Por mais que isso incomode os aficionados por grandes novidades, a maior inovação em termos da organização de sistemas de saúde já vai completar um século de existência e há pelo menos 70 anos está na base do sucesso dos sistemas de saúde que realmente fazem a diferença no mundo. Refiro-me à Atenção Primária à Saúde (APS), que no Brasil é também chamada de Atenção Básica (AB), tendo sua expressão corporificada na Estratégia de Saúde da Família. Ela vem dando certo em países tão diferentes como Reino Unido e Canadá; na Escandinávia, bem como em remotos e pobres rincões da África. Em Cuba também (mas, atenção: não é coisa de comunistas!). Nestes lugares, a aplicação de tal “novidade” gerou sistemas de saúde mais equitativos, eficientes, produtores de benefícios reais para as populações e muito bem aceitos por elas. O Brasil aderiu um tanto tardiamente, com a referida Saúde da Família (SF), mas mesmo assim os resultados obtidos são notáveis, conforme atesta a literatura especializada internacional. E aqui no DF, como andam as coisas?
- SUMÁRIO: A Atenção Básica (Atenção Primária à Saúde – APS) , no Distrito Federal, mostra a coexistência histórica de diferentes modelos de atenção primária, com um superado sistema tradicional no qual a noção de “porta de entrada”, essencial na APS atual, não vigora plenamente. A partir de 2017 ocorreram mudanças na atenção básica local, buscando transformá-la em real coordenadora do cuidado nas áreas abrangidas, além de expandi-la quantitativamente e aprimorar sua estrutura e seus processos, em busca de maior qualidade e ampliação de sua cobertura, de meros 25% de para cerca de 70%. Tal processo de “conversão” não deixou de ser uma iniciativa, meritória, embora com muitas questões a resolver. Trabalho recente sobre internações por condições sensíveis à APS (ICSAP) no Distrito Federal versus outras capitais brasileiras mostrou que não se observaram efeitos esperados neste indicador. Em suma, há muita coisa a fazer no DF, por exemplo, superar a baixa expansão baixa e sua distribuição apenas pontual, além de sua concorrência com modalidades menos efetivas seja de atenção básica ou de serviços emergenciais, com a formação de pequenas “ilhas” (palavra de deriva de isola, que também está na raiz de “isolamento”) organizadas dentro de um verdadeiro oceano de desorganização, tais condições em que a APS é realmente menos efetiva. Ofereço ao final uma tentativa de sistematização, sem caráter exaustivo, do que seriam boas práticas gerenciais e políticas na implementação da AB/APS em um determinado território, em termos de condução; trabalho em equipe; práticas sociais; governança; articulação externa; implementação programática; inovações e sustentabilidade, dentro de um cenário onde imperem a capacidade de tomada de decisões, a liderança, o espírito empreendedor, o embasamento ideológico, além de qualificação técnica e continuidade.
***
A situação encontrada no Distrito Federal, é a da coexistência histórica de diferentes modelos de atenção primária, o da SF e o dos antigos postinhos, que em muitos lugares dominavam o cenário. Embora tenha gente que ainda pensa serem a mesma coisa, isso não é verdade. Na SF a demarcação por território de moradia é obrigatória, de tal maneira que tanto os usuários como as equipes sabem quem é responsável por quem, além de dispor de tecnologias mais apropriadas de abordagem, entre as quais o trabalho dos agentes comunitários, as visitas domiciliares, o trabalho em equipe, a abordagem diferenciada dos demandantes. No sistema tradicional a noção de “porta de entrada”, essencial na APS atual, não é levada tão a sério. As pessoas podem ir aos “postinhos” como a qualquer outro lugar da rede – e assim o fazem.
Alguns dados comparativos dentro o DF e capitais brasileiras, mostradas nas duas figuras abaixo, mostram a nossa defasagem em termos de cobertura.


O curso histórico da Estratégia Saúde de Família do Distrito Federal, entre 2011 a 2015, mostrado na figura abaixo, demonstra também o baixo impacto de tal programa em nossa cidade, até anos recentes.

