No DF: o SUS que dá certo (e por quê?)

Publiquei há poucos dias um post aqui no blog, no qual chamei atenção dos leitores para aqueles anônimos e modestos personagens, a quem denominei de “Heróis das Quebradas”, que carregam nas costas, no dia a dia, as pontas das cordas do sistema de saúde do DF. Ainda quero falar deles, agora para tentar entender melhor o que significa aquele “dar certo” que coloquei no título da matéria. Na ocasião, minha abordagem foi superficial, pois apenas comentei, assim mesmo de passagem, cerca de duas dezenas de matérias recolhidas no site da SES-DF durante a primeira metade do mês de fevereiro do corrente ano. Mas há muito mais a dizer sobre tal tema, sem dúvida. Este “SUS que dá certo” se refere a conquistas e sacadas de que se orgulhariam ingleses, canadenses e portugueses, por exemplo, cujos países possuem sistemas de saúde realmente bem estruturados. E material bem mais farto e sistematizado sobre isso é o relatório da Mostra de Experiências realizada em 2017 pela SES-DF, reunindo variadas práticas de saúde originadas das unidades ambulatoriais, hospitalares e complementares, além de instituições parceiras e associadas, em nossa cidade. Vale a pena voltar ao assunto, mesmo decorridos mais de dois anos e tendo feito comentários sobre o evento em duas ocasiões anteriores. Mas hoje quero acrescentar um aditivo, que é o seguinte: por que deu (e dá) certo?

Tive a honra de participar do evento, convidado que fui à Comissão Julgadora dos trabalhos. Não foi pouca coisa; foram quase 200 experiências que estiveram presentes na tal mostra. Ali ficou patente a motivação dos servidores em geral, nos diversos pontos da linha de gestão e de assistência, mas também demonstrando o envolvimento de instituições parceiras e usuários dos serviços de saúde. Segue a lista das experiências premiadas, dentro de cada tema (nunca é demais recordar…). Algumas delas fizeram carreira de sucesso, sendo apresentadas em eventos nacionais e internacionais. Sem dúvida continuam sendo marcos de um SUS bem sucedido.

Na sequência, meus comentários a respeito daquele “por quê”.

  1. ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE E VIGILÂNCIA EM SAÚDE 1º lugar: Receita simples (UBS Itapoã) 2º lugar: Implantação dos serviços clínicos farmacêuticos na Atenção Primária à Saúde (desenvolvido em 12 UBS) 3º lugar: Probem- Obesidade  Infantil (UBS 2 – Recanto das Emas)
  2. REGIONALIZAÇÃO E CONFORMAÇÃO DAS REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE 1º lugar: Reorganização da rede de atenção à saúde de neurologia da Região Norte 2º lugar: Ambulatório multiprofissional de medicina e enfermagem perioperatório (AMME- Hospital Regional do Gama) 3º lugar: Atendimento psicossocial no âmbito da urgência e emergência psicossociais
  3. REGIONALIZAÇÃO E APLICAÇÃO DAS FERRAMENTAS DE PLANEJAMENTO 1º lugar: Experiência com a construção de um modelo para o ciclo do planejamento integrado da Secretaria de Estado de Saúde 2º lugar: A contratualização como ferramenta para a implantação da gestão regionalizada na Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal 3º lugar: Criação da comissão de elaboração de instrumentos de contratação
  4. PARTICIPAÇÃO SOCIAL 1º lugar: Elaboração do “Livro de Receitas Regionalizado” adaptado ao grupo de diabéticos do Cruzeiro Novo 2º lugar: Oficina verde: manejo da natureza para nutrir a alma e o corpo (Compp) 3º lugar: Implantação do “Plantão Social” na figura dos conselheiros de Saúde
  5. GESTÃO DO TRABALHO E DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE 1º lugar: Cantina terapêutica do Hospital São Vicente de Paulo 2º lugar: Êxito na metodologia utilizada durante a implementação do Converte na Região de Saúde Norte 3º lugar: O despertar para o cuidado na morte e no processo de morrer – Curso de extensão com estudantes da Escs
  6. DESENVOLVIMENTO E APLICAÇÃO DE TECNOLOGIAS PARA QUALIFICAÇÃO DA ASSISTÊNCIA E DA GESTÃO 1º lugar: Dicas Samu 2º lugar: Implantação de protocolos e fluxos de trabalho na APS Oeste 3º lugar: Embarcando na segurança do paciente – Hran
  7. VOLUNTARIADO E PARCERIAS COM ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS 1º lugar: Polvo do amor 2º lugar: Projeto Pet Amigo (Hospital de Apoio) 3º lugar: Projeto social da UTI pediátrica do HRSM
  8. PRÊMIO ESPECIAL (Viagem para a África do Sul) Projeto Alimentos ultra processados: uma questão de saúde pública (UBS 1 de Candangolândia) – Concedido pelo Centro de Excelência contra a Fome da ONU

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E então: por quê deu certo?

