Segundo pesquisa recente do IBGE, sobre informações básicas municipais (ver link ao final), mais da metade dos municípios brasileiros não oferecem serviços de atenção básica em saúde, de forma completa e resolutiva, e com isso precisam encaminhar os usuários do SUS para outras cidades para a realização de exames, mesmo os mais simples. Se há necessidade de internação hospitalar, chegam a 60,7% os locais que precisam encaminhar pacientes para outros municípios. A pesquisa revela que o serviço mais ofertado localmente é o atendimento das emergências, presente em 91,9% dos municípios, porém sem revelar o repertório e o grau de complexidade e de tais serviços. Demonstra ainda a pesquisa do IBGE que em 2018, 93,2% das cidades brasileiras tinham estabelecimentos municipais de saúde e que, destes, 13,2% tinham estabelecimentos administrados por terceiros. Algumas variáveis estudadas: apenas 14,7% dos municípios dispunham de serviços de nefrologia públicos ou conveniados ao SUS; 9,7% possuíam leitos ou berços de UTI neonatal; 34,6% possuíam leitos/berços para cuidados intermediários. Tais informações, exaustivamente detalhadas no relatório da pesquisa, inclusive em relação ao entorno do DF refletem de maneira muito próxima o que ocorre por aqui, o que implica em relação tumultuada e de grande sobrecarga do DF, em relação à região. Assim foi no passado, continua no presente e sem dúvida deverá prosseguir até um futuro ainda remoto. O que poderia ser feito?
Não custa lembrar que atualmente o Entorno da Capital Federal já faz parte de uma Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE-DF), criada em 1998 por Lei Complementar, abrangendo, além do DF, três cidades de Minas Gerais e 19 de Goiás. Tal RIDE, diferente de uma RM, que se situa em um só estado e privilegia ações sociais e de mobilidade urbana, alcança mais de uma unidade federativa e tem como foco ações econômicas. Supostamente, segundo a linha de argumentação atual do GDF, com a RM no DF e Entorno, os governos locais poderiam coordenar as ações e investimentos locais, como, por exemplo, facultar aos estados membros e ao DF firmar convênios de captação de recursos e realizar licitação única para uma obra comum, simplificando esforços e reduzindo gastos.
Este é um tema que se reitera na mídia e no discurso dos políticos. Eu mesmo já o fiz mais de uma vez (março e junho de 2018). Assim, já havia traçado algumas considerações sobre o panorama e as perspectivas para a atuação dos gestores de saúde dentro da RIDE-DF, partindo da experiência acumulada, em particular, com a criação do Colegiado Gestor em Saúde e do Plano de Ação respectivo, que representavam inequívocos avanços no sentido da integração da gestão em saúde na região, no âmbito do pacto pela Saúde de 2008. Foram considerações feitas com foco na RIDE, aliás, ainda vigente, mas que poderiam ser aplicadas também à ideia da RM e, principalmente da gestão da saúde no Entorno do DF, seja em que arranjo for. Mesmo passados alguns anos de sua formulação original, creio que ainda continuam válidas.
Chamo a atenção dos leitores, especialmente, para a recomendação de que fosse revisto e ampliado o mandato do Gestor Federal nas decisões relativas á saúde na RIDE-DF, dado se tratar do território que abriga a Capital Federal. Com efeito, o Ministério da Saúde poderia e deveria exercer papel diferenciado na esfera regional interestadual, não só nas RIDE como em outras situações, como já ocorre com outras áreas do governo federal, com a necessária adaptação dos dispositivos normativos relativos a instâncias e planejamento regionalizados, no sentido de adequá-los a uma nova lógica de participação e decisões conjuntas, não mais apenas entre estados e municípios, mas envolvendo também o governo Federal. O papel exercido até agora pelo Ministério da Saúde tem sido o de arregimentação e apoio logístico para as reuniões referentes à saúde na área da RIDE-DF e isso deve ser revisto
Sem dúvida, a questão da governança ainda é matéria pouco resolvida na ação intersetorial e entre níveis de governo – sem deixar de sê-lo quando se considera as esferas isoladamente. Isso é particularmente palpável na área da saúde. Assim, torna-se preciso encontrar instrumentos e mecanismos inovadores para potencializar a governança do sistema, de forma compatível com a realidade. Há que se considerar, além do mais, que existem provas irrefutáveis de que os mecanismos disponíveis historicamente e que convergiram para formas autárquicas e isoladas de municipalização, como sonharam (sonhamos..) nos primórdios da reforma sanitária, estão completamente superados pela realidade atualmente.
O caso específico do DF e seu Entorno traduz um espaço complexo de relações interfederativas, bem como entre os governos e a população, com problemas muitas vezes agravados pelas barreiras políticas e geográficas, derivadas da tendência competitiva e até predatória vigente na federação brasileira. Os problemas em tal contexto, sejam de natureza sanitária, econômica, demográfica, cultural, política etc não têm como serem resolvidos de maneira singela ou apenas dentro dos moldes formais. A busca da governança requer a ampliação do escopo da gestão dos vários participantes da região integrada, em termos de meios e de fins.
Novas institucionalidades devem ser criadas, sem dúvida, mas é bom lembrar que elas requerem novos instrumentos de ação. Veja-se, como bom exemplo, a atuação da Força Nacional de Segurança, praticamente impensável até alguns anos atrás, por ameaçar, supostamente, a marcante autonomia dos entes federados, mas que uma vez instalada veio ao encontro das demandas e das necessidades das sociedades política e civil nos locais em que atua.
