Entorno ou Transtorno (II)

O atual Governador do DF prometeu, durante a campanha eleitoral, criar a Região Metropolitana (RM) do Distrito Federal, formada por municípios de Goiás e Minas Gerais, além do DF. Segundo ele, isso estabeleceria um território reconhecido pela União, vindo a facilitar a destinação de recursos federais aos respectivos governos estaduais e do DF.  Na ocasião, dizia ele, transpirando otimismo: “Hoje, para se fazer uma obra para beneficiar a região, o governo federal tinha de transferir parte dos recursos para um e parte para outro. A MP vai facilitar muito. Temos o apoio de diversas bancadas e a certeza de que logo será aprovada pelo Congresso”. Do que resultou isso, além de mais uma prova de que fazer promessas é tão ou mais fácil do que descumpri-las? Apesar do apoio de Temer, que enviou, ainda em dezembro de 2018, no apagar das fracas luzes de seu governo, uma MP relativa a isso ao Congresso Nacional, a conversa não prosperou. E agora, na última semana de abril de 2019 foi cabalmente sepultada com a decisão dos possíveis parceiros interessados, MG e GO, de não apoiar tal medida. O motivo? Dinheiro, pra variar… Os governadores vizinhos se recusam a entrar em tal arranjo sem que o DF abrisse mão de uma parte dos recursos do Fundo de Participação em favor de seus eventuais sócios da tal RM. Assim, o advogado Ibaneis, que já alardeava o apoio dos vizinhos à sua ideia, teve que botar a viola no saco…

Não custa lembrar, entretanto que, atualmente, o Entorno da Capital Federal já faz parte de uma Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE-DF), criada em 1998 por Lei Complementar, abrangendo, além do DF, três cidades de Minas Gerais e 19 de Goiás. Tal RIDE, diferente de uma RM, que se situa em um só estado e privilegia ações sociais e de mobilidade urbana, alcança mais de uma unidade federativa e tem como foco ações econômicas. Supostamente, segundo a linha de argumentação do GDF, com a RM no DF e Entorno, os governos locais poderiam coordenar as ações e investimentos locais, como, por exemplo, facultar aos estados membros e ao DF firmar convênios de captação de recursos e realizar licitação única para uma obra comum, simplificando esforços e reduzindo gastos.

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Este é um tema que se reitera na mídia e no discurso dos políticos. Eu mesmo já o fiz mais de uma vez (março e junho de 2018). Assim, já havia traçado algumas considerações sobre o panorama e as perspectivas para a atuação dos gestores de saúde dentro da RIDE-DF, partindo da experiência acumulada, em particular, com a criação do Colegiado Gestor em Saúde e do Plano de Ação respectivo, que representavam inequívocos avanços no sentido da integração da gestão em saúde na região, no âmbito do pacto pela Saúde de 2008. Foram considerações feitas com foco na RIDE, aliás, ainda vigente, mas que poderiam ser aplicadas também à ideia da RM e, principalmente da gestão da saúde no Entorno do DF, seja em que arranjo for. Mesmo passados alguns anos de sua formulação original, creio que ainda continuam válidas.

Chamo a atenção dos leitores, especialmente, para a recomendação de que fosse revisto e ampliado o mandato do Gestor Federal nas decisões relativas á saúde na RIDE-DF, dado se tratar do território que abriga a Capital Federal. Com efeito, o Ministério da Saúde poderia e deveria exercer papel diferenciado na esfera regional interestadual, não só nas RIDE como em outras situações, como já ocorre com outras áreas do governo federal, com a necessária adaptação dos dispositivos normativos relativos a instâncias e planejamento regionalizados, no sentido de adequá-los a uma nova lógica de participação e decisões conjuntas, não mais apenas entre estados e municípios, mas envolvendo também o governo Federal. O papel exercido até agora pelo Ministério da Saúde tem sido o de arregimentação e apoio logístico para as reuniões referentes à saúde na área da RIDE-DF e isso deve ser revisto

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Foram as seguintes as minhas considerações referidas acima (desculpem se ficou um pouco longo, mas o assunto merece…):

(a) A constituição da RIDE na legislação brasileira aponta efetivamente no sentido de uma nova institucionalidade na condução interfederativa de políticas públicas, com dispositivos aplicáveis às diversas áreas de atuação de governo, inclusive saúde. O Pacto pela Saúde aponta na mesma direção, particularmente com a criação de novos conceitos de região e de Colegiado de Gestão Regional (CGR). Assim, não haveria necessidade de se revogar ou contraditar qualquer princípio ou diretriz do Pacto pela Saúde, mas sim de adaptar as duas situações, com os objetivos de qualificar e ampliar as ações de gestão regionalizada em saúde.

