No DF: controle da dengue e cultura organizacional

Leio nos jornais locais que o funcionário da SES-DF responsável pelo controle da dengue, ou pelo menos pelas operações de “fumacê” foi destituído de suas funções, aparentemente devido aos maus resultados obtidos com seu trabalho. Dias antes foi a vez da diretora do Hospital de Sobradinho, sobre a qual a gentil manifestação do Governador foi, textualmente “ou ela sai ou cai o secretário”.  Como se vê, aquele interessante estilo “deixa que eu chuto”, do qual tem ser observado presença marcante no Palácio do Planalto, já subiu o Eixo Monumental e alcançou, gloriosamente, também o Buriti, pouco mais de um km acima. Trata-se de uma história de longo curso na nessa curiosa civilização subequatorial que é o nosso país: o mandatário culpa o subordinado e o subordinado dirige a culpa para mais abaixo, de tal forma que a culpa de tudo o que acontece de ruim na repartição possa vir a ser da moça do cafezinho. Ah! Enquanto isso todos culpam o governo – qualquer governo – e da mesma forma os governos culpam os cidadãos (“por que raios foram votar na gente?”). Uma coisa é certa: ninguém se assume diretamente culpado. Aquela história de ministros se suicidando de vergonha em frente a câmeras de TV só acontece entre os japoneses mesmo, aquele povo bárbaro!

  • SUMÁRIO: Na questão da Dengue no DF, que ora nos ameaça pra valer, além da transmissão vetorial, há também a “transmissão de culpa” institucional, para baixo, para cima, para os lados, para lugar nenhum. Seria um traço cultural marcante na vida das instituições, ainda mais em um país que pouco valoriza o conhecimento, adepto, além do mais, do “sabe com quem está falando” e do improviso e o “jeitinho”. E as organizações humanas (o Governo do DF e sua Secretaria de Saúde fazem parte delas) são profundamente marcadas pela cultura, ou por um entrecruzar de culturas, entre elas, aquela do “empurra”. Todavia, ensinam os antropólogos, que o modus operandi de uma organização depende da existência de uma construção coletiva, moldada pela tradição institucional, política e social local; ou da lida com fatores diversos e por vezes antagônicos; com a aceitação ou a rejeição das lideranças; idem em valores, carisma, ideologia, conteúdos simbólicos e técnicos; com as fontes de inspiração que fazem com que os servidores se movam em torno de uma visão inspirada na valorização da vida associativa, das decisões responsáveis focadas no bem comum; com a práxis auto-responsabilizadora face aos deveres institucionais. Convenhamos, entretanto, que fatos como a emissão de documentos de identidade diferenciados e carregados de prerrogativas para familiares e autoridades; as promessas de palanque que ultrapassam as leis e mesmo os bons costumes republicanos; os escândalos etílicos perpetrados em primeira-classe de voos internacionais, não favoreceriam, nem um pouco, o que deveria se constituir como atributos de liderança ou, no mínimo, como pedagogia de exemplo. Certamente não seria por acaso que o controle da Dengue e de muitas coisas mais vai de mal a pior aqui no DF.

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Em primeiro lugar, preciso esclarecer para os mais jovens esta história de “deixa que eu chuto”. Assim se expressava o teatrólogo e cronista Flavio Rangel, falecido em 1988, quando falava em suas crônicas do ex-presidente João Figueiredo, aquele que dizia preferir o cheiro de seus cavalos ao cheiro do povo e que, se porventura ganhasse um salário mínimo, daria um tiro na cabeça. Fez escola, pelo visto…

A verdade é que, além da transmissão vetorial propriamente dita, há uma eterna “transmissão de culpa”, para baixo, para cima, para os lados, para lugar nenhum, representa um traço cultural marcante na vida das instituições. Em um país que dá pouco valor ao conhecimento, que é adepto do “sabe com quem está falando” e que valoriza o improviso e o “jeitinho”, tal traço vira uma linha que se perde no infinito. E as organizações humanas (o Governo do DF e sua Secretaria de Saúde fazem parte delas) são profundamente marcadas pela cultura, ou por um entrecruzar de culturas, entre elas, aquela do “empurra”.

