A Peste e a Pandemia: reflexões à luz de Albert Camus

Albert Camus, escritor de língua francesa, nasceu na Argélia, em 1913 (morreu em 1960), filho de família pobre. Ele era um “pied-noir”, na preconceituosa expressão utilizada pela elite de então. Viveu os conflitos da descolonização da Argélia, espectador da luta feroz de todos contra todos, fossem argelinos ou franceses, muçulmanos ou cristãos, da extrema direita ou das esquerdas de qualquer latitude e coloração. Teve uma vida movimentada, seja como escritor, jornalista, filósofo, divulgador de ideias e, principalmente,  militante, embora de uma variedade cética. Homem ligado à esquerda, tendo inclusive lutado entre os Partisans na Segunda Guerra, nem por isso escapou da oposição dos comunistas e inclusive rompeu com J. P. Sarte, de quem era amigo, por este motivo. É que ele apreciava e levava a sério a frase do poeta americano Walt Whitman, a quem muito admirava: “sem liberdade, nada pode existir”. Um de seus livros mais famosos, A Peste, narra o decurso de uma epidemia em Orã, na Argélia, onde ratos mortos são encontrados de forma progressiva nas ruas e nas casas, principalmente entre as famílias mais pobres, não por acaso, árabes. As autoridades decretaram um “estado de praga”, com os muros da cidade sendo fechados e se impondo uma quarentena à população. Buscar em tal romance um paralelo com a situação atual da pandemia de coronavírus é algo irresistível…

Famílias foram separadas, com as pessoas mais enfermas removidas de suas casas. Um padre, em inflamado sermão, disse tratar-se de castigo divino, aliás merecido pelos habitantes. Entretanto, ao que parece, pelo menos não forçou junto às autoridades que os fieis continuasse frequentando a igreja, como os pastores evangélicos atuais andam fazendo por aqui, de olho no dízimo. O padre que dizia que as pessoas deveriam aceitar a peste como castigo divino acabou sendo uma das vítimas da mesma.

Prisioneiros eram submetidos ao trabalho de recolher e sepultar os cadáveres que se amontoavam nas ruas. Tempos depois, porém, as mortes retrocederam, as portas da cidade foram reabertas e as famílias voltaram a se reunir. Mas a vida já não era a mesma.  A peste ficou como marca do terrível sofrimento por que todos passaram.

Tal história representa, sem dúvida, uma crítica direta ao nazismo e aos totalitarismos em geral, tendo sido escrito na época da ocupação militar da França pelos nazistas. Nisso já começam suas semelhanças como momento atual, no qual, se antecipando ao vírus, eclodiram, aqui e ali, lideranças políticas sintonizadas com o autoritarismo. O livro traz um libelo contra a opressão humana, propondo uma atitude de incredulidade face ao impensável, conclamando a uma revolta libertadora. É uma obra desesperada, sem dúvida, na qual fica claro que o bacilo da “peste” autoritária não morre e não desaparece, ficando por “dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas”, aguardando “com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papeis, nos lenços”.

Personagem central da obra é Rieux, o médico da comunidade, que acredita que a solidariedade é a única conduta humana aceitável diante da tragédia coletiva, percebendo que a doença reduz as pessoas aos elementos básicos da vida: a dor, o sofrimento, a angústia e o medo, o que confronta suas vítimas com o absurdo e a precariedade da condição humana. Mesmo no meio do caos, acredita ele, torna-se possível desenvolver amor e solidariedade, remédios paliativos, mas insubstituíveis, diante do absurdo. Assim, a partir da figura de Rieux, se defende a solidariedade, naquilo que é comum a todos, como saída possível para o horror da peste.

Nós que experimentamos esta inédita quarentena diante do coronavirus, devemos nos deter sobre o que Camus diz sobre o tempo, cuja profundidade normalmente não percebemos, mas que sem dúvida pode despertar alternativas de ação. Segundo ele, torna-se preciso “senti-lo em toda a sua lentidão”. Embora isso esteja acessível a todos as pessoas em isolamento, a incerteza e o medo poderá transformar esta oportunidade em paralisia e estagnação, perigo que talvez seja ainda mais forte do que o do vírus em si.

Sobre a presença de Deus, aquele que se encontra “acima de todos”, tão clamado pelas autoridades atuais no Brasil, Camus, um ateu, tem a fé como sinal da impotência humana, embora defenda que o mero ceticismo não liberta ninguém de tal problema, só deixa as pessoas mais desamparadas.

Ainda sobre o médico Rieux, arquétipo de todos que mantêm acesa uma chama de amor e solidariedade ao próximo, o autor vê nele a grandeza da condição humana, quando nela permanece a capacidade de amar, não a ambição. Os promotores verde-amarelos das passeatas pela liberação da quarentena no Brasil demonstram muito bem o que representa tal opção pela avidez.

