Mais um relatório na saúde (para a crítica devoradora dos ratos…)

Deu na mídia local que entidades da área da saúde realizaram vistoria em um hospital no DF e encontraram situações perturbadoras. Especificando, tais entidades são o Ministério Público; os Conselhos Regionais e Sindicatos de Médicos, Enfermeiros, Dentistas, Farmacêuticos e Engenheiros; o Conselho de Saúde do DF, além da OAB. O hospital abordado foi o HR de Ceilândia. O dia da visita (porque ela se deu em um único momento) foi 14 de maio pp. As unidades visitadas: emergência, pediatria, UTI neonatal, centro obstétrico, além de odontologia, UPA e uma “sala vermelha”, seja lá o que isso for. As conclusões apontaram para superlotação, falta de equipamentos, déficit de pessoal, más condições gerais de atendimento. Outro relatório semelhante havia sido produzido em 2012, trazendo essencialmente as mesmas conclusões. Cabe indagar: haveria alguma novidade nisso? Ou o mais importante: o que as entidades promotoras pretendem fazer com tal informação?

  • SUMÁRIO: Entidades diversas do setor saúde no DF trazem à luz mais um relatório relativo aos serviços prestados no Hospital de Ceilândia. Muito negativo, diga-se de passagem. Mas o que é avaliar? É preciso que seja algo muito bem fundamentado e alicerçado em evidências científicas, e não apenas uma ação voluntarista e pontual, mesmo que seja bem-intencionada, entre parceiros que possuem objetivos diferentes. Fora disso, sua validade é limitada. Afinal, o que move um promotor, um sindicalista, um membro de corporação, um conselheiro (digamos que seja usuário do sistema), um causídico (a quem interessaria defender ou atacar alguém ligado ao caso) e um engenheiro (certamente preocupado com estruturas), são objetivos totalmente diferentes. Mas o importante a dizer é: tal documento, que se reitera ao longo do tempo, não mostra nada de novo, pois, afinal, quem desconhece que os serviços de saúde que existem por aqui são sucateados fisicamente; que faltam pessoas para trabalhar e que muitas delas são pouco qualificadas (ou cumpridoras apenas medíocres de suas tarefas); que os processos de gestão na saúde estão estacionados na primeira metade do século passado; que nem de longe o que se tem no DF merece o nome de “rede”? E a pergunta que não quer calar: qual é o modelo de gestão e assistência que se pretende tomar como parâmetro de qualidade para avaliar o que aí está? De fato, não precisamos de mais relatórios e nem mesmo de novas investigações, pelo menos deste tipo primário e pouco substantivo, no qual se formulam rol de problemas (como aqueles de roupa suja) nos quais azulejos rachados na cozinha e a falta de protocolos formais para procedimentos cirúrgicos, por exemplo, são qualificados em pé de igualdade, dentro de uma exaustiva lista de problemas em que acabam se transformando os tais relatórios. É preciso ir além disso – e é o que procuro demonstrar com o presente texto.

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LEIA A SEGUIR O TEXTO COMPLETO:

MAIS UM RELATÓRIO NA SAÚDE DO DF

Para início de conversa, seria possível questionar os aspectos metodológicos de tal relatório. Com efeito, qual seria o grau de generalização que se poderia esperar de uma investigação feita em um único dia (ou talvez, em poucas horas), em uma unidade isolada do sistema, sem instrumentos predefinidos de avaliação, além da participação de pessoas qualificadas, sem dúvida, mas supostamente não para um processo de avaliação? Por que AVALIAÇÃO é algo muito bem fundamentado e alicerçado em evidências científicas, e não apenas uma ação voluntarista e pontual, mesmo que seja bem intencionada, entre parceiros que possuem objetivos diferentes.

Porque deve ser lembrado que o que move um promotor, um sindicalista, um membro de corporação, um conselheiro (digamos que seja usuário do sistema), um causídico (a quem interessaria defender ou atacar alguém ligado ao caso) e um engenheiro (certamente preocupado com estruturas), são objetivos totalmente diferentes. O mínimo que pode acontecer é a reprodução da tradicional fábula oriental que fala do encontro de seis cegos com um elefante, no qual um identificará o animal como palmeira, ao lhe tocar as patas; outro como corda; outro o perceberá semelhante a uma serpente, outro a uma lança, ou uma parede – e assim por diante. Imaginem o que seria um possível “relatório” de tal encontro insólito?

Mas podemos ir além de especulações metodológicas. Este relatório – mais um de uma série – não mostra nada de novo. Quem não sabe, afinal, que os serviços de saúde que existem por aqui são sucateados fisicamente; que faltam pessoas para trabalhar e que muitas delas são pouco qualificadas (ou cumpridoras apenas medíocres de suas tarefas); que os processos de gestão na saúde estão estacionados na primeira metade do século passado; que nem de longe o que se tem no DF merece o nome de “rede”? E a pergunta que não quer calar: qual é o modelo de gestão e assistência que se pretende tomar como parâmetro de qualidade para avaliar o que aí está? Silêncio ensurdecedor!