Em minha tese de doutorado defendida na ENSP/FIOCRUZ (já faz tempo) analisei o percurso de seis experiências de implementação do então Programa, depois Estratégia, de Saúde da Família, que ainda não tinha completado sua primeira década de existência no Brasil. Concluí o trabalho procurando sistematizar, sem caráter exaustivo, dada a riqueza e a complexidade dos processos em jogo, os fatores responsáveis pelo bom desempenho material, simbólico e temporal daquelas experiências, buscando ainda inserir aquilo que interessasse ao maior conjunto possível de situações, deixando de lado aspectos considerados demasiadamente particulares ou de aplicação muito restrita. Acho que mesmo apesar do tempo, decorridas quase duas décadas, aquela lista ainda pode ajudar a encontrar uma resposta para uma pergunta que verdadeiramente não se silencia nas organizações públicas, daqui e de alhures; de hoje e de sempre: por que algumas coisas dão certo (e em contrapartida, outras não)?

Boa condução é a primeira delas, muito importante, por sinal. Entre seus atributos, podem ser arrolados capacidade de tomada de decisões, liderança, carisma, espírito empreendedor, embasamento ideológico, além de qualificação técnica e continuidade. Mas esta condução virtuosa teria pouco a oferecer se não contasse com boas equipes técnicas, aspecto que pode ser traduzido por qualificação de conhecimentos, tradição de discussões em saúde, base ideológica, capacidade empreendedora associada a militância, sintonia com o projeto político, aceitação da liderança, organização e inserção em entidades representativas.

Boas práticas sociais também possuem, sem dúvida, um lugar de destaque, traduzidas: por equilíbrio e sintonia entre as propostas de participação originadas do governo e as da sociedade; associação sinérgica entre as noções de responsabilidade pública e de direito à saúde; bem como produção de efeitos concretos como resultado de tais práticas.

Como decorrência, a presença de um bom governo, que se traduz por práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além do campo da saúde, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública.

Boa articulação externa ou a prática daquilo que denominei de um cosmopolitismo político e sanitário, de preferência direcionada a interlocutores seletos individuais ou institucionais, que sejam capazes de oferecer respaldo técnico e cobertura política ao desenvolvimento dos projetos e programas de governo. Isso também faz – e continua fazendo – a diferença

Boa implementação programática é outro fator, significando investimento em padrões efetivamente substitutivos dos modelos de atenção, buscando a neutralização da competição e do antagonismo com os elementos estruturais e ideológicos dos velhos regimes de práticas. Aí se insere, também, o desenvolvimento de inovações, seja do ponto de vista gerencial ou assistencial, diferenciando-as das meras novidades, mas tendo como diretriz norteadora a ousadia e o destemor frente às possibilidades de erro e reversão.

Importa também a busca decidida da sustentabilidade das práticas desenvolvidas, não só em termos financeiros e de estrutura e processos, mas também nos planos cultural, simbólico e político, resultando no necessário enraizamento das experiências no imaginário da comunidade de usuários e dos tomadores de decisão. E para finalizar vinha o que denominei de efeito espelho, ou seja, a articulação e a difusão da experiência local entre interlocutores externos, diferenciados ou não, configurando a responsabilidade por uma pedagogia do exemplo fundamental no processo de construção de políticas públicas.

Não é tudo o que influencia no bom resultado de uma política ou ação pública. Mas creio que ajuda a entender os meandros do que se passa em tal território.

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Os interessados em conhecer as experiências da Mostra de 2017 com maiores detalhes, não só as premiadas como as demais selecionadas para a etapa final, em número de 193,  podem acessar o link seguinte: mostra_caderno-de-experic3aancias-final

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