A discussão referente a tal tema pode ser desenvolvida mediante referenciais da Antropologia, trazidos exemplarmente na clássica obra de Morgan (1986) na qual se discute a possibilidade de se compreender as organizações, entre outras abordagens, a partir de uma metáfora da cultura. Assim podemos ter ingredientes culturais diversos e por vezes antagônicos, como a aceitação ou a rejeição de lideranças assentadas em valores, carisma, ideologia; o apelo a conteúdos simultaneamente simbólicos, ideológicos e técnicos; os atores se movendo em torno de aspectos como militância, inquietude, visão progressista ou conservadora de mundo; adesão ou refugo à participação inspirada em determinados valores, referenciais simbólicos ideologias, vocação; valorização, ou não, da vida associativa, das decisões altruístas, do bem comum e da coesão grupal; o compromisso ou a rejeição à aceitação de mudanças organizacionais, além da aceitação ou da recusa da auto-responsabilização face aos deveres institucionais.

É assim que padrões de crenças e significados compartilhados, como ocorre em toda organização humana, podem influenciar a capacidade da organização em lidar com os desafios que enfrenta. “Ser membro” de uma organização desperta um conjunto complexo de obrigações, mas também de entusiasmo e outros valores simbólicos, além da responsabilidade de compartilhar problemas e ideias inerentes à mesma – ou não. A cultura organizacional, lembra Morgan, não é algo imposto de fora; ao contrário, ela se desenvolve durante o próprio curso das inúmeras interações que permeiam as organizações e as articulam com seu ambiente social, constituindo-se assim um autêntico processo de construção e reconstrução da realidade, ativo e contínuo, que permite às pessoas ver e compreender eventos, ações, objetos, expressões e situações particulares e de maneiras distintas. Como resultado, as organizações podem ser compreendidas através daquilo que pensam, dizem e realizam as pessoas dentro delas, mediante alguns artefatos culturais, ou seja, as estruturas, as regras, as políticas, as missões, os procedimentos, que compõem a vida institucional. Para o autor, a cultura é um amálgama normativo que mantém a organização unida.

Formam-se assim artefatos culturais que na verdade oferecem pistas de significados ainda mais profundos, de natureza subjetiva, que são cruciais para o entendimento de como funciona a organização em seu cotidiano. Tal substrato ideológico se materializa em práticas institucionais de forma muito mais comum do que se imagina. Em outras palavras, a cultura das organizações tem por fundamento não só as capacidades como as incapacidades da mesma e trazem como resultados, em termos evolutivos, certas características que definem os modos pelos quais a organização opera, em uma construção realizada no âmbito das atitudes e dos valores de seus servidores. Mas não se trata, é claro, de classificar as culturas como boas ou más, pois seus derivados são compatíveis com a realidade social em que se desenvolveram e representariam um dado a mais, embora significativo, na interpretação dos processos subjacentes nas organizações.

Posto isso, é o caso de se indagar: seria possível mudar os padrões culturais internos das organizações, tomando como caso concreto o fenômeno da “transmissão (ou ‘empurra’) de culpa”, no âmbito de um governo de uma cidade ou a gestão de uma repartição pública com mais de 30 mil funcionários, como é a SES-DF?

A resposta a isso deve se dar dentro de um denso cenário de considerações. Por exemplo, da existência de uma real construção coletiva, moldada pela tradição institucional, política e social local; ou da lida com fatores diversos e por vezes antagônicos; com a aceitação ou a rejeição das lideranças; idem em valores, carisma, ideologia, conteúdos simbólicos e técnicos; com as fontes de inspiração que fazem com que os servidores se movam em torno de uma visão inspirada na valorização da vida associativa, das decisões responsáveis focadas no bem comum; com a práxis auto-responsabilizadora face aos deveres institucionais.

Afinal, a tal cultura organizacional jamais seria algo imposto de fora, mas ao contrário se forma com as inúmeras interações que permeiam as organizações e as articulam com seu ambiente social, frente às quais é fundamental a existência de exemplos que venham das lideranças.

E para finalizar convenhamos: a emissão de documentos de identidade diferenciados e carregados de prerrogativas para familiares e autoridades; as promessas de palanque que ultrapassam as leis e mesmo os bons costumes republicanos; os escândalos etílicos perpetrados em primeira-classe de voos internacionais…  Nada disso parece ser bom estofo para o que deveria se constituir como atributo de liderança ou, no mínimo, como pedagogia de exemplo.

E assim se lascaram a diretora de um hospital e o chefe do fumacê…

Não é a toa que o controle da dengue e de muitas coisas mais vai de mal a pior aqui no DF.

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