Leio nos jornais a notícia que já parece fazer parte da paisagem: um homem com uma faca enterrada no tórax teve que esperar quase 48 horas para ser operado em um dos hospitais do DF. Hospital público, no caso, mas poderia ser também privado. Coisas assim não são exclusivas do SUS. Se procurarmos bem, é possível encontrar um feixe de monstruosidades deste tipo também nos hospitais com nome de santa que existem por ai. Mas o certo é que ninguém fala das inúmeras vidas que são salvas diariamente – e não são poucas! – nos hospitais do DF, tanto públicos como privados. Algo assim se aplica também, segundo pesquisas recentes, à divulgação de fake news maliciosas (existiria uma variedade “do bem”?), capazes de circular mais rápida e eficazmente do que as notícias realmente verdadeiras de utilidade pública. Assim funciona a humanidade. Mas é preciso prestar atenção nos contextos. Por exemplo, naquele cartaz habitual na entrada nos serviços de saúde que ameaça “maltratar funcionário público é crime”. Essa turma é realmente “maltratada”? Com frequência? Acredito que sim, mas não vejo preocupação idêntica e recíproca quando a questão é “maltratar usuários”, que também é um evento frequente. Internamente, nos serviços de saúde, há uma história contumaz: o mandatário culpa o subordinado e o subordinado dirige a culpa para mais abaixo, de tal forma que a culpa de tudo o que acontece de ruim na repartição corre o risco de vir a ser da moça do cafezinho. Enquanto isso todos culpam o governo – qualquer governo – e da mesma forma os governos culpam os cidadãos (“por que raios foram votar na gente?”) ou então a “herança maldita” que receberam. Uma coisa é certa: ninguém se assume diretamente culpado. Aquela história de ministros se suicidando de vergonha em frente a câmeras de TV só acontece mesmo entre os japoneses, eita povo bárbaro! É cultural, eu diria… Mas afinal, que cultura é essa?
Fui atrás de mais luzes na clássica obra de Morgan (1986 – ver link) na qual se discute a possibilidade de se compreender as organizações a partir de uma metáfora da cultura. Assim podemos ter ingredientes culturais diversos e por vezes antagônicos, como a aceitação ou a rejeição de lideranças assentadas em valores, carisma, ideologia; o apelo a conteúdos simultaneamente simbólicos, ideológicos e técnicos; os atores se movendo em torno de aspectos como militância, inquietude, visão progressista ou conservadora de mundo; adesão ou refugo à participação inspirada em determinados valores, referenciais simbólicos ideologias, vocação; valorização, ou não, da vida associativa, das decisões altruístas, do bem comum e da coesão grupal; o compromisso ou a rejeição à aceitação de mudanças organizacionais, além da aceitação ou da recusa da auto-responsabilização face aos deveres institucionais.
É assim que padrões de crenças e significados compartilhados, como ocorre em toda organização humana, podem influenciar a capacidade da organização em lidar com os desafios que enfrenta. “Ser membro” de uma organização desperta um conjunto complexo de obrigações, mas também de entusiasmo e outros valores simbólicos, além da responsabilidade de compartilhar problemas e ideias inerentes à mesma – ou não. A cultura organizacional, assim, não é algo imposto de fora; ao contrário, ela se desenvolve durante o próprio curso das inúmeras interações que permeiam as organizações e as articulam com seu ambiente social, constituindo-se assim um autêntico processo de construção e reconstrução da realidade, ativo e contínuo, que permite às pessoas ver e compreender eventos, ações, objetos, expressões e situações particulares e de maneiras distintas. Como resultado, as organizações podem ser compreendidas através daquilo que pensam, dizem e realizam as pessoas dentro delas, mediante alguns artefatos culturais, ou seja, as estruturas, as regras, as políticas, as missões, os procedimentos, que compõem a vida institucional. Para o autor, a cultura é um amálgama normativo que mantém a organização unida.
Em outras palavras, a cultura das organizações tem por fundamento não só as capacidades como as incapacidades da mesma e trazem como resultados, em termos evolutivos, certas características que definem os modos pelos quais a organização opera, em uma construção realizada no âmbito das atitudes e dos valores de seus servidores. Mas não se trata, é claro, de classificar as culturas como boas ou más, pois seus derivados são compatíveis com a realidade social em que se desenvolveram e representariam um dado a mais, embora significativo, na interpretação dos processos subjacentes nas organizações.