Para falar a verdade, penso que não precisamos de mais relatórios e nem mesmo de novas investigações, pelo menos deste tipo primário e pouco substantivo. O que importa saber já está revelado de sobra, seja na mídia, nas atas do Conselho de Saúde, nos processos do MP, na consciência coletiva de profissionais e cidadãos.

Com efeito, visitas como esta ora, em foco, acabam formulando apenas um rol de problemas, semelhante àquele da roupa suja que se mandava às lavadeiras ou lavanderias, antes do advento de self-service laundry. Em tais listas, meias e pesados casacos de inverno são tratados como itens numéricos, nada mais. Da mesma forma, azulejos rachados na cozinha e a falta de protocolos formais para procedimentos cirúrgicos, por exemplo, são qualificados em pé de igualdade, dentro de uma exaustiva lista de problemas em que acabam se transformando os tais relatórios.

É preciso ir além disso…

É clássica a categorização dos componentes de uma determinada organização ou serviço que quer avaliar em estruturas, processos, produtos e resultados. O tipo simplório de investigação avaliativa, aqui examinado, geralmente se concentra nas estruturas físicas e humanas existentes, além da produção (ou da falta dela) dos serviços, em termos de procedimentos, consultas, cirurgias, refeições oferecidas, papéis encaminhados no prazo certo etc. Os processos, por exemplo, protocolos de admissão, atividades de capacitação, fluxos internos, referências, ações intersetoriais, comunicação com a clientela, além de outros, são tratados com superficialidade, assim mesmo quando o são.

Mas na questão dos resultados é que a porca torce o rabo (ou para usar outra “zoometáfora”, a vaca vai para o brejo…).

Assim, a egrégia visita das autoridades ao HR Ceilândia, se preocupou, por exemplo, em verificar se os diabéticos de lá estão sofrendo amputações? Se as pessoas que ali comparecem passaram pela atenção primária antes? Se os prazos de espera para cirurgias são compatíveis com as condições clínicas dos pacientes? Se o grau de satisfação da clientela é adequado e se está em incremento ou declínio? Se estão sendo internados pacientes com condições que poderiam ter sido resolvidas na atenção primária?  Se há cadastramento e seguimento de todos (ou da maioria) dos hipertensos e diabéticos na área? Idem para mamografias e exames de Papanicolau?

E a pergunta fatal, enfim: qual o modelo assistencial e gerencial que se pretende tomar como padrão ouro? Se for a organização do cuidado em saúde a partir da regulação e ordenamento do sistema, inclusive hospitalar, a partir da atenção primária à saúde, certamente estaremos em bom caminho. Mas isso não é sequer mencionado ou mesmo cogitado nos tais relatórios.

É preciso avaliar serviços de saúde, sim, mas não através de comparações incomparáveis ou de concepções voluntaristas, simplistas e sem base científica, nas quais a eventual presença de baratas na cozinha vale tanto quanto a espera de seis meses para uma simples colecistectomia. Muito menos devem servir tais avaliações para buscar holofotes, que por certo se apagarão quando surgir mais um desses calhamaços chamativos, que muitas vezes acabam passando ao público como uma “solução” (falsa, na verdade) para o problema que se quer resolver.

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O que fazer, então, para dar jeito na Saúde do DF? Já existem coisas de sobra escritas sobre isso, algumas delas publicadas aqui neste blog. Mas para resumir, pelo menos cinco ações deveriam acontecer, as seguintes:

