Em 1978, no longínquo Cazaquistão, mais precisamente em uma cidade de lindo nome, Alma-Ata, realizou-se uma conferência internacional, patrocinada pela Organização Mundial da Saúde, tendo como tema a Atenção Primária à Saúde, que no Brasil é mais conhecida como Atenção Básica. Como é de praxe em tais ocasiões, uma declaração formal foi preparada e até hoje é muito comentada em todo o mundo. Nela, em uma dezena de tópicos, se apelou para que os governos, especialmente dos países em desenvolvimento, bem como outras entidades e organizações, se empenhassem em encontrar soluções urgentes para transformar a promoção da saúde como uma das prioridades da nova ordem econômica internacional. O lema de então era: Saúde para todos no ano 2.000. Pois bem, o referido ano já chegou, já se vão quase duas décadas. E aquela generosa “saúde para todos” ainda é, lamentavelmente, apenas “saúde para poucos”. Mas a esperança é a última que morre…
Assim é que justo agora, em 2018, ainda no remoto Cazaquistão (deve haver uma razão para que isso aconteça duas vezes lá…), a mesma OMS acaba de realizar uma nova conferência global, sob o tema da Atenção Primária à Saúde. A sede do evento será em Astana, a capital do país desde 1997 e que é uma cidade planejada, nos moldes de Brasília, Washington, Camberra, Goiânia e outras no mundo. Em um momento como o presente, em que os rumos do SUS – e de muitas de suas conquistas, como a própria Atenção Primária, que hoje alcança mais de 100 milhões de pessoas no país – estão sendo ameaçados por governos-sem-rumo e sem-escrúpulos em relação às questões sociais, tal tema, sem dúvida, se reveste da maior importância para nós brasileiros.
Assim, a Declaração de Astana tem, entre suas pautas prioritárias a reafirmação da Declaração de Alma Ata, dos direitos humanos e do direito à saúde, além do fortalecimento dos sistemas universais de saúde, como responsabilidade primordial dos governos, o que implica em garantia não só do referido direito à saúde, mas também justiça social, equidade e financiamento adequado e sustentável. Como se vê, remoto não é apenas o Cazaquistão, mas também a sintonia que o futuro governo do Brasil tem demonstrado frente a tais temas…
Os três primeiros artigos da Declaração de Astana reafirmam o compromisso com Alma Ata e reconhecem a importância da APS e os desafios a enfrentar:
I – Afirmamos enfaticamente nosso compromisso com o direito fundamental de todo ser humano para o gozo do mais elevado padrão de saúde possível de atingir, sem distinção de qualquer tipo. Na comemoração do 40º aniversário da Declaração de Alma Ata, reafirmamos nosso compromisso com todos os seus valores e princípios, em particular, com a justiça e a solidariedade, e salientamos a importância da saúde para a paz, a segurança e o desenvolvimento socioeconômico e a sua interdependência.
II – Estamos convencidos de que o fortalecimento da atenção primária à saúde (APS) é a abordagem mais inclusiva, eficaz e eficiente para melhorar a saúde física e mental das pessoas, bem como o bem-estar social, e que a APS é a pedra angular de um sistema de saúde sustentável para a cobertura universal de saúde (UHC) e Agenda 2030 e seus objetivos de desenvolvimento sustentável relacionados à saúde […].
III – Em todas as partes do mundo ainda existem necessidades de saúde insatisfeitas.
Os artigos IV a VII falam sobre os compromissos:
IV – Fazer escolhas políticas ousadas para a saúde em todos os setores
V – Desenvolver uma atenção primária à saúde sustentável
VI – Empoderar indivíduos e comunidades
VII – Alinhar o apoio das partes interessadas às políticas, estratégias e planos nacionais
A Declaração também reconhece que todo sucesso da atenção primária à saúde será dependente de: Conhecimento e capacidades; Recursos humanos para a saúde; Tecnologia; e Financiamento.
Tudo bem… tudo no linguajar anódino dos organismos internacionais. Mas é bom prestar atenção – agora mais do que nunca, no Brasil pelo menos – em coisas como: valores e princípios; justiça e solidariedade; empoderamento de pessoas e comunidades; apoio das partes interessadas; escolhas políticas; paz; segurança… E se não foi querer demais, uma Atenção Primaria à Saúde realmente capaz de ordenar o sistema de saúde em nosso País.
Em tempo: o Brasil, que não enviou representantes a Alma Ata (era governo militar, que também não se interessava muito por essas coisas, muito menos quando realizadas em um país comunista, como era o caso na época do Cazaquistão). Mas desta vez, pelo menos, mandou uma delegação a Altana, chefiada por uma diplomata, com alguns técnicos de órgãos do governo. Menos mal…
Veja abaixo um dos documentos-chave da Declaração de Astana, os chamados Objetivos do Milênio (ODM) que é um documento da ONU referendado por mais de uma centena de países: a AGENDA 2030, com seu objetivo 3, que diz respeito a Saúde e Bem Estar.
