Mais médicos, mais do mesmo?

Após desqualificar ideológica e tecnicamente os profissionais cubanos que trabalhavam no Brasil através do Programa Mais Médicos, levando à ruptura unilateral da cooperação técnica, o desgoverno Bolsonaro se deu conta da estupidez de tal medida e agora procura um jeito de consertar mais este seu mal feito. Assim, o Ministério da Saúde admite que existem mais de seis milhões de pessoas a descoberto em matéria de saúde no Brasil, em quase oitocentos municípios com altos índices de vulnerabilidade, e que elas deverão ter de volta sua assistência médica em Atenção Primária. É claro que não se fala em reparar a perda de quase um ano na assistência dessas pessoas. Desta vez, se vai priorizar a participação de médicos formados e habilitados, com registro em qualquer CRM do Brasil, bem como eventuais titulações de especialistas ou portadores residência médica em Medicina da Família e Comunidade. E aos cubanos, antes demonizados pelo ativismo ideológico bolsonarista, poderão finalmente entrar com pedido de autorização para morar no Brasil por dois anos, tempo que pode ser estendido de forma indeterminada, de forma a “atender ao interesse da política migratória nacional”, conforme ato assinado pelos notórios Sérgio Moro e Ernesto Araújo. Mas não para trabalhar como médicos, embora isso tivesse sido também cogitado.

  • SUMÁRIO: Não chego a ser um defensor intransigente do Programa Mais Médicos, sem impedimento que reconheça, entre suas vantagens, o verdadeiro “chute na porta” da corporação médica medica mais reacionária e obscurantista, além da real ampliação da assistência médica a milhões de pessoas anteriormente sem acesso, sendo realmente uma demanda legítima da sociedade brasileira e não apenas de prefeitos em apuros com a falta de assistência. Mas minha análise, diferente de outros autores ligados ao ideário hard da reforma sanitária, também reconhece pontos polêmicos ou mesmo antagônicos na proposta, entre eles a distorção na política de incentivos e remuneração; a questionável sustentabilidade; a precarização dos vínculos trabalhistas; a falta de discussões sobre a proposta, além de sua acomodação ao status quo, fazendo do programa um veículo do “mais do mesmo”, além da carência de investigações mais aprofundadas sobre a situação-problema. Na nova proposta do Governo Federal, pelo menos é consolador ver que é mantida a atenção básica prestigiada, bem como o foco em populações vulneráveis e a ampliação do processo de captação de médicos, com aceitação de formados no exterior e de médicos cubanos que aqui permaneceram. Mas continua duvidosa a superação da formação médica tradicional, altamente focada em tecnologias, hospitais, especialidades e coisas assim, na qual a atenção primária à saúde, salvo, talvez, no caso de Cuba, não constitua seja prioridade real. A propósito não custa nada lembrar o conceito-guia fundamental, segundo Starsfield: O primeiro contato implica a acessibilidade e o uso do serviço para cada novo problema ou novo episódio de um problema para os quais se procura o cuidado. A longitudinalidade requer a existência do aporte regular de cuidados pela equipe de saúde e seu uso consistente ao logo do tempo, num ambiente de relação colaborativa e humanizada entre equipe, pessoa usuária e família. A integralidade supõe a prestação, pela equipe de saúde, de um conjunto de serviços que atendam às necessidades mais comuns da população adscrita, a responsabilização pela oferta de serviços em outros pontos de atenção à saúde e o reconhecimento adequado dos problemas biológicos, psicológicos e sociais que causam as doenças. A coordenação implica a capacidade de garantir a continuidade da atenção, através da equipe de saúde, com o reconhecimento dos problemas que requerem seguimento constante.  