  1. Modelo assistencial. Que fique claro: saúde se organiza é pela porta de entrada, como acontece em todo o mundo civilizado. Não é preciso inventar a roda, ela já se move sem solavancos em muitos lugares. A atenção primária à saúde bem organizada, isto é, com trabalho em equipe, cobertura ampla, sem soluções de continuidade no tempo e no espaço, sem competição com a aquela atenção básica que só funciona atrás do balcão, além de formadora de vínculos entre equipe e comunidade, é a grande solução para a ordenação do sistema de saúde como um todo, seja aqui e alhures. Sua estruturação bem feita dispensa toda aquela parafernália das centrais de regulação, que na verdade constituem fontes inesgotáveis de recursos para interesses comerciais e também de ultrapassagem de filas e manipulação eleitoreira. Acima de tudo, deve-se assumir a prática radical do conceito de redepara o sistema assistencial, onde cada ponto ou nó (unidades básicas, ambulatórios especializados, UPAs, laboratórios, hospitais de diversas complexidades etc) deixa de fazer parte daquela hierarquia piramidal, já superada, para se constituir em pontos pulsantes, coordenados a partir da porta da entrada pela APS renovada. É em tal contexto que as diversas tecnologias de informação, como Telessaúde, agendamento eletrônico de consultas, informação on-line, autocuidado e outros podem fazer total sentido. É claro que falta gente para tanto, em termos de quantidade e, principalmente, qualidade. Mas o GDF tem a rara oportunidade de dispor simplesmente de uma escola de formação em Medicina e Enfermagem, a ESCS, e é através dela que as coisa podem e devem caminhar neste sentido. Aliás, esta instituição é bem pouco lembrada ou tratada marginalmente nas propostas dos candidatos.
  2. Modelo gerencial. Em poucas palavras, descentralização orçamentária e decisória, de modo que cada regional de saúde disponha de orçamento próprio e cada unidade possa movimentar recursos sem enfrentar a poderosa e nem sempre inteligente ou permeável burocracia financeira centralizada das instituições. Ao mesmo tempo, salvaguardas institucionais devem ser estabelecidas, tais como a participação direta de usuários no nível das unidades, o monitoramento de resultados, os sistemas de custos operados em tempo real, a responsabilidade sanitária assegurada por lei, os sistemas de informação eficientes e ativos. E que o poder de decidir também se estenda às bordas do sistema de saúde, de forma a contemplar as necessidades da população, a ser ouvida fora daquele cercadinho da “paridade” da Lei 8142, contemplando de fato as nuances da realidade local, com participação de cidadãos diretamente interessados e não daqueles que representam entidades que muitas vezes ninguém conhece.
  3. Entorno. O Entorno é um problema do DF, sim. Não deve ser considerado como mero transtorno à vida de quem mora na Capital Federal. Aquela gente está ali porque foi, muitas vezes, atraída por políticas clientelistas e irresponsáveis. Se pudessem, morariam na Capital… Além do mais, são pessoas que a maioria das vezes trabalham dentro do “quadradinho” e ajudam a girar a economia daqui. A solução deve passar, sim, pela gestão solidária e responsável, envolvendo principalmente os governos do DF e de Goiás, além das municipalidades, que não podem também deixar de assumir responsabilidades, relegadas muitas vezes a segundo plano na hora da emancipação, quando o interesse eleitoreiro fala mais alto. A solução passa também pela gestão federal: a União, através do Ministério da Saúde deve assumir um papel de coordenação na constituição de um sistema de saúde realmente integrado, dentro do espírito da RIDE. O modelo da Segurança Pública, no qual a União tem estado presente no Entorno, através da Força Nacional, já mostrou que não basta uma “intervenção”, mas sim procurar meios de atuação conjunta, sem abrir mão da responsabilização de cada nível de governo, de cada governador, de cada prefeito e de cada membro do Legislativo. Isso nada mais são do que atributos da verdadeira democracia.
  4. Blindagem política. Esta expressão tem sido utilizada com mais frequência para indicar a vedação a cabos eleitorais e congêneres de ocuparem cargos comissionados no Executivo e no Legislativo. Tal prática, várias vezes centenária no Brasil, precisa ser controlada com rigor, de forma a ficar restrita a apenas a poucos cargos disponíveis, a bem do sucesso das políticas públicas. Mas não é só isso. A máquina pública brasileira é altamente permeável aos interesses privados, seja de empresas, seja de grupo políticos, seja de sindicatos. Estes últimos, quando não são cooptados, optam por atitudes de bloqueio e grevismo. A blindagem tem que alcançar tudo isso…
  5. Responsabilização por mérito e resultados. Os bons sistemas de saúde no mundo já fizeram tal opção. O que determina o vencimento dos trabalhadores passa a ser uma combinação de salário e pagamentos por valor e desempenho. Não basta produzir – e em quantidades razoáveis! – tem que gerar impactos e resultados também. Isso deve valer também para os contratos que o setor público estabelece com o privado, por exemplo, na prestação de serviços hospitalares ou de apoio. É claro que as lideranças corporativas sindicais não apreciam muito algo assim, levantando logo a pecha de “assédio moral” ou algo parecido. Existem fórmulas para isso aplicáveis a diversas situações, por exemplo, na atenção primária à saúde, na qual a remuneração poderia crescer, por exemplo, diante da redução das internações sensíveis à mesma; nos hospitais, mediante os desfechos favoráveis, ou a redução dos tempos de internação; nos ambulatórios de especialidades, pela redução de exames com resultados negativos ou simplesmente não justificados. Opções não faltam.
  6. Foco em quem precisa mais. Chega de nomear exaustivamente os destinatários das políticas públicas, naquelas longas listas que começam com LGBT, passam pelos indígenas do Setor Noroeste e terminam, quando terminam, em ”ciganos”. A soma de todas essas minorais, por mais carentes e intensivamente citadas que seja, não perfaz o todo social. Vamos combinar: política pública se faz com o lema “mais para quem precisa mais” – e no Brasil as carências são fundamentalmente econômicas, ou de oportunidades desiguais perante a vida. É este que deve ser o foco da política pública, em especial na Saúde.

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  1. A irônica expressão “crítica devoradora dos ratos”, que aparece no título deste post foi copiada de Karl Marx, que a utilizou no irônico prefácio de um dos seus livros. Por aqui, parece que teremos muito roedor alimentado…

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Temos tratado deste tema, ou seja, de “o que fazer para a saúde no DF tomar jeito” exaustivamente aqui no blog. A relação de posts abaixo mostra bem isso;

Veja também nota sobre o relatório aqui em foco, do site do CRM-DF:

http://www.crmdf.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21746:2019-05-16-17-26-45&catid=3

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