Em termos formais, parece que a atuação pública e a privada em saúde, no Brasil, estão irremediavelmente apartadas. Desconfianças recíprocas alimentam tal dissensão, algumas fundadas em fatos bem reais. Assim, um lado vê, no outro, fonte inesgotável de corrupção; o outro retruca com acusações de ganância e desumanidade – para dizer o mínimo. Mas na era de incertezas em que vivemos, para o bem ou para o mal, não custa nada indagar: tem que ser assim sempre? Pensando nisso, resgato algumas coisas que vi e ouvi, convidado que fui a uma reunião do lado “deles”, ou seja, um simpósio organizado pela Confederação Nacional da Indústria, em novembro de 2018, para buscar entre seus associados, consensos a respeito de como buscar ou prestar serviços de saúde mais qualificados (e menos onerosos, claro) a seus funcionários. O foco era os serviços médicos empresariais, aliás, muito frequentes e atuantes em empresas médias e grandes, com oferta de grande volume em consultas e procedimentos diversos. Segue um resumo do que ouvi por lá, com uma tentativa de síntese e conclusões ao final.
Já no preâmbulo do evento, uma afirmativa da qual é difícil discordar, a de que a saúde representa componente essencial do bem-estar coletivo, influindo também na competitividade das empresas e no próprio desenvolvimento do País, assumindo que no Brasil a dupla face da assistência à saúde com o SUS público e universal, de um lado, e de outro a Saúde Suplementar. Em ambos os casos, revela-se que o problema do crescimento dos custos é marcante e tem mobilizado financiadores e gestores no sentido de incrementar a eficiência e a efetividade das ações respectivas. Aliás, um aumento de custos persistente e com taxas superiores à inflação, no caso do Brasil, excedendo a média mundial.
Foi surpresa para mim saber que em nosso país o setor industrial financia quase a quarta parte dos planos privados de saúde, alcançando em torno de dez milhões de pessoas, o que, sem dúvida, tem forte impacto nas empresas. E o mais chocante, por assim dizer, é que a Indústria admite que tais despesas vultosas carecem de um correspondente incremento na qualidade e nos resultados dos serviços contratados, o que torna óbvia a necessidade de se aperfeiçoar a gestão da saúde no interior das empresas e em suas relações com as operadoras e prestadores, para garantir a continuidade e a qualidade de tal benefício aos trabalhadores.
Analisam, também, aqueles executivos das empresas, os custos da saúde suplementar para as mesmas, apontando alguns motivos para os mesmos: (a) o déficit na prevenção em saúde, que acarreta custos maiores, com as complicações e atendimentos emergenciais; (b) uma lógica de remuneração de prestadores baseada em quantidades de procedimentos e não em resultados ou “valor”, gerando incentivo à execução de procedimentos em excesso, com benefício questionável para a saúde; (c) a incorporação de tecnologias sem a devida análise de sua efetividade versus o custo da sua incorporação; (d) as restrições ao acesso a dados dos beneficiários, principalmente no caso dos planos coletivos, o que representa obstáculo para uma melhor gestão da saúde.
De modo geral, apontam pressupostos para resolver tais problemas, entre eles, o de que um bom sistema de saúde é essencial para garantir o bem-estar da população e a produtividade dos trabalhadores de um país e que diante de um sistema público que não atende à população, as empresas têm se visto obrigadas a oferecer planos de saúde aos seus trabalhadores, respondendo tal modalidade por cerca de 70% dos usuários de planos de saúde. Isso resulta em que os custos com a saúde suplementar no Brasil vêm aumentando a taxas insustentáveis, devido a problemas regulatórios que remuneram o uso excessivo e inadequado do sistema, gerando assimetria de informações para contratantes e usuários. Surge assim o alerta de que, caso não sejam implementadas mudanças regulatórias que incentivem a gestão sustentável e populacional da saúde, as empresas não conseguirão mais ofertar esse benefício aos trabalhadores.
