Oito mais oito, noves fora, zero…

Tenho sido bastante crítico em relação ao que se denomina no Brasil, impropriamente a meu ver, de “controle social em saúde”, mas em relação a esta 16ª Conferência Nacional de Saúde, realizada nesta última semana em Brasília, é preciso começar pelos elogios. Ela foi agraciada pela militância com o epíteto “8+8”, em homenagem ao grande evento de 1986, a Oitava CNS, que está na origem do SUS.  Seu grande feito é o de ter sido realizada apesar do momento obscurantista, antidemocrático e contra participativo que se vive no Brasil, devidamente impulsionado pelo bolsonarismo. Nisso estão de parabéns seus realizadores, representados pelo Conselho Nacional de Saúde, demais conselhos de saúde e entidades civis de todo o país. O Ministério da Saúde, no qual está inserido o Conselho Nacional de Saúde (embora seus militantes prefiram considerá-lo externo ou estranho ao mesmo) garantiu em seu orçamento os recursos, que certamente não foram poucos, para que o evento ocorresse – é bom lembrar. O Ministro da Saúde compareceu e foi profusamente vaiado na abertura do encontro, mas ao que tudo indica, o mesmo fez questão de provocar tal reação, com suas alusões à Venezuela, lava jato, prisão de Lula e outros temas semelhantes, sem dúvida pouco sintonizados e adequados ao momento.   A militância deve ter achado tal vaia o máximo, certamente arrolando isso como uma das “conquistas” do evento. Da mesma forma, o Ministro, como bom seguidor do ex-Capitão, talvez tenha encarado isso como ponto para si, pelo menos perante as milícias ideológicas governistas, um atestado de macheza e de destemor em enfrentar o segmento escolhido para ser responsável pelas mazelas do país, ou seja, a esquerda.  De minha parte, lamento, pois coisas assim não fazem parte das boas normas democráticas e assim se desperdiçou o que seria bom momento para debate, não para troca de hostilidades. Aliás, nisso, a egrégia plenária do “controle social em saúde” se equiparou, lamentavelmente, ao bolsonarismo mais “raiz”. Mas vamos ao que interessa…

Mas por que tenho sido crítico das conferências de saúde, assim como daquele, a meu ver, pretensioso e impreciso conceito de “controle social” empregado pela militância do SUS?  

Primeira questão: paridade. O que a lei 8142 determina, ou seja, paridade entre representantes institucionais e representações da sociedade, poderia até ser razoável no âmbito dos conselhos de saúde, mas não faz o mínimo sentido numa conferência. Com efeito, isso acarreta um limite à participação cidadã, pois se tivermos, digamos, algumas centenas de usuários ou cidadãos dispostos a participar, teremos que conseguir outro tanto de representantes de gestores, sindicatos, prestadores. Em uma cidade pequena, isso seria praticamente impossível. O resultado mais imediato e o que já se vê nesses eventos: trabalhadores de saúde e outros membros de instituições trafegando nos dois lados da mesa, ao mesmo tempo. Conferências de saúde deveriam ser abertas a quem queira delas participar. E ponto.  

Segunda questão: poder deliberativo. A mesma lei 8142 atribui às conferências e aos conselhos “poder deliberativo”. Nos regimes democráticos tal poder está, na verdade, distribuído entre as instâncias do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Conselhos e conferências fazem parte do Executivo, não constituem um “quarto poder” (não existe isso no Brasil). Dar esta atribuição aos organismos de participação social existentes é, com o perdão da má palavra, iludir os participantes a respeito de suas verdadeiras (e limitadas) responsabilidades.   