A partir de 2017, porém, ocorreram algumas mudanças no processo de trabalho da atenção básica no DF, buscando transformá-la em real coordenadora do cuidado nas áreas abrangidas (um conceito consagrado nos países que a têm implantada seriamente), além de expandi-la quantitativamente e aprimorar sua estrutura e seus processos, em busca de maior qualidade. E dentro disso surge, necessariamente, a questão da qualificação dos recursos humanos, de modo geral preparados para outro tipo de abordagem, baseado na formulação tradicional da atenção básica nos postinhos. Assim, o governo de então criou a ambiciosa proposta de “conversão”, com o objetivo de passar dos 25% de cobertura para cerca de 70%, além de promover melhorias nas estruturas e processos de trabalho das equipes.
Sobre a tal “conversão”, já havia publicado aqui no blog, há um ano atrás, comentários a respeito da iniciativa, meritória, sem dúvida, mas prenhe de questões a debater. A principal delas seria o pouco tempo que restava para a mudança de governo, o que poderia comprometer um processo de tal envergadura. Considerei que era preciso saber, também, se os tais “convertidos”, cristãos-novos até ontem vinculados a velhas práticas, possuíam motivação autêntica para terem aceitado o processo ou se estariam agindo por interesses mais particulares, por exemplo, vontade de permanecerem na área geográfica onde já prestavam serviços, por comodidades pessoas ou familiares. Além disso, existiriam questões por assim dizer “ambientais”, relativas ao costumeiro assédio que a sempre fisiológica Câmara Legislativa do DF e os não menos razoáveis sindicatos de categorias, principalmente de médicos, costumam impor ao GDF. Mas, em todo caso, torcia que, para o bem de todos, melhor seria de a iniciativa fosse bem sucedida.
Em trabalho anterior, realizado por mim em 2013, já havia observado que no contexto daquele momento no DF, mas que também refletia o acontecido nas últimas décadas, que a gestão da saúde não honra a herança dos que conceberam o sistema de saúde inaugural da cidade, no qual a cobertura universal, a regionalização, a descentralização das ações e a qualidade dos serviços prestados eram pontos fundamentais. Além disso, podia ser inferido que um modelo assistencial centrado na atenção básica, à semelhança de outras capitais brasileiras e de países que podem ser considerados de excelência em termos de organização de sistemas de saúde, está longe de ser alcançado no DF.
Naquela ocasião, a comparação com outras capitais brasileiras do mesmo porte, mesmo de regiões com indicadores econômicos mais frágeis, já era reveladora da fragilidade do sistema local na questão da atenção básica, embora se mostrasse grande descompasso entre o discurso das autoridades e a realidade das cifras de cobertura.
Assim, a conclusão era de que, mesmo com o atraso histórico registrado no desenvolvimento da atenção básica, a recuperação e o ritmo de retomada da implementação da ESF vinham se revelando bastante aquém das expectativas e das necessidades, embora a referida análise estivesse prejudicada pela ausência de informações mais qualitativas, por exemplo, prevalência de internações por condições sensíveis, critérios da distribuição das equipes no território, resolutividade, qualidade e humanização do atendimento prestado, bem como permanência de concorrência de dois sistemas, ou mais, papel das UPA, planejamento baseado em demandas e dados epidemiológicos, processos de capacitação etc.
Recentemente tiver oportunidade de ler um interessante e recente trabalho sobre a frequência das internações por condições sensíveis à APS (ICSAP) no Distrito Federal, com dados comparativos com outras capitais brasileiras, ao longo da última década. A medida das ICSAP representa um dos indicadores utilizados mundialmente para avaliar, ainda que indiretamente, a eficácia da APS, partindo do princípio de que, para algumas condições de saúde, uma APS realmente oportuna e de boa qualidade pode evitar as hospitalizações indevidas ou reduzir sua frequência.
Assim, no período analisado, no DF ocorreu redução da participação relativa das ICSAP nas faixas etárias de 50 a 59 e 60 a 69 anos, porém com estabilidade entre crianças e adolescentes, bem como nas faixas etárias abaixo de 20 anos, o que surpreende negativamente, por ser a população jovem uma das prioridades na APS, para as quais pode estar ocorrendo barreiras de acesso. Ou seja, não se observam os efeitos esperados, devendo-se considerar, entretanto, o fato da expansão de cobertura de Equipes de Saúde da Família ter sido recente em nossa cidade.
Em síntese, há muita coisa a fazer realmente neste campo, aqui no DF. Um grande problema, além da expansão quantitativamente baixa e tardia da estratégia de Saúde da Família, é a sua distribuição ainda pontual em muitas partes do território e sua concorrência com modalidades menos efetivas e de outra índole conceitual, seja de atenção básica ou de serviços emergenciais (as UPAs e os Pronto Socorros). Formou-se assim uma rede bastante incompleta e imperfeita, com a criação de pequenas “ilhas” (palavra de deriva de isola, que também está na raiz de “isolamento”) organizadas dentro de um verdadeiro oceano de desorganização. Em tais condições, a APS é realmente menos efetiva.
