Dilma Rouseff foi empurrada para fora do governo, entre outras razões, por ter cometido aquele famoso “estelionato eleitoral”. Do jeito que a política no Brasil dá voltas, agora, estranhamente, nos cabe torcer para que tal estelionato seja cometido de verdade. Refiro-me naturalmente às estranhas promessas que vem fazendo, ou ameaçando fazer, o presidente recentemente eleito. Para coisas assim, o melhor seria prometer, mas não cumprir – exatamente como teria feito a infeliz presidente em seu segundo mandato. E entre tais coisas fora dos padrões normais estão a mudança da embaixada do Brasil para Jerusalém; a extinção de direitos trabalhistas; a militarização do Executivo; as ameaças ao programa Mais Médicos; a extinção e recriação de ministérios; a escolha da “Musa do Veneno” para Ministra da Agricultura, além da fatídica “volta a 50 anos atrás”. Por sorte, até agora pelo menos, algumas dessas decisões estão sendo anunciadas em um dia e negadas no outro – pelo presidente ou por seus diversos assessores e agregados sem função definida. Mas nem todas… Tudo indica que, de maneira geral e no que há de pior, o homem fala sério… Como quem profere a Ordem do Dia em algum estabelecimento militar toda manhã.
Assim, então, em tais águas se foi o Programa Mais Médicos (PMM). É bem verdade que Cuba se antecipou e utilizou sua prerrogativa de romper o acordo com o Brasil, mas dado o grau de ameaças e arroubos inconsequentes (fake acts) que vinham contaminando o cenário, tal ruptura já era de fato esperada.
Quero deixar claro: eu também fui um crítico do PMM. Minhas dúvidas eram quanto à sustentabilidade do mesmo, dado o caráter temporário da vinda dos médicos estrangeiros (não apenas cubanos); da questão da remuneração, realmente polêmica, ao transferir ao governo cubano e não ao médico uma parte do salário ou bolsa, além da frágil estratégia de formar mão de obra no Brasil em tempo hábil e com perfil apropriado para a atenção básica e o trabalho nos rincões, a fim de suprir as prementes necessidades constatadas no país. Nada contra cubanos, gregos ou somalís trabalhando aqui, já que não se pode contar com médicos formados no Brasil para este tipo de trabalho, como sempre se viu e mais se confirma a cada dia. Para mim, uma grande contribuição do PMM foi a de ter “arrombado a porta” da demagogia e da hipocrisia da corporação medica brasileira, de modo geral conservadora e elitista até a raiz do cabelo.
Mas sem dúvida, o PMM apresentava resultados. Um item apenas o justificaria: foram muitos milhares de cidadãos brasileiros que viram, pela primeira vez em suas vidas, um médico para chamar de seu. Muitos municípios com zero médico por habitante passaram a contar com este profissional, particularmente nos grotões do Nordeste e da Amazônia. os cubanos foram para onde ninguém ousava ir, por exemplo, tribos indígenas e comunidades Quilombolas, igualmente jejunas de tal profissional. E não custa lembrar aos menos avisados que o estado que mais recebeu este tipo de profissional foi exatamente São Paulo – sim, a locomotiva do Brasil! – onde eles se espalharam por algumas dezenas de municípios carentes de médicos e também – principalmente – pelas periferias de grandes cidades.
Isso mudou algumas coisas no panorama da saúde, sim senhor! Há evidências científicas diversas de que foi obtido um aumento apreciável na oferta de consultas, com redução na demanda por exames complementares e nas internações sensíveis às condições susceptíveis de tratamento na atenção básica. Os cubanos e outros estrangeiros certamente aprenderam muito no Brasil, mas trouxeram aos nossos profissionais de saúde, até mesmo aos que lhes foram hostis no princípio, metodologias de trabalho oriundas de sistemas de saúde mais evoluídos que o nosso, nos quais, certamente, há também defeitos, mas que ostentam, como no caso de Cuba, a conquista de excelentes indicadores de saúde, por exemplo na mortalidade infantil, que na Ilha é comparável à do Japão e dos países nórdicos.