Terceira questão: palavras de ordem. Tudo bem, militantes, por assim dizer, se alimentam de  palavras de ordem, mas é preciso superá-las em troca de afirmativas mais concretas e objetivas, sintonizadas com cada momento político e institucional , além de relacionadas à governabilidade real do sistema de saúde. O lema da conferência atual, “Democracia e Saúde” é bem um exemplo disso. É claro que Democracia é essencial, mas não só na saúde como em outras áreas (educação, segurança pública, meio ambiente, direitos de minorias etc). Nem sempre os regimes democráticos possuem os melhores sistemas de saúde – e vice versa… Outro bom exemplo é dado no fragmento abaixo, retirado do Relatório Consolidado da presente Conferência Nacional: “Garantir que o princípio constitucional “que todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido” seja respeitado, sendo inaceitável a perda de direitos de cidadania. Assim, exigimos o Referendum Popular Revogatório das medidas que atentaram contra os direitos do povo brasileiro, tais como: EC 86, EC 95, Contrarreforma Trabalhista e Terceirização e a entrega do Pré-sal”. Acho desnecessário procurar outros exemplos, mas posso garantir que eles pululam no texto deste documento. Além de sua vacuidade, governabilidade zero e perda de foco, fequentemente apenas repisam exaustivamente temas e disposições já presentes nas leis do país. Que tal se as conferências se detivessem, por exemplo, sobre temas como: garantia de atendimento em tempo hábil, acessibilidade nas unidades, direito à informação compreensível, cartas de direitos de pacientes, identificação e explicitação de horários e atividades de equipes de saúde, dinamização das ouvidorias, garantia de regulação nos encaminhamentos, qualidade dos ambientes dos serviços, desenvolvimento da participação local, uso de tecnologias de informação na saúde e outros temas mais próximos ao objeto da conferência e com atuação viável por parte das instituições de saúde? 

Quarta questão: da militância. Se há uma coisa que nós, da saúde, não podemos nos queixar é da falta de militância em nossas fileiras. Mas nem tudo é tão racional neste terreno, como, por exemplo, a tendência a uma lógica que divide o mundo em pedaços e, a partir daí, confunde o mundo, em sua totalidade, com cada pedacinho que se cria a partir dele. Tal lógica, também, não costuma admitir meios-termos, funcionando muito na base do preto no branco e do oito ou oitenta. Não costuma ver, ainda, o outro lado que existe em quase tudo que seja obra humana, apesar de exemplos históricos que saltam à vista. Aliás, história, para os militantes típicos, é algo que deve ser considerado apenas se mostrar argumentos favoráveis àquilo pelo que se milita; caso contrário, passa por mero produto de manipulação de militantes contrários ou, de forma mais genérica, deles, “dos homens” – espécie de entidade mítica demonizada no mundo militante. O fato é que quem carrega uma conferência são os militantes. E são eles mesmos que se esfalfam nos debates das madrugadas, quando os cidadãos “normais” já foram para casa dormir, em votar, virgula por vírgula, as teses e palavras de ordem grandiloquentes que fazem parte obrigatória dos relatórios das conferências de saúde – que ninguém lê, diga-se de passagem.   

Quinta questão: vícios do processo. Algumas tendências preocupantes podem ser percebidas no cenário da participação social tal como é praticada no Brasil, seja nos conselhos ou nas conferências: (a) Autonomização, levantando a expectativa social de que em tais instâncias residiria, de fato e de direito, um quarto poder; (b) Plenarização, mediante a transformação dos conselhos e conferências de saúde em meros fóruns de debates entre os diversos segmentos sociais, nem sempre com a participação do Estado, o qual, aliás, por definição normativa (e não propriamente legal), é fortemente minoritário; (c) Parlamentarização, com formação de blocos ideológicos e partidários e tomadas de decisão por votação, não por consenso; (d) Profissionalização, dadas as fortes exigências da participação social, abrindo caminho para a constituição de verdadeiros profissionais da participação; (e) Autorregulação, que representa uma particularidade praticamente exclusiva da área da saúde.

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Diante disso, renovo minha descrença nesses processos participativos, ditos de “controle social”, amarrados anacronicamente pela lei 8142 de 1990. Penso realmente que deveríamos simplesmente começar a pensá-los de novo, mas não a partir de crenças não comprovadas ou de pensamentos desejosos, mas sim de experiências de fato bem sucedidas no mundo. Já escrevi algumas vezes sobre isso e o link abaixo mostra algumas ideias minhas sobre o assunto. De fato, precisamos sair do “mais do mesmo” ou de certos “jogos de soma zero”, que me parecem ser expressões apropriadas para descrever tais fenômenos.

Isso sem deixar de reconhecer que esta 16ª Conferência Nacional de Saúde é quase um milagre. Que talvez não levará a outra coisa que não seja manter a chama da militância acessa. Mas já valerá por isso.

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Saiba mais:

·         https://observatoriosaudedf.wordpress.com/2017/08/17/participacao-no-nivel-local-algumas-ideias/

·         file:///C:/Users/fagou/Desktop/Relatorio_Nacional_Consolidado.pdf

 

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