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Objetivo 3.
SAÚDE E BEM-ESTAR
ASSEGURAR UMA VIDA SAUDÁVEL E PROMOVER O BEM-ESTAR PARA TODOS, EM TODAS AS IDADES
Desde os ODM foram registrados progressos históricos na redução da mortalidade infantil, na melhoria da saúde materna e na luta contra o HIV/Aids, a tuberculose, a malária e outras doenças. Em 15 anos, o número de pessoas infectadas pelo HIV anualmente caiu de 3,1 milhões para 2 milhões e mais de 6,2 milhões de vidas foram salvas da malária.
Apesar do progresso, as doenças crônicas e aquelas resultantes de desastres continuam a ser os principais fatores que contribuem para a pobreza e para a privação dos mais vulneráveis. Atualmente, 63% de todas as mortes do mundo provêm de doenças não transmissíveis, principalmente cardiovasculares, respiratórias, câncer e diabetes. Estima-se que as perdas econômicas para os países de renda média e baixa provenientes destas doenças ultrapassaram US$ 7 trilhões até 2025.
Os ODS propõem metas integradas que abordam a promoção da saúde e bem estar como essenciais ao fomento das capacidades humanas.
ODMs relacionados: 4, 5, 6
ODMs relacionados:
4, 5, 6
Metas do Objetivo 3 |
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| 3.1 Até 2030, reduzir a taxa de mortalidade materna global para menos de 70 mortes por 100.000 nascidos vivos | |
| 3.2 Até 2030, acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e crianças menores de 5 anos, com todos os países objetivando reduzir a mortalidade neonatal para pelo menos até 12 por 1.000 nascidos vivos e a mortalidade de crianças menores de 5 anos para pelo menos até 25 por 1.000 nascidos vivos | |
| 3.3 Até 2030, acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis | |
| 3.4 Até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis por meio de prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar | |
| 3.5 Reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas entorpecentes e uso nocivo do álcool | |
| 3.6 Até 2020, reduzir pela metade as mortes e os ferimentos globais por acidentes em estradas | |
| 3.7 Até 2030, assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como a integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais | |
| 3.8 Atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos | |
| 3.9 Até 2030, reduzir substancialmente o número de mortes e doenças por produtos químicos perigosos e por contaminação e poluição do ar, da água e do solo | |
| 3.a Fortalecer a implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial de Saúde em todos os países, conforme apropriado | |
| 3.b Apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para as doenças transmissíveis e não transmissíveis, que afetam principalmente os países em desenvolvimento, proporcionar o acesso a medicamentos e vacinas essenciais a preços acessíveis, de acordo com a Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, que afirma o direito dos países em desenvolvimento de utilizarem plenamente as disposições do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês) sobre flexibilidades para proteger a saúde pública e, em particular, proporcionar o acesso a medicamentos para todos | |
| 3.c Aumentar substancialmente o financiamento da saúde e o recrutamento, desenvolvimento, treinamento e retenção do pessoal de saúde nos países em desenvolvimento, especialmente nos países de menor desenvolvimento relativo e nos pequenos Estados insulares em desenvolvimento | |
| 3.d reforçar a capacidade de todos os países, particularmente os países em desenvolvimento, para o alerta precoce, redução de riscos e gerenciamento de riscos nacionais e globais à saúde. |
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Sobre a DECLARAÇÃO DE ALMA ATA
A Declaração de Alma-Ata se compõe de 10 itens que enfatizam a Atenção primária à saúde (Cuidados de Saúde Primários), salientando a necessidade de atenção especial aos países em desenvolvimento. Exortando os governos, a OMS, a UNICEF e as demais entidades e organizações, a declaração defende a busca de uma solução urgente para estabelecer a promoção de saúde como uma das prioridades da nova ordem econômica internacional.
Tem sido considerada como a primeira declaração internacional que despertou e enfatizou a importância da atenção primária em saúde, desde então defendida pela OMS como a chave para uma promoção de saúde de caráter universal.
Os primeiros itens da declaração reafirmam a definição de saúde defendida pela OMS, como o “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”, e a defendem como direito fundamental e como a principal meta social de todos os governos.
A seguir a declaração salienta a interferência da desigualdade social nas políticas de saúde, ressaltando o papel que a lacuna entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento representa. Exortando todos os países à cooperação, na busca pelo objetivo comum da saúde, fator que contribui para a qualidade de vida e para a paz mundial, a declaração defende tal cooperação como direito e dever de todos, individual e coletivamente.
Segue-se a reafirmação da responsabilidade de todos os governos pela promoção de saúde, e a reivindicação da atenção primária como fator de viabilidade para uma universalização dos cuidados, mediante a abrangência e a melhoria social que possibilitam, integrando governo com todos os setores da sociedade, em prol da igualdade social.