Camus acredita ainda que a vida é totalmente absurda e ilógica, e que a inteligência do homem na verdade o faz mais infeliz, ao lhe mostrar que quem governa a vida é o acaso. Mas pensando no Brasil atual, a redução da existência humana ao ilogismo, ao absurdo e ao acaso, não seria mais um fator desagregador do impeto solidário e das atitudes de resistência? Aliás, Camus parece estar no Brasil de hoje quando indica que o mal e a indiferença são mais abundantes do que as boas ações, pelo menos por parte dos governantes. Pensa que o homem pode até não ser de natureza ruim, mas é deficiente em seu conhecimento, fazendo com que seus atos mais nefastos provenham da ignorância. Ilustrando: “não há verdadeira bondade, nem amor verdadeiro, sem toda a clarividência possível”. Numa época em que o conhecimento científico é negado e que as ciências humanas são relegadas à condição de “balbúrdia”, nada soa tão verdadeiro e imperioso como tal apelo à “clarividência”.

Camus era, na verdade, mais um filósofo do que qualquer outra coisa. Sua obra desperta, por exemplo, a questão de “o que é ético”. Honestidade e humanidade são essenciais, defende ele em seus textos,  embora possam florescer no ambiente das imperfeições humanas. Em tal batalha, o fanatismo ideológico é desastroso e assim, mais uma vez: pobres de nós brasileiros!

E para quem questiona ou já não acredita mais na quarentena e se sente dominado pelo tédio que ela provoca, ele lembra: “ao grande e furioso impulso das primeiras semanas, [ocorreu] um declínio que seria errôneo tomar como resignação, mas que não deixava de ser uma espécie de consentimento provisório”. Isso faz com que se ofusque a sensibilidade, adormeça o espírito, retroceda o sentimento humanitário, além de que  biologia e os instintos ocupem lugar da razão. Mais uma vez é o Brasil de hoje que está presente.

A reclusão provocada pela epidemia, segundo Camus, aniquilaria valores, empurrando as pessoas a um nível de consciência de “gado no matadouro”, capaz de antever seu fim, embora incapaz de reagir. A peste mata corpo e alma e para escapar disso o ser humano precisa se aproximar e mesmo tocar seus semelhantes. Não, Bolsonaro não o leu – não tem “altura” para tanto – mas aparentemente apreciaria este apelo de “aproximar e tocar” as pessoas, irresponsavelmente, diga-se de passagem, diante do conhecimento científico que ele tanto despreza.

Até Deus acaba desertando, ninguém mais fala d’Ele quando a peste avança. O que sobra é uma esperança débil que nada mais é do que a simples obstinação animal por viver. E ele conclui: “tudo o que o homem pode ganhar no jogo da peste e da vida é o conhecimento e a memória”, comparando os segregados pela epidemia a Sísifos redivivos, condenados a subir penosa ladeira para se precipitarem, afinal, no vazio. Mas cá entre nós: pior do que desertá-lo não seria esperar dele a panaceia para o mal, mediante jejuns, orações e exortações, deixando de lado a Ciência?

Será então, indaga Camus, que “o único meio de fazer com que as pessoas estejam umas com as outras é lhes enviar a peste”? A grande lição do livro, certamente, é a de que só a solidariedade e o afeto que podem ser despertados entre as criaturas doentes ou por adoecer pode lhes aliviar.  Contar as horas, o que muitos se dedicam a fazer compulsivamente, é apenas constatar que cada minuto é um mais passo em direção ao abismo. Ele é um humanista, sem dúvida, e não condena seus semelhantes: “há nos homens mais coisas dignas de admiração do que de desprezo”.

Assim, uma mensagem possível é a de que não se deve lamentar o isolamento que nos é imposto pela pandemia, mas sim tratá-lo como oportunidade para aprofundarmos em nossa intimidade e assim buscar um sentido à vida. E ao fim e ao cabo Camus parece deixar um recado para “alguém” em Brasília: “Somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de fazer”.

Concluindo, ainda não sabemos o que nos aguarda do lado de lá desta quarentena: a eminência da barbárie ou a redenção. Parece certo que não seremos os mesmos, o mundo tal qual o conhecemos mudará de figura: mas, para o bem ou para o mal? Deixando de lado o pessimismo que se infiltra cada vez mais entre nós, fico com a psicanalista Vera Iaconelli. Temos pelo menos duas possibilidades de transformar esta “pandemonia” em coisa proveitosa. Seja pelo lado da solidariedade ou do amor ao próximo, à moda do Dr. Rieux, seja pelo lado do pragmatismo, pois será muito difícil para cada um e para todos sobreviver em um mundo devastado, dentro de um buraco que acabará por nos engolir, mais dia menos dia, do qual não conseguiremos escapar sozinhos.

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As anotações acima foram baseadas em alguns textos que busquei nesta grande ferramenta dos tempos quarentenários, a  internet, abaixo relacionados .

 

 

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