Em síntese, seria desejável, em primeiro lugar, o incremento no conhecimento e na compreensão relativa ao sistema de saúde por parte dos gestores das empresas contratantes. Isso, naturalmente, envolve também uma verdadeira mudança de paradigma, mediante a inclusão dos trabalhadores e de seus dependentes no debate sobre o que é valor em saúde e a importância do uso mais racional do sistema. Desejável, também é a existência de usuários cada vez mais ativos, com maior acesso e adesão aos programas de saúde ocupacional e assistencial, desenvolvendo assim uma cultura de saúde, na qual predominem a integração de informações e a promoção de parcerias com outros atores presentes no cenário
Algumas medidas já estavam em andamento na ocasião do evento, citando-se: (a) a reestruturação do sistema de remuneração dos prestadores de serviços de saúde baseado em resultados e não no número de procedimentos executados; (b) a busca de identificação de ações para reduzir a judicialização na área de saúde e fortalecer o entendimento conceitual da Magistratura sobre tal tema; (c) a implementação de programas de atenção primária, com assistência integrada e foco na prevenção e no combate às doenças crônicas não transmissíveis; (d) o aperfeiçoamento dos processos de incorporação de tecnologias, com a implementação de metodologias de avaliação de tecnologias em saúde (ATS), adequadas ao Sistema de Saúde Suplementar; (e) o desenvolvimento de modelos de gestão clínica e econômica, amparados na coleta e na sistematização de evidências empíricas, avaliando a relação entre os resultados ou desfechos dos tratamentos avaliados e os custos associados à sua implementação; (f) o aperfeiçoamento dos processos de disponibilização de dados aos usuários e contratantes, para a adequada gestão da saúde populacional, resguardando-se a proteção à identidade dos usuários, com a identificação, pela empresa contratante, de tendências no acesso à saúde suplementar pelos seus trabalhadores.
Um sumário executivo apontou, ainda, as seguintes medidas estratégicas para o futuro do sistema:
- Em primeiro lugar, deve-se levar em conta a necessidade de mudanças culturais, em busca de fomentar uma cultura da saúde, tanto por parte dos usuários e dos gestores como também dos profissionais de saúde, para que sejam capazes de compreender e valorizar, diferenciando de seus antagonistas, aspectos como o valor do trabalho em equipe, do enfoque na atenção primária, os princípios da promoção da saúde, as limitações do recurso direto aos especialistas e a supervalorização das tecnologias, entre outros aspectos.
- Em relação aos usuários cabe transformá-los em sujeitos ativos, com maior acesso e adesão aos programas de saúde ocupacional e assistencial, fomentando assim a cultura de saúde referida acima, na qual predominem a integração de informações, a prática do autocuidado, além da promoção de parcerias com outros atores presentes no cenário.
- O foco em um modelo de pensamento sistêmico é fundamental, compreendido como forma de analisar e exercitar a linguagem correspondente para descrever e compreender as forças e inter-relações que modelam o comportamento dos sistemas, entre eles o da Saúde, dentro de uma lógica de mudança em direção a maior eficácia e ação em conformidade com os processos do mundo natural e econômico, na busca de soluções capazes de contemplar as expectativas de todas as partes envolvidas, em termos pessoais, profissionais e econômicos.
- Foco na Atenção Primária à Saúde (APS), enquanto estratégia de reorientação do modelo assistencial tendo como princípios a abordagem com foco na família e nos processos e ambientes da vida real, o trabalho em equipe interdisciplinar, a corresponsabilização, a integralidade, a resolutividade, a ação intersetorial e estímulo à participação. A APS deve ser a porta de entrada ao sistema de saúde e o ambiente responsável pela organização do cuidado à saúde dos indivíduos e de suas famílias e grupos sociais ao longo do tempo, dada sua capacidade resposta à maior parte das necessidades em saúde, realizando serviços preventivos, curativos, reabilitadores e de promoção da saúde; integrando os cuidados quando existe mais de um problema; lidando com o contexto de vida e influenciando as respostas das pessoas aos seus problemas de saúde.