Sendo assim recorro a um escrito meu de quase 20 anos atrás, parte de minha tese de doutorado na ENSP/Fiocruz, com o título de “Experiências de Saúde da Família: cada caso é um caso?”. Nela, estudei cinco experiências de ESF consideradas bem sucedidas na ocasião, ou seja, Vitória da Conquista-BA; Curitiba-PR; Ibiá-MG; Contagem-MG; Niterói-RJ, além do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre-RS. Refletindo sobre os processos de implantação das mesmas, levantei algumas evidência de práticas políticas bem sucedidas, que contribuíram para seu bom desempenho, Em suma, mesmo sendo “cada caso um caso” eles eram unidos por um conjunto de similaridades. Imagino que isso possa ser útil ainda hoje, como elemento de análise da política de atenção básica no DF, a qual como se vê, deixa muito ainda a desejar.
Assim, a lista abaixo oferece uma tentativa de sistematização, mas certamente não tem caráter exaustivo, dada a riqueza e a complexidade dos processos em jogo. Além do mais, procurei inserir nestas linhas apenas aquilo que parece interessar ao maior conjunto possível de atores, deixando de lado, portanto, aspectos considerados demasiadamente particulares ou de aplicação restrita ao caso individualizado.
(a) Boa condução é muito importante e, entre seus atributos, podem ser arrolados capacidade de tomada de decisões, liderança, carisma, espírito empreendedor, embasamento ideológico, além de qualificação técnica e continuidade.
(b) A boa condução teria pouco a oferecer se não contasse com boas equipes técnicas, aspecto que pode ser traduzido por qualificação de conhecimentos, tradição de discussões em saúde, base ideológica, capacidade empreendedora associada a militância, sintonia com o projeto político, aceitação da liderança, organização e inserção em entidades representativas.
(c) Boas práticas sociais também possuem um lugar de destaque, traduzidas: por equilíbrio e sintonia entre as propostas de participação originadas do governo e as da sociedade; associação sinérgica entre as noções de responsabilidade pública e de direito à saúde; bem como produção de efeitos concretos como resultado de tais práticas.
(d) Como decorrência, a presença de um bom governo, que se traduz por práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além do campo da saúde, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública.
(e) Boa articulação externa ou a prática de um cosmopolitismo político e sanitário, de preferência direcionada a interlocutores seletos individuais ou institucionais, que sejam capazes de oferecer respaldo técnico e cobertura política ao desenvolvimento dos projetos e programas de governo.
(f) Boa implementação programática, o que significa investimento em padrões efetivamente substitutivos dos modelos de atenção, buscando a neutralização da competição e do antagonismo com os elementos estruturais e ideológicos dos velhos regimes de práticas.
(g) Desenvolvimento de inovações, seja do ponto de vista gerencial ou assistencial, diferenciando-as das meras novidades, mas tendo como diretriz norteadora a ousadia e o destemor frente às possibilidades de erro e reversão.
(h) Busca decidida da sustentabilidade das práticas desenvolvidas, não só em termos financeiros e de estrutura e processos, mas também nos planos cultural, simbólico e político, resultando no necessário enraizamento das experiências no imaginário da comunidade de usuários e dos tomadores de decisão.
(i) Efeito espelho: articulação e da difusão da experiência local entre interlocutores externos, diferenciados ou não, configurando a responsabilidade por uma pedagogia do exemplo fundamental no processo de construção de políticas públicas.
***
Para saber mais, acesse:
- https://veredasaude.com/2013/10/04/atencao-basica-no-df/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/05/14/conversao-em-massa-do-df/
- Pinto, LF; Mendonça, CS; Rehem, TC; Stelet, BP. Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP) no Distrito Federal: Comparação com outras capitais brasileiras na última década. Acessível em (1º de junho 2019): http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/internacoes-por-condicoes-sensiveis-a-atencao-primaria-icsap-no-distrito-federal-comparacao-com-outras-capitais-brasileiras-na-ultima-decada/17175?id=17175
- Goulart. FA; Saúde da Família: boas práticas e círculos virtuosos. Edufu, Uberlândia, 2007.