Assim, de forma consequente, se a inspiração da ação na situação do Entorno do DF deve se apoiar em valores de solidariedade e cooperação, com definição de novos papéis e novos modus operandi das máquinas administrativas, com foco na responsabilização das três esferas gestoras, de forma a afastar os fantasmas do predatismo e da competição. Isso implica em aumentar recursos e poder decisório, não necessariamente de cada um dos entes federados, mas do conjunto deles, ao mesmo tempo em que deve resultar em ampliação da responsabilização respectiva.
Organismos colegiados de gestão interfederativa são necessários, sem dúvida, mas não se deve prescindir da proposição de novos papéis para o Gestor Federal, com a consequente ação trilateral daí advinda, sem temor de que isso se transforme em usurpação do poder do governo central. Tal coisa pode acontecer, mas devem ser previstos freios e contrapesos para que isso seja evitado.
Tal ação interfederativa deve se estender ao conjunto de serviços públicos comuns aos estados e municípios que compõem a região, o que ultrapassa a possível pauta de atuação de governos locais. Sua pauta deveria incluir itens tão diversos como: infraestrutura urbana; capacitação profissional específica em saúde; política de saneamento básico e limpeza pública, em função dos indicadores epidemiológicos; proteção ao meio ambiente e controle da poluição ambiental; educação e cultura, nos aspectos relacionados à saúde, além de segurança pública.
De forma análoga, as próprias atribuições específicas em saúde poderiam ser ampliadas, de forma a incluir a coordenação das ações e programas de saúde dos entes federados na região, visando o desenvolvimento e a redução das desigualdades sanitárias correspondentes; a aprovação e a supervisão dos planos, programas e projetos para o desenvolvimento dos sistemas locais e microrregionais de saúde; o fomento à integração dos serviços públicos de saúde comuns aos membros; a utilização cooperativa dos instrumentos de planejamento local e regional já em vigor, entre outras possibilidades.
Sem dúvida, a área da RIDE-DF já conta com acumulações expressivas em termos de saúde, consubstanciados em instrumentos de metas, com processos de construção nem sempre totalmente participativos ou ascendentes. O que precisa acontecer é transformar tais instrumentos em ferramentas úteis para os processos decisórios e de alocação de recursos – o que nem sempre ocorre na vida real.
Na questão do financiamento das ações e serviços pertinentes ao Entorno do DF – e ao próprio DF – isso talvez constitua um bom exemplo de ação sobre a qual o nível federal de governo deve ter presença mais robusta do que aquela que ocorre atualmente, seja de forma direta ou mediante intermediação de recursos, por exemplo das emendas parlamentares. Simultaneamente, há que se ampliar e aperfeiçoar, também, instrumentos eficazes de monitoramento das demandas dirigidas ao DF pelas áreas do Entorno, de forma a se evitar certo achismo e atitudes defensivas e ou conspiratórias que às vezes permeiam as relações entre entes federados na questão da saúde.
O pressuposto maior de tais ações deve ser o de que o Entorno não é simplesmente um transtorno para o DF, pois a população que nele habita, além de ser portadora de direitos de cidadania tanto quanto aquela que habita a Capital Federal tem também um importante papel na movimentação da economia do DF, já que é no comércio local que costuma fazer suas despesas de custeio familiar e outras. Além disso, estas pessoas não podem pagar os custos da incúria de governantes que permitiram e estimularam a atração fantasiosa de centenas de milhares de migrantes, movidos de outras regiões do País por promessas vãs, com o consequente descalabro da exploração imobiliária nas áreas onde foram forçados a se alojar.
É importante, também, que esteja presente no foco das decisões relativas ao Entorno, a distinção clara entre diversas situações prevalentes na área, ou seja, a de provedores de serviços públicos, inclusive de saúde, como é o caso do DF, versus a de demandantes intensivos dos mesmos, como é o caso de Goiás e de MG. Assim, não se trata de uma relação entre iguais, para a qual as velhas fórmulas que apontam para a paridade decisória, tão valorizadas no SUS, não têm muito a oferecer. As decisões devem ser por consenso, mas, ao mesmo tempo, a arbitragem de um tertius, no caso, o Gestor Federal, deve prevalecer, de forma a respeitar o interesse comum e não as posições antagônicas de provedores e consumidores.
Na mesma linha de tratar diferentemente os desiguais, cabe lembrar que a situação de MG, embora possa definida também como de demandante de serviços no DF, tem papel secundário quando comparada a GO, o que implica, mais uma vez, em que os processos decisórios devam levar em consideração tal fato – ou seja, o consenso pode não surgir de maneira simplória, por exemplo, a partir de votações nos órgãos colegiados, reforçando a necessidade de uma arbitragem nas questões respectivas.
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Sobre a pesquisa do IBGE referida no texto, veja:
- https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/protecao-social/10586-pesquisa-de-informacoes-basicas-municipais.html?=&t=resultados
- https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/09/25/interna-brasil,790164/moradores-precisam-ir-a-outra-cidade-para-ter-exames.shtml
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Para conhecer postagem minha anterior sobre o mesmo assunto, acesse:
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Alguns aspectos abordados pela mídia recentemente (Abril 2019):
- https://www.metropoles.com/distrito-federal/temer-atende-ibaneis-e-assina-mp-da-regiao-metropolitana-de-brasilia
- https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CIDADES/566447-MEDIDA-PROVISORIA-CRIA-REGIAO-METROPOLITANA-DO-DISTRITO-FEDERAL.html
- https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2017/09/26/representantes-do-df-do-entorno-e-de-minas-articulam-acoes-integradas-de-saude/


2 respostas para “Ainda (e até quando?) as questões do Entorno do DF…”