Um “bom governo” seria possível, de fato, no DF (ou alhures)?

O poeta russo Maiakowski disse, num poema famoso, ter ouvido dizer que em alguma parte do mundo haveria um homem feliz, “ao que parece, no Brasil”… Se sua procura fosse por um governo bem aceito pelos cidadãos, penso que as dificuldades em encontrá-lo seriam ainda maiores. No Brasil – ou no DF, por exemplo – isso seria praticamente impossível, pois se há uma coisa rara nos dias de hoje, aqui e alhures, é o que se poderia chamar de “um bom governo”. Mesmo homens (ou mulheres) felizes já seria uma raridade… Maus exemplos é o que não falta. Na República, por exemplo, um “meme” recente, mas já consagrado, diz que seria fácil enumerar os defeitos do atual governo, o problema mais difícil seria enumerar seus acertos. Temos realmente um cenário de administrações em condições adversas, operadas por gente equivocada e convencida que “ideologia” é só a dos outros, além do mais produzidas por um eleitorado dividido e mal informado, em um campo minado não apenas pela crise econômica, mas também por um cataclismo simbólico e moral que acomete os políticos de todos os naipes e matizes ideológicos, como acontece no Brasil de hoje.

  • SUMÁRIO: Bons governos podem existir, mas não apenas em pontos isolados das instituições. Neles, as boas práticas de gestão aparecem como regra, não como exceção; os modos tradicionais de administrar devem ceder lugar a práticas realmente inovadoras, com a geração de círculos virtuosos, como a de oferecer incentivos à dedicação dos trabalhadores, despertando nos mesmos as noções de vocação, missão e comportamento responsável. Bons governos são, também, aqueles capazes de mobilizar recursos morais, ou acumulações simbólicas, com confiança mútua entre governantes e cidadão, não se esquecendo da garantia da estabilidade social e institucional, da educação apropriada do público e dos servidores, além de características do grupo político. Assim, são essenciais: a presença de incentivos à dedicação e ao cumprimento do dever; a percepção por parte dos usuários das ações de governo; o manuseio adequado de recursos simbólicos, tais como estabilidade, continuidade, programa partidário, entre outros. Não se pode esquecer, ainda, da liderança, com características de carisma, voluntarismo, “personalidade”, embora isso possa ser também um desafio em superar dependência de tais líderes. Em suma, “bom governo” é algo depende de boa liderança, mas também de um corpo técnico qualificado, de um ambiente político de interação e ecumenismo, de processos de gestão resolutivos, ágeis e não burocratizados e, acima de tudo, de sociedade civil bem informada e organizada.

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Leia o texto completo a seguir:

SOBRE O BOM GOVERNO

Como ensina Judith Tendler (ver link ao final) bons governos podem existir, de fato, mas nunca focalizados em pontos isolados das instituições, antes sendo difusos nelas. Neles, as boas práticas de gestão aparecem como regra, não como exceção. Da mesma forma, deve haver clareza que existem modos mais tradicionais de administrar versus a inovação das práticas de gestão, que devem se tornar também difusas, mediante um feliz encontro entre práxis administrativa e fundamento ideológico. Segundo a autora, que estudou o caso dos governos estaduais do Ceará, na década de 90, ali se acumulou uma série de fatores positivos, formando autênticos círculos virtuosos, por exemplo, com incentivos à dedicação dos trabalhadores, fazendo com que se desenvolvessem certas noções de vocação e missão, além de pressões para o comportamento responsável.
Outro autor que cuida de tal assunto, numa obra mais ampla, é Hirschman, (1984 – ver link), que aponta uma das características de tal “bom governo” representada pela mobilização dos chamados recursos morais, ou acumulações simbólicas, que resultam no incremento da confiança mútua entre governantes e cidadãos, ingrediente cuja oferta aumenta com o uso, mas que se esgota caso não seja utilizado. Na mesma linha, Putnan (1996 – ver link) relaciona o bom governo, entre outros fatores, com a estabilidade social e institucional, a qualidade da educação, o grau e a qualidade da vida urbana, além de algumas características do grupo político eventualmente no poder.

Assim, algumas das categorias comuns dos governos bem aceitos pelos cidadãos são apontadas por estes autores, como a presença de incentivos à dedicação e ao cumprimento do dever; a percepção por parte dos usuários das ações de governo; o manuseio adequado de recursos simbólicos, tais como estabilidade, continuidade, programa partidário, entre outros.