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Ocupei-me do assunto desde o início do programa, tendo publicado algo a respeito (ver link) neste blog ou no antecessor dele (Observatório da saúde do DF). Não que eu fosse um defensor intransigente do programa. Embora reconhecesse certas vantagens nele, as principais delas sendo (1) o verdadeiro “pontapé na porta” da corporação médica medica brasileira, reacionária e obscurantista tanto quanto o atual governo; (2) a real ampliação da assistência médica a milhões de pessoas que nunca tiveram acesso a ela em toda sua vida. Reconheci, enfim, que o Programa Mais Médicos atendia, acima de tudo, a uma demanda da sociedade brasileira e não apenas a prefeitos em apuros com a falta de assistência de seus munícipes. Apoiei também o dispositivo de estabelecer diretrizes e metas relativas à formação médica na graduação e na residência, ao inserir o programa em compromisso de gestão descentralizada, bem como ao propor investimentos na construção, reforma e equipamento de unidades de saúde de diversos níveis, dentro de um enfoque de ensino, além de representar uma ação do governo federal, sem dúvida mais capaz de promover medidas redistributivas e equitativas no território nacional como um todo.

Mas minha análise da época, diferente de outros autores ligados ao ideário hard da reforma sanitária, apontava pontos polêmicos ou mesmo antagônicos a uma solução definitiva, verdadeiras “áreas de sombra” a serem clareadas e arejadas. Cito alguns deles em seguida.

  1. A questão dos incentivos. A opção do Mais Médicos é claramente de atrair novos profissionais, inclusive e principalmente estrangeiros, para exercer a medicina no país. As entidades médicas, entretanto, questionam se isso não deveria estar sendo feito para motivar os próprios médicos brasileiros, por exemplo, com melhores condições de trabalho e incentivos financeiros. O tempo dirá quem tem razão em tal polêmica, mas cabe lembrar que incentivos podem não ser apenas financeiros, mas de uma vasta ordem que inclui aspectos simbólicos, culturais, afetivos, entre outros.
  2. Da sustentabilidade do programa. A questão salarial, resolvida de forma um tanto heterodoxa através de “bolsas de estudo”, sem falar nas diferenças salariais entre cubanos e os demais médicos arregimentados. “Precarização” é o mínimo que se pode falar de tais vínculos de trabalho singulares, particularmente diante da vigência, desde 2006, de uma política nacional de gestão da força de trabalho em saúde que rejeita tal opção e procura soluções para o problema, de resto muito comum no âmbito do SUS.
  3. Falta de discussão a respeito da formulação e acompanhamento do programa, embora o chamado “grupo da reforma sanitária” veja no mesmo um potencial de abrir este tipo de negociação, se não na definição de seus objetivos, pelo menos no aprimoramento do SUS como um todo.
  4. Políticas de distribuição de recursos humanos na saúde deveriam ser acompanhadas por iniciativas de desenvolvimento das comunidades que possuem tal carência, em termos sociais e econômicos, considerando existir uma inquestionável correspondência entre uma coisa e outra. Da mesma forma, seria aconselhável maior participação social nos programas governamentais. O primeiro ponto remete diretamente à questão da intersetorialidade das ações públicas ou, em uma linguagem hoje consagrada, de Saúde em todas as Políticas. Neste aspecto, não se pode negar, o Mais Médicos ainda tem um longo caminho a percorrer.
  5. Já se destacava relativa carência de conhecimento e informações sobre o tema da distribuição de médicos no Brasil, colocando-se como conteúdos a serem desenvolvidos, entre outros, os fatores individuais, simbólicos e culturais e os determinantes da motivação, assim como a estrutura de incentivos, os fatores da valorização profissional além de, particularmente, as estratégias de monitoramento e avaliação.
  6. Estratégias de fixação representam uma questão em aberto, parecendo haver um relativo dilema entre o local de formação e sua relação direta com a permanência local dos médicos. Neste aspecto, as sugestões passam pela ação direta junto à demanda, seja no preferência da admissão candidatos às escolas médicas tendo como base a residência em comunidades remotas e necessitadas; as ações de motivação da juventude; o estabelecimento de bolsas específicas para alunos carentes e residentes nos grotões, entre outras.

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As novas medidas propostas pelo Ministro Mandetta (Programa Mais m[edicos pelo Brasil) como é de costume, foram veiculadas a conta gotas. Isso se algum repórter presente não tivesse feito perguntas consideradas inoportunas, ocasião em que as autoridades trancam a palavra e até se retiram do cenário, como costuma acontecer nesses dias sombrios que vivermos no Brasil. Mas de toda forma, é consolador ver a atenção básica prestigiada, pelo menos nas aparências, da mesma forma que o foco em populações vulneráveis, embora em um primeiro momento o Ministro tenha tentado tirar de tal consideração as periferias urbanas. Mas mesmo assim vejo outros pontos favoráveis no Programa, demonstrando que no Ministério da Saúde deve ter gente que não estudou com Olavo de Carvalho e defende a hipótese de que a terra seja esférica.