- Consequência imediata dos modelos que têm a APS como fundamento é a Promoção da Saúde, entendida como ampliação de escopo das intervenções em saúde, para tomar como objeto os problemas e as necessidades de saúde e seus determinantes e condicionantes, de modo que a organização da atenção e do cuidado envolva, ao mesmo tempo, as ações e os serviços que operem sobre os efeitos do adoecer e aqueles que visem ao espaço para além dos muros das unidades prestadoras e do próprio sistema de saúde, incidindo sobre as condições de vida e favorecendo a ampliação de escolhas saudáveis por parte dos sujeitos e das coletividades no território onde vivem e trabalham.
- Sistemas de atenção à saúde devem buscar não a melhoria da saúde da população sob sua responsabilidade, como a da experiência das pessoas com os cuidados recebidos, além de redução ou controle do gasto, assim, população sob responsabilidade de tal sistema representa um grupo de pessoas afiliadas mediante critérios sanitários e não meramente financeiros, que devem receber cuidados seguros, efetivos, oportunos, centrados nas pessoas e equitativos, além providos a custos eficientes.
- Integração e compartilhamento amplo de informações e dados é aspecto muito enfatizado dentro da dinâmica de uma gestão abrangente e eficaz, dentro de um âmbito que deve escapar de restrições ambientais locais ou empresariais, envolvendo todo o ambiente sistêmico da saúde, ou seja, empresas contratantes, operadoras de planos de saúde, prestadores em suas diversas modalidades organizacionais e, principalmente, usuários.
- Decorrência imediata da integração referida acima é a formação de parcerias, que igualmente deve se estender além dos limites de ambientes restritos, de forma a envolver todos os atores interessados.
- Integração e articulação entre os setores de Saúde Ocupacional e Recursos Humanos dentro das empresas, em termos de trocas de informações e delineamento de estratégias conjuntas é fator que interessa não só a uma orientação mais qualificada dos contratantes, produzindo melhorias para otimização dos processos de gestão, como também à orientação e promoção de bem-estar do beneficiário.
- Atenção especial deve ser dado ao cenário de transições demográfica e epidemiológica pelas quais passa o país, no qual o envelhecimento populacional acelerado é uma realidade, com a demonstração de que o incremento de 1 % de idosos na carteira leva 3,5% de aumento no custo assistencial, associando-se ao fato de que as causas principais de mortalidade atualmente são as doenças crônicas e as causas externas, não mais as infecto contagiosas.
- Redução dos custos assistenciais é aspecto essencial, porém sem prejudicar usuários e sem provocar racionamento, associando prevenção e bem-estar na manutenção da saúde, como especial foco na redução das hospitalizações e na aplicação de estratégias específicas para contenção de distorções da assistência tradicional, como o encaminhamento compulsório a especialistas e o recurso exagerado a exames complementares e tecnologias desnecessárias.
- Eficiência e resolutividade devem ser encaradas em seus diversos componentes: prevenção; manutenção da saúde; foco na saúde mais do que na doença; foco na saúde e não na doença; não-hospitalização; abordagem diferenciada de episódios agudos x crônicos etc., pois desfechos “com sucesso”, mas com alto custo, não constituem marcas de boas práticas, incluindo-se aí também a questão da sustentabilidade, em termos de preferências, valores e necessidades.
- Qualidade do cuidado é questão imperativa a ser garantida mediante: foco no paciente, promovendo o engajamento dos mesmos para o autocuidado; oferecimento de cuidados contínuos; disponibilização de rede assistencial integrada; atuação no plano material e virtual, através das tecnologias de informação; APS presente na rede de serviços de forma ordenadora; estrutura de gestão adequada, além de domínio de informações sobre custo e qualidade relativos a prestadores, com acolhimento dos princípios de medicina baseada em evidências.
- É preciso trabalhar com monitoramento contínuo, bem como evitar a reiteração de atividades sem reavaliar e analisar sua efetividade, cabendo também prestar atenção àquilo que a práxis demonstra que realmente funciona, como programas de abordagem ampla, enfoque populacional, integrados e que apresentam indicadores claros e metas realistas.
