A notícia é do dia 10 de junho de 2019, mas poderia ser de janeiro, fevereiro, março etc. De qualquer ano; de uma década atrás ou do século passado: tanto faz. O Correio Braziliense informa que a SES-DF está fazendo restrições ao atendimento em hospitais públicos, “sem data para acabar”. Excluem-se da restrição “quem não corre risco de morte”, mas sabe-se lá quais serão os critérios para determinar isso. Em todo caso, a Secretaria orienta os pacientes a procurarem unidades básicas de saúde, sobre cujo funcionamento também pairam dúvidas: seu número é suficiente? Estariam abertas nas noites e finais de semana? Suas equipes estão capacitadas e seu equipamento completo? Não iriam, por sua vez, encaminhar os demandantes de volta para os hospitais? Diz ainda a notícia que ao menos seis hospitais, nos últimos dias, dispensaram pacientes com quadro de saúde considerado menos grave, mais uma vez sem definir exatamente o que é isso. É bom não esquecer que uma simples dor no peito pode ser um infarto grave em estágio inicial, que só pode ser confirmado após observação e exames. Tal procedimento, segundo o explicitado em nota oficial da SES-DF, visaria atender todos aqueles com risco de morte, “para não repetir casos recentes”. Aplica-se aí uma espécie de “Lei de Paulo Guedes”, semelhante àquela que tentam aplicar às aposentadorias, ou seja, deixar para agir quando a morte estiver próxima. Na mesma matéria se lê que, em cinco meses de governo Ibaneis Rocha, foram exonerados cinco diretores de hospitais públicos, por motivo de “não apresentarem resultados”. Parece uma solução do tipo cortar a cabeça (ou outra parte do corpo) que esteja apresentando problemas. Ou de consertar o vazamento da torneira reparando o tampão da pia. Teriam jeito coisas assim? Já me detive sobre tal assunto, ou seja, da organização precária da rede pública no DF por diversas vezes aqui no blog (ver links ao final). Mas como o assunto não se esgota, entra governo sai governo, sou obrigado e retomar colocações anteriores, que continuam e continuarão valendo, sabe-se lá até quando.
- SUMÁRIO: Filas matinais na porta das Unidades de Saúde, presentes não só aqui no DF como em muitas partes do Brasil, fazem “partes da paisagem” urbana, como se sabe. Isso não reflete apenas o estado de desorganização e precariedade dos serviços de saúde em geral, como tem a ver diretamente com as restrições às internações hospitalares. Uma questão fundamental: toda gente que está nessas filas deveria ou precisaria estar ali? Um raciocínio simples: há quem precise de atendimento “aqui e agora”; outros são para “agora”, mas não “aqui”; há os que são para “aqui”, mas que podem esperar; ou seja, “não agora”., além da turma do “não aqui e nem agora”. Por incrível que pareça, a regulação dessas filas, em boa parte dos serviços de saúde, cabe a um utensílio inventado há muitos séculos: o relógio. Para superar isso há ideias no cenário, sendo a prática do acolhimento uma delas, em sentido físico ou simbólico. O acolhimento se completa com o uso das classificações de risco, em uma de suas diversas variedades, visando evitar atrasos no atendimento a pacientes realmente graves, que precisam ser atendidos rapidamente, diferenciando-os daqueles que podem aguardar o atendimento, sem correrem riscos especiais, separando o “aqui” do “não aqui e o “agora” do “não agora”. Acolhimento e classificação de risco representam muito mais do que “triagem”, à moda antiga. Soma-se a isso a utilização de protocolos. Em tudo isso a enfermagem tem um papel especial, ao defender os pacientes da dispensa, devolução ou encaminhamento antes que recebam atendimento ou pelo menos alguma forma de orientação. Coisas assim certamente terão seus adversários. Os pacientes, por exemplo, podem ter outras expectativas, de serem rapidamente atendidos e recebam logo seus pedidos de encaminhamento, exame ou receita, reagindo negativamente a um eventual “não agora”. Os médicos normalmente repudiam tentativas de racionalização, de qualquer natureza, por razões ideológicas que têm mais a ver com seu conforto no trabalho mais do que o de seus pacientes. Assim o papel da enfermagem é essencial, e deve ser de liderança, existindo uma tendência mundial no sentido de que a enfermagem desempenhe um papel crítico no aperfeiçoamento da porta de entrada dos sistemas de saúde, com práticas já consagradas em países com bons sistemas de saúde, como é o caso do Canadá, do Reino Unido, de Cuba e outros países. Uma coisa é certa: para um distúrbio dessa natureza, que afeta profundamente o sistema de saúde do DF, medidas paliativas não cabem, da mesma forma que soluções intempestivas do tipo cortar cabeças ou restringir o direito da população aos serviços de saúde só provocam mais dor e sofrimento, além de afastar cada vez mais uma solução definitiva para tais problemas.