(b) Sem dúvida, a questão da governança ainda é matéria pouco resolvida na ação intersetorial e entre níveis de governo – sem deixar de sê-lo quando se considera as esferas isoladamente. Isso é particularmente palpável na área da saúde. Assim, torna-se preciso encontrar instrumentos e mecanismos inovadores para potencializar a governança do sistema, de forma compatível com a realidade e também com as novas institucionalidades colocadas em campo, seja pelo Pacto pela Saúde, seja pela lei de criação das RIDE. Há que se considerar, além do mais, que existem provas irrefutáveis de que os mecanismos disponíveis historicamente e que convergiram para formas autárquicas e isoladas de municipalização sensu strictu estão completamente superados pela realidade atualmente. Neste aspecto, não só a legislação instituinte da RIDE, como sua aplicação concreta no decorrer dos últimos anos, em particular com o funcionamento do COARIDE, mostra enorme potencial de servir de guia para se produzir avanços que incluam também a área da saúde, de forma a incrementar sua governança.

(c) O caso específico das RIDE e, em particular da RIDE-DF, representa um espaço complexo de  relações interfederativas, bem como entre os governos e a população, com problemas muitas vezes agravados pelas barreiras políticas e geográficas, derivadas da tendência competitiva e até predatória vigente na federação brasileira. Os problemas em tal contexto, sejam de natureza sanitária, econômica, demográfica, cultural, política etc. não têm como serem resolvidos de maneira singela ou apenas dentro dos moldes formais. A busca da governança requer a ampliação do escopo da gestão dos vários participantes da região integrada, em termos de meios e de fins. Novas institucionalidades requerem, portanto, novos instrumentos de ação. Um exemplo concreto disso, na área de segurança pública, seria a criação da Força Nacional de Segurança, praticamente impensável até alguns anos atrás, por ameaçar, supostamente, a marcante autonomia dos entes federados, mas que uma vez instalada veio ao encontro das demandas e das necessidades das sociedades política e civil nos locais em que atua.

(d) De forma conseqüente, a diretriz do Pacto pela Saúde, inspirada em valores de solidariedade e cooperação, por si só necessita de definição de novos papéis e novos modus operandi das máquinas administrativas, com foco na responsabilização das três esferas gestoras, de forma a afastar os fantasmas do predatismo e da competição. Isso implica em aumentar recursos e poder decisório, não necessariamente de cada um dos entes federados, mas do conjunto deles, ao mesmo tempo em que deve resultar em ampliação da responsabilização respectiva.

(e) Uma diretriz apontada de forma substancial na RIDE, porém tocada apenas de passagem no Pacto pela Saúde, diz respeito às parcerias com a sociedade na execução das políticas públicas. A RIDE-DF já conta com um programa específico (PRO-RIDE) desenvolvido no âmbito do Ministério do Interior e sob coordenação deste, que pode e deve inspirar ações semelhantes na área da saúde, na qual um programa com tais características não se faz presente.

(f) O Colegiado de Administração da RIDE (COARIDE) poderia, certamente, oferecer subsídios para o funcionamento de um futuro CGR. Trata-se, sem dúvida, de uma aproximação possível, já que ambos apresentam marcos de uma nova institucionalidade na ação interfederativa de governo. Aqui, certamente, cabe uma ampliação do que está previsto no Pacto pela Saúde, com a definição de novos papéis para o Gestor Federal e a conseqüente ação trilateral daí advinda, como já acontece na condução da RIDE-DF.

(g) A lei considera de interesse das RIDE um conjunto de serviços públicos comuns aos estados e municípios que a compõem, o que ultrapassa de muito a possível pauta de atuação de um CGR. Mas de qualquer forma, caberia considerar algumas áreas previstas no texto legal como afeitas às RIDE, sobre as quais os CGR poderiam também opinar e formular proposições, podendo ser citadas: infra-estrutura urbana; capacitação profissional específica em saúde; política de saneamento básico e limpeza pública, em função dos indicadores epidemiológicos; proteção ao meio ambiente e controle da poluição ambiental; educação e cultura, nos aspectos relacionados à saúde, além de segurança pública.

(h) De forma análoga, as próprias atribuições específicas em saúde poderiam ser ampliadas, ainda levando em consideração os dispositivos legais referentes às RIDE, incluindo-se então a coordenação das ações e programas de saúde dos entes federados que compõem a RIDE, visando o desenvolvimento regional e a redução das desigualdades sanitárias correspondentes; a aprovação e a supervisão dos planos, programas e projetos para o desenvolvimento dos sistemas locais e microrregionais de saúde; o fomento à integração dos serviços públicos de saúde comuns aos membros; a utilização cooperativa dos instrumentos de planejamento local e regional já em vigor, tias como Planos de Saúde, Relatórios de Gestão, PPI, PDR e PDI; a compatibilização das ações de saúde entre as instituições de outros setores, de forma a harmonizar programas e projetos de interesse regional – entre eles a ampliação do PRO-RIDE para a área da saúde, entre outras possibilidades.