Buscando respostas em uma organização na qual trabalham cerca de 30 mil servidores, como SES-DF, é preciso mergulhar em um denso cenário de considerações. Por exemplo, da existência de uma real construção coletiva, moldada pela tradição institucional, política e social local; ou da lida com fatores diversos e por vezes antagônicos; com a aceitação ou a rejeição das lideranças; idem em valores, carisma, ideologia, conteúdos simbólicos e técnicos; com as fontes de inspiração que fazem com que as pessoas que lá estão se movam em torno de uma visão inspirada na valorização da vida associativa, das decisões responsáveis focadas no bem comum; com a práxis auto-responsabilizadora face aos deveres institucionais. A tal cultura organizacional jamais seria algo imposto de fora, mas ao contrário se forma com as inúmeras interações que permeiam as organizações e as articulam com seu ambiente social, frente às quais é fundamental a existência de exemplos que venham das lideranças.
Mas nos desloquemos para o outro lado da mesa. Vejamos algumas expressões do senso comum que traduzem o também representa uma modalidade de cultura em relação à saúde. “Não é preciso colocar mais dinheiro da saúde, basta melhorar a gestão”. Aqui, parte-se de dois pressupostos: primeiro, que dinheiro é um material elástico, ou seja, pode-se acrescentar qualquer tipo de demanda que ele tem que dar para o gasto. Segundo que a gestão da saúde é invariavelmente ruim. Juízes e Promotores, particularmente, fazem disso mais que uma manifestação cultural, uma crença arraigada, um dogma quase religioso!
E mais: “só um médico pode resolver meu problema! Só um especialista para dar conta do que eu tenho”. Corolário: “devo dispor de todos os serviços de saúde possíveis, inclusive emergências e especialidades, a poucas quadras de minha casa”. Mas não próximos demais para que o demandante não seja perturbado pelo alarido das sirenas das ambulâncias, é claro. A lista de queixas continua e é longa: “onde já se viu uma consulta sem receita” “Este doutor especula demais sobre a vida da gente”. “Banho de assento e repouso – para que serve isso?” “Vou sair daqui e vou dar queixa na TV, na Delegacia e na Promotoria!” “Eu venho aqui consultar e eles só falam em vacina”. “Eu gosto é do pronto atendimento: tudo bem que a gente fica umas horas na fila, mas sempre sai daqui com receita e pedido de exame na mão”.
A cultura do usuário faz tampa e balaio com a cultura dos políticos e a de alguns profissionais de saúde. O encontro disso costuma não resultar em nada que preste.
Há tempos li na imprensa comum um artigo do cientista britânico, Frank Furedi, da Universidade de Kent, que só veio a fortalecer meus argumentos relativos à questão cultural na saúde. Eis o que ele diz: “as sociedades ocidentais não vão superar a crise dos sistemas de saúde. Por mais que os governos joguem dinheiro no setor, um número cada vez maior de pessoas se identificará como doente. A solução para o problema não está no âmbito das decisões políticas, mas sim no âmbito da cultura. São coisas que estão além das possibilidades dos sistemas de saúde isoladamente”. Confesso que me senti mais aliviado, com aquele velho e confortável sentimento do “mas não é isso mesmo que eu penso?”
Fazer mudanças em tal cenário não é nada simples. Talvez exija o esforço de mais de uma geração, além de muita paciência histórica para não sair dizendo por aí que as coisas são como são e não têm jeito mesmo.
***
Vejam aí a tal faca nas costas…
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2020/f/T/nmLGPWRg6XeH8lvOaf0g/examefacada.jpeg)
***
Saiba mais:
- https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/02/18/paciente-com-faca-cravada-nas-costas-passa-por-cirurgia-apos-44-horas-de-espera-em-hospital-publico-do-df.ghtml
- Morgan, G., 1986. Imagens da organização. São Paulo: Atlas
- https://mktadm.files.wordpress.com/2012/08/imagens-da-organizac3a7c3a3o.pdf
Clique para acessar o imagens-da-organizac3a7c3a3o.pdf
Clique para acessar o imagens-da-organizac3a7c3a3o.pdf