Liderança é um aspecto fundamental dos governos bem sucedidos. Tendler, por exemplo, destaca o fato de que a presença de líderes com características de carisma, voluntarismo, “personalidade”, é de alguma forma indispensável para a sobrevivência dos programas que lideram, embora se constitua um grande desafio superar a dependência de tais líderes. Na visão da mesma autora, refletindo sobre o citado caso do Ceará, algumas lições a respeito do papel da liderança foram destacadas, entre elas: (a) nem sempre é possível afirmar como intencional o papel exercido pelo líder; (b) a compreensão interna das equipes e das lideranças a respeito de seus acertos, igualmente, nem sempre se dava como muita clareza; (c) a visão de futuro é um atributo importante do líder; (d) boas experiências administrativas não devem ser interpretadas como resultados diretos e unívocos do surgimentos idiossincrático de lideranças destacadas, mas sim como o resultado de circunstâncias muito mais abrangentes.

Tendler chama também a atenção para o que denomina de dinâmica tri-direcional, ou seja, uma articulação sinérgica formando círculos virtuosos entre as ações dos governos e a sociedade de usuários. No caso brasileiro estudado por ela, é enfatizado o papel de um governo não apenas como cumpridor dos atributos tradicionais que dele se espera, mas como um ator que agora está fazendo algo diferente, o que inclui, de forma até certo ponto surpreendente, a defesa dos cidadãos e proteção de seus direitos. Assim, as relações entre governo e sociedade, particularmente diante de um panorama de mudanças e de implementação de novas políticas públicas, conduz à necessária compreensão de um processo saudável e bilateral de entrelaçamento e dinâmicas entre o governo local e a sociedade civil, gerando pressões para o incremento de uma cultura de prestação de contas (accountability), exigindo mais responsabilidade e transparência do poder público. Além disso, não seria conveniente falar de uma causalidade unidirecional entre a organização comunitária e a qualidade do governo, pois as coisas em tal sistema ocorrem de modo complexo, de forma causal bidirecional, envolvendo governo local e comunidade, ou até mesmo tri-direcional, incluindo também outra esfera de governo.

Esta autora aponta ainda para a importância de processos inovadores de trabalho na constituição daquilo que se poderia chamar de “bom governo”. De um lado a customização, a autonomia e o trabalho transformado, traduzidos pela capacitação do corpo técnico para a realização de múltiplas tarefas e habilidades, resultando no que a autora denomina de auto ampliação, fatores que parecem ter tido grande impacto na experiência do Ceará, apontando para o senso de vocação do trabalhador e a presença moral do governo. Este quadro de certa forma está sintonizado com o que já se denominou de organização ad-hocrática e, por extensão, seu corpo funcional de ad-hocracia, na qual o mecanismo principal de coordenação é o ajustamento interpessoal com fluxos pouco significativos de autoridade formal, de modo geral, sendo uma característica adequada para as organizações que atuam em ambientes complexos e muito mutáveis, de que a saúde é exemplo notável (Mintzberg, 1982 – ver link).
Em suma, o “bom governo” depende de uma máquina pública dotada de boa liderança, de um corpo técnico qualificado, de um ambiente político de interação e ecumenismo, de processos de gestão resolutivos, ágeis e não burocratizados. Mas, acima de tudo, importa – e muito! – que exista e esteja presente no cenário uma sociedade civil bem informada e organizada.

Agora vamos ao ponto culminante desta digressão. Que tal tentarmos qualificar o atual governo do DF em termos de algumas das categorias expostas acima? Ver o quadro abaixo, a ser pontuado de 1 a 5 (1=ausente; 2=medíocre; 3=médio; 4=bom; 5=excepcional):

  • 1. Capacidade de liderança (no Governo como um todo e na área da Saúde, por exemplo)
    2. Propostas factíveis e inovadoras de ação
    3. Incentivos à dedicação e ao cumprimento do dever por parte do funcionalismo
    4. Percepção positiva por parte dos usuários das ações de governo
    5. Uso adequado de recursos simbólicos (continuidade, seriedade, programas, exemplaridade, visão de futuro)
    6. Entrelaçamento de dinâmicas entre governo e sociedade civil
    7. Cultura de prestação de contas (accountability), com maior responsabilização e transparência do Poder Público
    8. Qualificação e prestígio do corpo técnico de carreira
    9. Modernidade dos processos de gestão
    10. Sociedade civil bem informada e organizada

Vamos nessa? Confesso que a minha avaliação de tal lista de atributos deixa longe de ser alcançada a possibilidade de existir aqui um real “bom governo”. Fico, no máximo, com uma reles nota três para a maioria dos quesitos, assim mesmo com algum favor…

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Quer saber mais?
• GOULART, F. A. A., 2007. Saúde da Família: boas práticas e círculos virtuosos. Uberlândia: EDUFU Editora.
• HIRSCHMAN, A., 1984. Against parsimony: Three easy ways of complicating some categories of economic discourse. American Economic Review, 74: 93.
• MINTZBERG, H., 1982. Structure et dynamique des organisations. Paris: Les Éditions d´Organisation.
• PUTNAN, R., 1996. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas.
• TENDLER, J., 1998. Bom governo nos trópicos: Uma visão crítica. Brasília/ Rio de Janeiro: ENAP/ Revan Editora.

 

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