(i) O Programa Especial de Desenvolvimento do Entorno do DF (PRORIDE) foi desenvolvido e vem sendo executado pela Secretaria do Desenvolvimento do Centro-Oeste do Ministério da Integração Nacional. Seus focos de atuação vêm ocorrendo nos campos de ampliação e diversificação da base econômica regional; no desenvolvimento social; na universalização e qualidade na oferta de serviços públicos; no manejo sustentável de recursos naturais e na melhoria das condições ambientais, a ainda na melhoria e na racionalização da gestão pública. Sua formulação se deu de forma participativa, reunido autoridades e lideranças locais regionais, inclusive comunitárias e foi subsidiada por estudos sobre a região do Entorno do DF bancados pelo MIN. Suas implicações e vantagens pra a área da saúde são óbvias e seria interessante que as ações a serem desenvolvidas neste campo pudessem utilizar metodologia semelhante e também concorrer ao mesmo processo de financiamento, vislumbrando-se assim novas possibilidades de acesso a recursos públicos, ordinariamente escassos.

(j) Sem dúvida, a área de saúde da RIDE-DF já conta com acumulações expressivas em relação a suas perspectivas a curto e médio prazo. Assim podem ser considerados o PDR de Goiás, o texto Mais Saúde RIDE – Investimentos, o Atlas – Uso dos serviços de saúde em Goiânia, Anápolis, Brasília e entornos, além do Plano de Ação 2008 – 2010, todos citados, referenciados e comentados ao longo deste texto. Eles constituem excelentes instrumentos de metas, bastante abrangentes, sendo além do mais legitimados por um processo de construção participativo e ascendente. Não deixa de ser desalentador o fato de que tal acumulação, principalmente no que se refere aos documentos mais antigos, parece não estar sendo devidamente aproveitada para o processo decisório e a alocação de recursos. É importante, entretanto, que sejam operacionalizados de forma flexível, ou seja, aberta a revisões e com possibilidade de ampliação de seu escopo, por exemplo, para incluí-los e ou adequá-los ao PRO-RIDE ou programas semelhantes. O foco em investimentos é bastante marcante em tais documentos e isso certamente não os invalida, até porque recebem forte destaque, simultaneamente, as áreas de atenção especializada, no PDR, e de atenção básica, promoção da saúde e desenvolvimento de recursos humanos, no Plano de Ação. Mas se torna importante definir com mais precisão as possíveis fontes de financiamento para as atividades desenvolvidas dentro dos programas para a RIDE-DF.

(k) Ainda sobre a questão do financiamento das ações e serviços pertinentes à RIDE-DF, esta talvez constitua um bom exemplo de ação sobre a qual o nível federal de governo deve ter presença mais robusta do que aquela que ocorre atualmente, seja de forma direta ou mediante intermediação de recursos, por exemplo das emendas parlamentares. Neste aspecto, é importante a vinculação das ações a serem desenvolvidas na RIDE com outros programas de governo, por exemplo, Territórios de Cidadania, Mais Saúde, TEIAS e outros.

(l) Há que se ampliar e aperfeiçoar, também, instrumentos eficazes de monitoramento das demandas dirigidas ao DF pelas áreas do Entorno, de forma a se evitar certo achismo e atitudes defensivas e ou conspiratórias que às vezes permeiam as relações entre entes federados na questão da saúde. O pressuposto deve ser o de que o Entorno não é simplesmente um transtorno para o DF, pois a população que nele habita, além de ser portadora de direitos de cidadania tanto quanto aquela que habita a Capital Federal tem também um importante papel na movimentação da economia do DF, já que é no comércio local que costuma fazer suas despesas de custeio familiar e outras. Além disso, estas pessoas não podem pagar os custos da incúria de governantes que permitiram e estimularam a atração fantasiosa de centenas de milhares de migrantes, movidos de outras regiões do País por promessas vãs, com o conseqüente descalabro da exploração imobiliária nas áreas onde foram forçados a se alojar.

(m) Dentro deste último aspecto, é alvissareira a notícia colhida entre os interlocutores da SES-DF de que já a partir de 2008 entra em cena uma nova sistemática de elaboração da PPI, de natureza menos burocrática e mais fundamentada em parâmetros e informações mais fidedignos. Da mesma forma, estão sendo aprimorados os mecanismos de localização de moradias baseados no CEP, o que também aperfeiçoará o processo de definição de origem dos ingressantes no sistema de saúde. O Cartão de Saúde do DF também vem sendo implantado em áreas-piloto, com perspectivas de extensão a todo o território a curto e médio prazo. Essas inovações, sem dúvida, resultarão em melhorias de gestão, pelo maior apuro das informações daí derivadas, aspectos que poderão também ter repercussão positiva em relação dos municípios da RIDE.