Afinal, são 18 mil vagas, sendo cerca de 13 mil em municípios remotos. Os médicos serão selecionados por meio de processo classificatório, com funções distintas, de médicos de família e comunidade e de tutor médico. Eles serão alocados em Unidades de Saúde da Família previamente definidas e cumprirão um curso de especialização em Medicina de Família e Comunidade. O Tutor Médico será selecionado entre especialistas em Medicina de Família e Comunidade ou de Clínica Médica, sempre com CRM. Nessa modalidade, a contratação é via CLT desde o início, ficando responsáveis não só pelo atendimento à população local como pela supervisão dos demais médicos ingressantes.

Informa ainda o MS que ao longo dos dois primeiros anos, os profissionais realizarão o curso de especialização, recebendo bolsa-formação no valor de R$ 12 mil mensais líquidos, com gratificação de R$ 3 mil adicionais para locais remotos (rurais e intermediários) e de R$ 6 mil adicionais para Distritos Sanitários Especiais Indígenas, além de localidades ribeirinhas e fluviais. Se aprovados no curso, os médicos realizarão uma prova para adquirirem titulação de especialista em Medicina de Família e Comunidade e poderão ser contratados via CLT, permanecendo nas USF em que realizaram a formação. Estão previstos quatro níveis salariais, com progressão trienal, além de gratificação por desempenho vinculada ao alcance de indicadores de qualidade de atendimento e satisfação das pessoas atendidas, que poderá variar entre 11% e 30% em relação ao salário. O nível salarial de base pode chegar a R$ 21 mil mensais variando até R$ 31 mil, o que inclui também gratificação de R$ 1 mil mensais para os médicos tutores. Para avaliação, contarão pontos quesitos como avaliação de indicadores de saúde da população atendida, valorização da opinião usuários e critérios de desempenho clínico. Reciprocamente, o profissional também avaliará a estrutura de USF e da rede de serviços do município em que trabalha.

Sem dúvida, acredito que são pontos favoráveis. Mas é de se lamentar que o retorno dos médicos cubanos que aqui permaneceram, embora cogitado, não se concretizou, porque nosso exótico mandatário os considerou como agentes que iriam promover a guerrilha no Brasil! Não dá para duvidar de mais nada, não é?

Mas atenção: nem tudo são flores, as áreas de sombra persistem em outros aspectos. A formação médica tradicional, mesmo em outros países, costuma ser altamente focada em tecnologias, hospitais, especialidades e coisas assim.  Não creio que a atenção primária à saúde, salvo, talvez, no caso de Cuba, seja uma prioridade real no ensino médico aqui e alhures. A propósito não custa nada lembrar o conceito-guia fundamental, segundo Starsfield:

  • O primeiro contacto implica a acessibilidade e o uso do serviço para cada novo problema ou novo episódio de um problema para os quais se procura o cuidado. A longitudinalidade requer a existência do aporte regular de cuidados pela equipe de saúde e seu uso consistente ao logo do tempo, num ambiente de relação colaborativa e humanizada entre equipe, pessoa usuária e família. A integralidade supõe a prestação, pela equipe de saúde, de um conjunto de serviços que atendam às necessidades mais comuns da população adscrita, a responsabilização pela oferta de serviços em outros pontos de atenção à saúde e o reconhecimento adequado dos problemas biológicos, psicológicos e sociais que causam as doenças. A coordenação implica a capacidade de garantir a continuidade da atenção, através da equipe de saúde, com o reconhecimento dos problemas que requerem seguimento constante. 

Para encerrar, digo sinceramente: fugir da orientação para a atenção primária à saúde na formação médica é fazer o que já se faz há décadas, com as consequentes mazelas já conhecidas de sobra, no Brasil e em outros países. Mais médicos, sim, mas de qualidade diferente, ou seja, “mais e melhores médicos” e não meramente “mais do mesmo”… E nada nas ações do atual governo (assim como nas ações anteriores) garantiria isso.

 

 

 

 

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