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Tem solução? Com certeza tem… A primeira medida é ter decisão política (ou, se quiserem, vergonha na cara, revogadas as disposições em contrário).
Assim, é preciso ordenar de verdade o sistema de saúde. Um tripé de medidas já é conhecido de longa data: 1. Organizar os serviços de saúde sob a forma de redes; 2. Dar à atenção primária um papel de coordenação do sistema; 3. Atuar vigorosamente para desfazer os grandes “nós” do sistema, que geralmente são (a) a porta de entrada; (b) as emergências; (c) os sistemas de apoio.
É preciso também estabelecer padrões de qualidade e resolutividade para os hospitais, definindo com clarezas suas funções.
Os sistemas de remuneração devem evoluir para superar os marcos do pagamento por quantidade (volume ou produtos) para incluir também valor (resultados, impacto). A recusa, de fundo ideológico, a parcerias com organizações sociais, mesmo de reconhecida eficiência e probidade, também de nada ajuda – torna-se preciso superar tal viés.
No DF a solução não seria apenas fazer mais um hospital, aqui ou ali. Isso todo mundo promete; todo mundo quer. Mas é bom lembrar que hospitais não constituem panaceias. Hospitais pequenos não são eficientes e nem contribuem para a saúde geral. O mundo está cheio de elefantes brancos, de variados tamanhos. Não basta ser grande também. Tem que ser bem administrado e trabalhar de acordo com metas, inclusive de qualidade e valor.
É simples? Absolutamente, não! Se fosse simples alguém já teria feito! Mas o fato é que as soluções amadorísticas e guilhotinescas, como as habituais e intempestivas restrições e cortes não só reduzem o alcance do sistema de saúde por parte da população, como empurram todo o sistema de saúde para situações de verdadeiro impasse. Ou o que é pior: desgastam ainda mais sua credibilidade, que já não é das maiores, perante a população.
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AQUI E AGORA; AGORA, MAS NÃO AQUI; AQUI, MAS NÃO AGORA; NEM AGORA NEM AQUI… REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE
O triste espetáculo das grandes filas matinais na porta das Unidades de Saúde, formadas muitas vezes durante a madrugada, presentes não só aqui no DF como em muitas partes do Brasil, ao ponto de terem se tornado “partes da paisagem” urbana para muita gente, não reflete apenas o estado de desorganização e precariedade dos nossos serviços de saúde. A questão fundamental é a de que muita gente que está ali não devia ou não precisava estar. Como assim??? O leitor crítico e incrédulo certamente me questionará, com direito não a apenas um, mas a três pontos de interrogação.
Para falar sobre isso, utilizarei um raciocínio simples. Alguns dos que estão na fila devem, realmente, ser atendidos “aqui e agora”. São as crianças gripadas, as mulheres com cólicas ou corrimentos, as pessoas com pressão alta, os retornos agendados de consultas, as pessoas que apenas precisam um de atestado etc. Outros são para “agora”, mas não “aqui”, como nas emergências de maneira geral: fraturas, sangramentos, perda de sentidos, crises agudas de alguma coisa para a qual os recursos locais não podem dar conta. Tem também aqueles que são para “aqui”, mas que podem esperar, ou seja, “não agora”. Neste rol entram as pessoas que já são acompanhadas rotineiramente na unidade, sejam hipertensos, gestantes, neonatos, diabéticos, tuberculosos. Gente que inclusive está sendo visitada em casa pelos Agentes Comunitários de Saúde (se estes existirem, é claro…).
Existe também a turma do “não aqui e nem agora”, que merece ser contemplada também, pois isso não constitui nenhuma raridade nos serviços de saúde. É gente de variada natureza, na qual se incluem desempregados, usuários contumazes, curiosos, solitários e por aí vai. Estão ali à procura de companhia, de atenção, de um pouco de humanidade, talvez. Para estes, o “não” e o “nem” não devem ser levados ao pé da letra. Às vezes, lhes dedicar alguns minutos de conversa será o bastante.
“Alguns minutos de conversa”… É preciso aprofundar estre tema.