- Uma adequada comunicação com a clientela e entre atores do sistema faz toda diferença, pois a saúde é um campo que exige boa comunicação e baseada em estratégias de convencimento quanto ao engajamento da clientela, dos prestadores e dos tomadores de decisão, visando vencer resistências; uniformizar a linguagem; fazer do usuário o “centro das atenções”; fazer as pessoas acreditarem no modelo APS.
- Embora o campo aqui tratado seja de fato complexo, os gestores da Indústria devem estar atentos que está delineada uma Agenda do Contratante de Serviços de Saúde Suplementar, que deve ser bem conhecida, tendo como elementos constituintes os seguintes tópicos, além de outros que podem vir a ser acrescentados: Gestão de Tecnologias; Remuneração Baseada em Valor; Negociação Coletiva com Prestadores e Operadoras; Regulação dos Contratos visando Coparticipação ou Franquias, além de Foco na Atenção Primária à Saúde.
***
Como se vê, as discussões em andamento no setor industrial nacional não ficam distantes e nem têm muito a dever a discussões semelhantes que ocorrem (ou deveriam ocorrer) no âmbito do SUS.
O caso da Atenção Primária à Saúde, aliás, representa um bom exemplo de como as discussões, em ambos os lados da mesa, podem ser convergentes e, aliás, o têm sido ao longo da história. Esta estratégia de ação nasceu dentro do setor público, na Inglaterra, nos anos 20 do século passado, ganhando corpo com a implantação dos Serviços Nacionais de Saúde (NHS) britânicos. Entretanto, muitas de suas conquistas metodológicas, como as estratégias de gestão da clínica, nas quais se incluem as diretrizes e protocolos, a gestão da porta de entrada do sistema, os “radares” de seguimento de casos, entre outros aperfeiçoamentos, possuem, em suas digitais, marcas oriundas dos setores dos planos privados de saúde, particularmente das health maintenance organizations dos EUA. O setor público, ao incorporá-las, não só conseguiu incrementos de eficiência e qualidade em sua atuação, como contribuiu para seu aperfeiçoamento, pelo seu uso em escala.
E nenhum lado sucumbiu à corrupção e à ineficiência ou à ganância e à mercadorização com isso. Muito antes pelo contrário.
Acredito realmente que há muitas portas e caminhos a explorar nessa relação que ainda hoje é vista com preconceitos diversos, mais uma vez, dos dois lados da mesa. É claro que alguns verdadeiros “cantos de sereia” devem ser evitados, por exemplo, aquele que reza que o setor privado fará melhor tudo o que o setor público faz. Para isso, a resposta é simples: vamos ver quem mata mosquitos, vacina milhões de pessoas em um só dia e atua nos rincões do país onde ninguém quer ir (e nem as pessoas dispõem de recursos para pagar mensalidades de planos de saúde)? Na mesma linha, a crença de que os planos de saúde ditos “populares” seriam solução a ser oferecida à clientela de menor poder aquisitivo e já desgastada pelo mal atendimento que o SUS costuma oferecer, ainda, em muitos lugares. Nada mais falacioso!
Vale a pena tentar novos caminhos, sem dúvida, mas não se trata de retirar ou apagar o sistema público do cenário. O que se faz necessário é definir melhor o que as leis denominam de complementar, para incluir não só o que o SUS NÃO FAZ, mas também aquilo que NÃO É CAPAZ OU RENUNCIA em fazer, por insuficiência tecnológica, incapacidade de alcance geográfico, ou simples decisão. Tudo mediante acordos claros fundamentados nas leis do país, que – é bom lembrar – dizem que a “assistência à saúde é livre à iniciativa privada” sem, contudo, esquecer de que as mesmas leis conferem “relevância pública” às ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público atuar na regulamentação, fiscalização e controle das ações respectivas, com sua execução feita diretamente pelo Estado ou através de terceiros.
Enfim há possibilidade de diálogo.
***