(n) É importante, também, que esteja presente no foco das decisões relativas ao Entorno, a distinção clara entre diversas situações prevalentes na área, ou seja, a de provedores de serviços públicos, inclusive de saúde, como é o caso do DF versus a de demandantes intensivos dos mesmos, como é o caso de Goiás e de MG. Assim, não se trata de uma relação entre iguais, para a qual as velhas fórmulas que apontam para a paridade decisória, tão valorizadas no SUS, não têm muito a oferecer. As decisões devem ser por consenso, mas, ao mesmo tempo, a arbitragem de um tertius, no caso, o Gestor Federal, deve prevalecer, de forma a respeitar o interesse comum e não as posições antagônicas de provedores e consumidores. Na mesma linha de tratar diferentemente os desiguais, cabe lembrar que a situação de MG, embora possa definida também como de demandante de serviços no DF, tem papel secundário quando comparada a GO, o que implica, mais uma vez, em que os processos decisórios devam levar em consideração tal fato – ou seja, o consenso pode não surgir de maneira singela, por exemplo, a partir de votações nos órgãos colegiados, reforçando a necessidade de uma arbitragem nas questões respectivas.

(o) Ainda dentro do tema do processo decisório e da necessidade de se estabelecer consensos diferenciados em função de diferentes situações de gestão e oferta de serviços, cabe um comentário adicional: o de que seria equivocada a pretensão já veiculada pelos gestores do DF no CGS de que sua representação em tal colegiado passe a incluir as várias Diretorias Regionais de Saúde do DF. O DF deve ter representação una e forte, mas não necessariamente formada a partir da comparação de coisas que não podem ser comparadas, ou seja, Gestores Municipais de Saúde, de um lado, e diretores de saúde do DF no outro.

(p) Há necessidade, também, de que seja revisto e ampliado o mandato do Gestor Federal nas decisões relativas á saúde na RIDEDF, dado se tratar do território que abriga a Capital Federal, com representação inclusive no CGR, que passaria a ter composição tripartite. Com efeito, o Ministério da Saúde pode e deve exercer papel diferenciado na esfera regional interestadual, não só nas RIDE como em outras situações, como já ocorre com o Ministério da Integração Nacional e o Ministério da Justiça. Assim, deve haver adaptação dos dispositivos normativos relativos à constituição de instâncias regionais de gestão e planejamento regionalizados em saúde, como é o caso dos CGR, no sentido de adequá-los a uma nova lógica de participação e decisões conjuntas, não mais apenas entre estados e municípios, mas envolvendo também o governo Federal. O papel exercido até agora pelo Ministério da Saúde, é bom lembrar, tem sido o de arregimentação e apoio logístico para as reuniões referentes à saúde na área da RIDE-DF e isso deve ser revisto.

(q) Como decorrência, a proposta diz respeito a um CGR efetivamente tripartite. Isso acarretaria, portanto, a exigência de novos modos de acompanhamento de sua atuação, envolvendo, no caso, de forma previsível, as CIB respectivas, mas de forma inédita também a CIT, de modo mais participativo, dada a peculiaridade da composição de tal colegiado interestadual.

(r) O momento atual, no qual se anuncia e já se avança na reforma estrutura de gestão do MS deve ser considerado como estratégico na presente discussão. Com efeito, deve (ou deveria) estar previsto um novo órgão, uma secretaria que cuidasse, de forma unificada, portadora que deveria ser de um mandato bem definido, de toda a articulação com os estados e os municípios, tendo como foco central a diretriz legal da descentralização e da regionalização da saúde. A formulação e o monitoramento da implementação do Pacto pela Saúde, tendo dentro de seu foco de atenção a formação e o acompanhamento dos CGR na estrutura das diversas RIDE nacionais.__

Para conhecer tal texto completo, acesse:

https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/03/27/entorno-ou-transtorno/

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A Medida provisória que Temer encaminhou ao Congresso em dezembro de 2018 está aqui:

https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/655229467/medida-provisoria-862-18

Alguns aspectos abordados pela mídia recentemente (Abril 2019):

https://www.metropoles.com/distrito-federal/temer-atende-ibaneis-e-assina-mp-da-regiao-metropolitana-de-brasilia

https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CIDADES/566447-MEDIDA-PROVISORIA-CRIA-REGIAO-METROPOLITANA-DO-DISTRITO-FEDERAL.html

https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2017/09/26/representantes-do-df-do-entorno-e-de-minas-articulam-acoes-integradas-de-saude/

 

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