Voltando àquela fila costumeira. No frigir dos ovos, quem faz a seleção dos que devem ou não devem adentrar aos serviços de saúde? Por estranho que pareça, é um utensílio inventado há muitos séculos: o relógio… Assim, quem chegou até certa hora, está dentro; quem chegou depois, está fora. Simples assim. Dom Relógio não tem problemas morais, nem escrúpulos e muito menos capacidade de discernimento.
Para superar o relogismo há de fato algumas ideias no cenário. Neste aspecto, “acolhimento” é uma palavra mágica, mas que, entretanto, não faz milagres; precisa ser contextualizada.
Podemos encarar o acolhimento de pelo menos duas ou três maneiras. A primeira, mais física e concreta, diz respeito à reserva de uma salinha, uma mesa ou algo assim, para que uma moça gentil converse com cada um que ali chegue, meça a pressão, dedique alguns minutos de prosa e devolva à sala de espera (ou à fila) para que aguarde a chamada do médico. Por tal caminho, como se vê, para utilizar uma palavra já incorporada na língua portuguesa, a solução é fake.
Há também outra acepção, mais abstrata. Ela é indispensável, mas incapaz, por si só, de dar solução ao problema do “aqui/agora”. Trata-se de se oferecer uma postura acolhedora por parte de quem trabalha na unidade, em qualquer posição. Isso diz respeito ao vigilante, ao funcionário de portaria, a quem atende o telefone, às pessoas da limpeza, aos auxiliares de enfermagem, para culminar na(o) enfermeira(o) e no(a) médico(a). Sabem aquele tipo de resposta padrão: “não é comigo”, “não é aqui”, “tem, mais acabou”, “o atendimento está suspenso este mês”, “o doutor teve que sair mais cedo” e coisas assim? São exemplos típicos da carência de tal postura de acolhimento, que infelizmente constitui mais regra do que exceção nas unidades do SUS (e dos serviços privados também) por este Brasil a fora.
Uma postura de acolhimento, portanto, é essencial – mas é preciso ir além. E ir além significa, além do exercício de uma postura receptiva e humanizada, utilizar tecnologias de acolhimento que já estão disponíveis no cenário, como é o caso da classificação de risco, em uma de suas diversas variedades.
O sistema de classificação de risco foi criado para evitar postergar o atendimento a pacientes realmente graves, que precisam ser atendidos rapidamente, diferenciando-os daqueles que podem aguardar o atendimento, sem correrem riscos especiais. Em outras palavras, representa um processo dinâmico de identificação dos pacientes que necessitam de tratamento imediato, aqueles do “aqui ou não aqui, mas AGORA!” de acordo com o potencial de risco, agravos à saúde ou grau de sofrimento. Foi criado com foco nos serviços de urgência, mas seus princípios fundamentais se aplicam também à atenção primária.
A palavra “triagem” deve ser evitada, pois lembra algo mecânico e impessoal, sendo preferível a combinação das expressões “acolhimento” e “classificação de risco”. Isso engloba procedimentos realizados mediante a utilização de protocolos pré-estabelecidos, executados necessariamente por profissionais de saúde de nível superior, com treinamento específico, tendo a enfermagem um papel especial nisso. Sua utilização impede que ocorra a dispensa, devolução ou encaminhamento de pacientes antes que estes recebam atendimento ou pelo menos alguma forma de orientação. É o destronamento do Senhor Relógio, sem mais.
Os protocolos clínicos, já rotineiros nos sistemas de saúde civilizados e nos bons serviços de saúde pelo mundo a fora, são instrumentos de apoio à identificação rápida e baseada em evidências científicas, dos quais surgem os critérios de determinação da ordem em que o paciente será atendido, retirando esta prerrogativa não só dos relógios, mas também de pessoas não preparadas para tanto e também da alçada de certo “compadrio” normalmente vigente nos serviços de saúde. O resultado de sua aplicação é que os pacientes passam a ser encaminhados aos consultórios médicos locais ou de outra unidade mais especializada ou emergencial, assegurando aos mesmos, ainda, a devida garantia de ida e volta (referência e contra-referência, no jargão técnico), através do acionamento das chamadas “Centrais de Regulação”, com fluxos acordados entre as parte componentes do sistema e transparentes. Daí surge a classificação em azuis, verdes, amarelos, vermelhos – de acordo com o nível de gravidade do caso. Se a Atenção Primária à Saúde funcionar bem, de fato, com total exercício de seu poder regulador, as próprias centrais de regulação poderão perder o sentido.
Nos serviços de emergência, o lapso de tempo de atendimento entre um “azul” e um “vermelho” não deve passar de algumas poucas horas. Já na atenção primária pode chegar a alguns dias, mas jamais semanas ou meses, como ainda se vê em toda parte. Isso nos bons sistemas e serviços de saúde, claro.