Depoimentos de pacientes, além de revelarem contato com médico pela primeira vez em suas vidas, mostraram encantamento com coisas que seriam banais se não fossem raríssimas por aqui, tais como consultas demoradas, atenção profunda e concentrada no paciente, oferecimento de uma cadeira ao lado do médico para as pessoas se assentarem (!), além de forte interação cultural e afetiva com a população local. Por sua vez, alguns cubanos disseram ter se espantado ao conhecer um país totalmente diferente daquele visto em Cuba através das novelas de TV.
E assim vai o Brasil descendo a ladeira … A percepção de alguns anos atrás, do pujante país no cenário mundial, baixou mais alguns degraus, numa desembestada perda de status que vem nos assolando desde 2013, na medida em que o ex-membro do andar de baixo do Legislativo, eleito pela terça parte dos brasileiros, entre os quais os mais abonados e os menos informados, vai destilando sua visão obtusa e desinformada de mundo, filtrada pelas lentes embaçadas de uma ideologia que em outros lugares já está morta há décadas.
Quem perde, quem ganha nesse jogo?
O grande perdedor já se sabe quem é. Nada menos do que aquelas vinte ou mais milhões de pessoas que deixarão de contar com atendimento médico. Isso importa para alguém? Para a horda que apoia e aplaude o militar reformado não faria diferença, até mesmo porque poucos deles fariam parte de tal contingente – ou talvez até alguns o façam, mas ainda não se deram conta das consequências de suas opções eleitorais recentes.
O capitão então ganhou a parada? A curto prazo, sim, pois na sua sanha de “desesquerdizar” o Brasil contará isso como ponto em seu placar. Mas a médio e longo prazo terá que enfrentar uma multidão de prefeitos, vereadores e outros políticos, que bem ou mal tinham no Mais Médicos uma estratégia propícia para aumentar seu cabedal eleitoral. Isso para não falar dos milhões de cidadãos subtraídos daquilo que eles já imaginavam ter como direito. Mas para os partidários do militar reformado esta parte talvez seja apenas um detalhe, algo que se resolva simplesmente com um cabo, um soldado e um jipe, além de uma salva de mensagens pelo whatsapp…
Ganharam os cubanos? Mesmo tendo sido os autores de iniciativa no momento, também não, pois estarão perdendo uma fonte de renda importante, não há como negar.
E as entidades médicas, que sempre se antepuseram ao PMM, como ficam? Neste momento, talvez estejam comemorando, mas cedo compreenderão que a população que deixará de usufruir dos benefícios do programa se voltará contra eles. E a imagem da profissão, que está longe de ser positiva no Brasil, decairá mais um pouco. A demagogia e o elitismo logo serão postos a nu, quando as entidades médicas mostrarem que não têm nada a oferecer em troca do PMM, a não ser reivindicações vagas de melhores salários e condições de trabalho adequadas. Nem é preciso dizer que a regra no interior do Brasil é a de que os médicos costumam ter salários até superiores aos dos prefeitos. O resultado mais imediato é de que, nos serviços públicos de saúde, aquela placa habitual que diz “maltratar funcionário público é crime previsto na legislação” terá cada vez mais serventia. Haja polícia, promotores e juízes para executar taxativamente tais ditames legais.
Que não se esqueça também da imagem do Brasil no exterior, que já anda pelas tabelas. Não custa nada lembrar que o bloqueio a Cuba não foi seguido, por exemplo, pelo Canadá e pela maioria dos países da União Europeia, constituindo uma trama inteiramente norte-americana e de alguns de seus satélites. Na vanguarda do atraso o Brasil parecer querer ressuscitar antigos discursos da época da “Crise dos Mísseis”, esquecendo que Kennedy e Kruschev, assim como a Guerra Fria, já não existem mais. Satélites do Tio Sam: eis no que nos transformamos de fato agora, nós que achávamos que isso fazia parte de uma ideologia já superada. Quem sabe o ex-capitão encontre apoio para seus atos destemperados em Budapeste, Ancara, Tel Aviv ou Washington DC?
Para terminar, faço questão de afirmar: meus problemas com o capitão reformado, este tosco personagem oriundo do baixo clero político, intelectual e moral do país, bem como seus seguidores, não são ideológicos. Ideologia a gente até respeita. A questão para mim é de outra natureza: moral, eu diria.
Pobre país…
