natureza, é preciso deixar passar algumas ondas (de sangue, de infecção, de lama, de posts em redes sociais diversas etc) para se ter clareza a respeito do que se fala no calor da hora.

As Santas de Casas de Misericórdia são, de fato, uma das melhores tradições que herdamos de Portugal, onde elas existem em número muito maior do que no Brasil, estando presentes mesmo em pequenas sociedades. Aqui no Brasil, a primeira delas foi fundada em Santos, poucas décadas depois do descobrimento e presta serviços até hoje. Santas Casas já salvaram a vida de muita gente, principalmente em um tempo onde elas constituem o único refúgio para os mais pobres, desempregados em geral ou não-portadores da famosa carteirinha do INPS. Tempos em que uma parcela da população tinha acesso aos hospitais particulares, e outra, um pouco maior, tinha guarida nos hospitais previdenciários. A grande maioria contava mesmo era com as chamadas Misericórdias, de origem católica, além de alguns outros poucos serviços filantrópicos, quase sempre ligados a denominações protestantes, existentes aqui e ali, geralmente nos grandes centros.

As Santas Casas, como outros serviços da mesma natureza filantrópica, sempre enfrentaram o desafio de obter recursos. Em tempos antigos, sua principal figura era a do Provedor (denominação usada ainda hoje), geralmente uma pessoa abastada e bem posicionada socialmente, o qual, quando não desembolsava diretamente, tinha prestígio social suficiente para conseguir que outros cidadãos notáveis da comunidade o fizessem. Mas mesmo assim, tinham que buscar recursos em outras partes e uma delas, naturalmente, era o Estado. No início eram dotações orçamentárias, geralmente intermediadas por parlamentares. Depois, com o advento dos Institutos de Previdência Social, elas passaram a fazer parte do plantel de serviços contratados, o que incluía os numerosos hospitais privados, que recebiam pelo montante de serviços prestados, geralmente na base do quantitativo de procedimentos realizados, acarretando situações do tipo “faça mais que eu pago mais” – o que veio a se transformar em fonte inesgotável de corrupção ao longo dos anos. Não foram poucos os apêndices removidos por duas vezes e os homens operados de cesariana, dentro de tal sistema de pagamento por serviço prestado. E deve-se dizer que mesmo algumas daquelas santificadas instituições não resistiram a tal apelo mercantil e ilícito.

Mais tarde, já na era do SUS, elas passaram a receber por tabelas diferenciadas e mesmo obtiveram a prerrogativa de que fossem contempladas com recursos especiais de investimentos pelas instituições estatais de fomento, como a Caixa Econômica e o BNDES. Nada mais justo, por sinal. Mas, ao mesmo tempo, em respeito a sua história, continuaram autorizadas a captar recursos também com a venda direta de serviços ao público, nos mesmos moldes que os hospitais privados típicos.

O estatuto original das Santas Casas, ainda vigente formalmente, dispõe que aqueles que ali prestam serviços, ou seja, basicamente os médicos, não pudessem fazem parte de sua administração, por configurar duplicidade e conflito de interesses. A Provedoria, assim, deveria ser uma coisa, e o corpo médico, outra. Mas é claro que muitas vezes isso teve dificuldades em ser respeitado, principalmente porque o sucesso financeiro e administrativo do empreendimento dependia muito da qualidade dos serviços técnicos que ali eram prestados. E em momentos de crise, a presença dos médicos era desejada não só pela sua perícia cirúrgica ou clínica, mas também pela sua habilidade de gestão e, principalmente, da habilidade de captar pacientes. Enfim, não dava para deixar os doutores fora das lides administrativas. E eles gostaram da ideia…

Deste modo, então, muitos serviços filantrópicos, privados em sua essência original de charitas (amor ao próximo), acabaram sendo conduzidos como se privados fossem, em termos de mercado. Algumas das Santas Casas desapareceram, outras foram vendidas e mudaram de nome, muitas se mantêm como serviços em regime misto público-privado, mesmo que a maior parte de seus recursos, possa eventualmente provir do SUS.

A Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora é SUS? Com certeza! A instituição receberá do SUS, mesmo que irrisoriamente, pelo tratamento que ofereceu ao candidato esfaqueado. Se este resolver pagar do seu próprio bolso, poderá fazê-lo, desde que não haja duplicidade em tal pagamento. Certamente não o fará, dentro da mesma lógica em que agiu em relação ao auxílio moradia que recebeu da Câmara de Deputados, sem fazer jus a ele. Mas há um detalhe: ela faz parte do SUS, sim, porém como parceiro privado especial, não como serviço estatal. Tal condição de parceria, embora possa ser considerada mal remunerada, lhe abre prerrogativas especiais, como por exemplo a de ter financiamento diferenciado por parte de bancos estatais e ter isenção de alguns impostos.  No final das contas, a má remuneração pode ser compensada assim.

Em síntese, o infeliz episódio que envolveu o polêmico candidato a Presidente da República, pode nos oferecer algumas lições, sim. Mas a principal delas é a de que ali se apresenta uma forma mista de gestão de serviços de saúde, consagrada pela história, que mesmo tendo seus percalços, ainda é um modelo interessante a ser aprimorado, longe de qualquer fobia contra a “privatização” ou de qualquer generalização indevida de que se trate de “pilantropia”.

Mas é bom lembrar que mesmo tal modelo não está imune a distorções e a principal delas foi o fato de terem sido sufocadas pelas crises econômicas constantes na saúde, forçando-as a se transformarem em instituições mais aderentes a uma lógica de mercado do que de charitas verdadeira.

E para o candidato fica a lição: melhor respeitar mais o SUS e não achar que o mesmo é um ralo de dinheiro… Além de parar de pensar que a melhor solução para a violência é armar a população.

 

 

 

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