Uma coisa assim certamente terá seus adversários. A clientela muitas vezes tem outras expectativas, por exemplo, a de que seja rapidamente atendida e saia dali com uma receita, um pedido de exame complementar ou uma guia de encaminhamento. Sendo assim, o “não agora” pode incomodar a muita gente e a indispor contra tal sistema.
Os médicos, que normalmente repudiam as tentativas de racionalização que parte dos gestores, por sentirem (equivocadamente) que aquela sua famosa “autonomia” está ameaçada, veem-se assim impedidos de inflar o peito e proferir aquela famosa expressão “na minha casuística é (ou não é) assim…”. Mas isso está raleando nas gerações mais novas de médicos. Os demais servidores, em geral, que pertencendo ao gênero humano, como os demais citados, são geralmente infensos e tementes a novidades, principalmente quando desconfiam que isso poderá lhes custar mais trabalho – e responsabilidades.
São obstáculos importantes, é claro, mas equacioná-los não seria nenhuma “missão impossível”, ou seja, resulta de uma boa combinação entre busca de consenso, oferta de incentivos e, se for o caso, alguma doce coerção. Assim funciona a Humanidade, desde que o Macaco desceu das árvores…
Parece ser simples a instauração de um regime de classificação de risco e de protocolização nos serviços de saúde. Em muitas cidades brasileiras isso já é rotina, para não falar dos sistemas de saúde verdadeiramente avançados no mundo, tanto públicos como privados. Os fatores culturais podem se antepor, mas há modos de contorná-los.
Mas há outro fator complicador: aquelas portas de entrada que são apenas virtuais, pois na verdade mais parecem queijos suíços (ou um canastra mal elaborado): são cheias de furos e quem de fato as comanda são as relações de compadrio exercidas por quem ali trabalha. Mais um fator a ser considerado, portanto, e interferir nele pode ter um custo simbólico e político alto. Consenso e coerção – é mais uma vez a receita. Como dizia um amigo meu: é preciso incentivar os bons e fazer com que os maus tenham ao menos um pouquinho de temor – regra raramente obedecida nos serviços públicos de maneira geral.
O papel da enfermagem nisso é essencial o e tem que ser de liderança. A carência de pessoal não deve ser desculpa para não fazer, pois a mesma pode ser apenas reflexo do modo como as coisas são (des)organizadas tradicionalmente, com a ditadura do relógio imperando. De fato, existe atualmente uma tendência mundial no sentido de que a enfermagem desempenhe um papel crítico no avanço da Atenção Primária à Saúde, de acordo com disposições da Organização Mundial da Saúde, além de outros organismos internacionais, configurando práticas já consagradas nos bons sistemas mundiais de saúde, como é o caso do Canadá, do Reino Unido, de Cuba e de outros países, nos quais novos perfis, ditos de “enfermeiros em práticas avançadas” são fundamentais na construção da APS e, em particular, na promoção da saúde, na prevenção de doenças e nos cuidados às populações mais marginalizadas.
Além disso, o pessoal da enfermagem é também essencial para atender as necessidades crescentes de saúde da população, em que pese haver lacunas importantes entre os perfis de competência dos profissionais de saúde e as necessidades na APS, em particular na transformação da educação em saúde e na capacitação no planejamento estratégico e gestão de recursos humanos para a saúde.
Em resumo: capacitação, liderança, vontade política são fatores essenciais.
Uma última palavra: a “guarda” da porta de entrada (gate keeper, como se diz no Reino Unido e nos EUA), ou seja, a capacidade de regular a passagem pela mesma, com o bom uso dos instrumentos citados acima, o que representa um atributo nobre da APS, não pode se transformar em mecanismo catraca-símile, que deixa passar uns e impede a entrada de outros… Isso já é uma manifesta preocupação internacional. Não custa nada estar precavidos.
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Para saber mais:
- https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/06/11/interna_cidadesdf,761811/restricao-de-atendimento-em-hospitais-publicos.shtml
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/05/24/aqui-e-agora-x-nem-agora-nem-aqui/
- http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolo_acolhimento_classificacao_risco.pdf
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/04/29/volume-ou-valor-producao-ou-resultados-quantidade-ou-qualidade/#more-558
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/12/04/o-novo-gestor-da-ses-e-as-perspectivas-para-a-saude-no-df/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/04/11/questoes-da-saude-que-um-bom-governo-deveria-priorizar-no-df/

