Quem deveria dar o exemplo, ignora os fatos. E o que faria as pessoas comuns obedecerem os ditames da ciência ou, pelo menos, do bom senso? Para uns, a mais valia; para outros o pão de cada dia… E vamos nos aproximando da perigosa esquina, da qual não haverá mais retorno. A arte já se antecipou à vida há tempos. Vejam esta narrativa: <<Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte>>.
<<Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respectivas casas e os punham diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas).
Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante. E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto, que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora (principalmente se se quisesse dar a cada um seu lugar próprio, segundo o antigo costume), abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.>>
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Relaxemos… isso não acontece (ainda) entre nós. Mas em Guayaquil se chega perto. Aqui é apenas a narrativa de acontecimentos do século XIV, narrados no livro de Giovanni Bocaccio, Decamerão. Ele foi um importante humanista, autor de um número notável de obras, incluindo a presente, que fez de Boccaccio o primeiro grande realista da literatura universal. Setecentos anos depois, a obra de Bocaccio se revela não apenas realista como inescapável. Nada será como antes, mas pelo menos a Peste Negra abriu as portas para um mundo de descobrimentos, de racionalidade, de declínio das superstições, de renascimento artístico, de ascensão da ciência. Já o mundo de hoje, este da pandemia do Covid, não nos augura coisa boa, com os Donald, os Boris, os Orban e mais algumas crias deformadas que andam por aí, inclusive ao Sul do Equador. Trouxe o texto aqui só para compartilhar com os leitores, para tremermos juntos face ao negacionismo messiânico, forrado por uma “modernidade” que rescende ao século XIV.
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Um resumo da obra:
Enquanto a cidade de Florença explode em degradação física e moral causada pela peste negra, dez jovens retiram-se para uma vila distante onde, entre prazeres amenos e poesia, praticam a alta moralidade. Como centro de suas atividades, contam dez histórias diariamente, durante dez dias. Toda a vida humana, com seus desencontros, sentimentos, morte e superação, é ali narrada, como num afresco. Vai-se da degradação à elevação. Nada do que é humano lhe é estranho. Um novo mundo nasce, e uma nova vida.


Parabéns. Belo texto.
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