Coronavirus: o GDF estaria fazendo a coisa certa?

O Governo do Distrito Feral se antecipou nacionalmente, ao decretar isolamento e quarentena desde meados de março. Manifestei-me em contrário na ocasião, achei precipitado, mas depois dei o braço a torcer. Nestes tempos “pandemônicos” mudar de opinião pode ser uma virtude… Pena que para muitos, por exemplo para a mais alta autoridade da República, isso não esteja sob cogitação. Ou melhor, mudar de opinião até que este aí sempre muda, mas sempre para pior… Mas feita a ressalva de que Ibaneis e sua equipe de fato tinham razão, em que pese o desembarque (ou seria defenestração?), neste meio tempo, do Secretário Okumoto, por razões não esclarecidas, cabe analisar, agora com o olhar neutro do cidadão e sanitarista preocupado com a saúde em nossa cidade, como anda a epidemia por aqui, não só em termos da curva do número de casos, como também na razoabilidade das medidas tomadas pelas autoridades.

Uma primeira consideração a ser feita é quanto à contagem comparativa os casos. O DF é colocado nas estatísticas como estado (UF), condição da qual ele usufrui apenas por uma casualidade burocrática. Somos na verdade uma cidade, uma das mais populosas do país, aliás, e é junto com as nossas congêneres também populosas e densas, como São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Goiânia, Porto Alegre, Salvador, Fortaleza e outras que deveríamos ser comparados.

Com efeito, quando se tomam os dados dos estados, globalmente, eles não permitem discriminar variáveis importantes, tais como distribuição populacional e, principalmente, a capacidade de notificação e registro de casos, que certamente é mais dificultosa e irregular no interior. O resultado é que tal registro bruto dos estados pode acarretar sub notificação. Já no DF, embora isso possa existir, é certamente de muito menor intensidade do que nos estados, digamos, “verdadeiros”. Assim, comparar o DF com os demais estados da federação certamente acarretará aparente exacerbação do fenômeno aqui, como, aliás, já está acontecendo.

Assim é que matéria de O Estado de S. Paulo do último dia 01/04 arrola os municípios mais afetados no Brasil, sem citar Brasília, que afinal é computada entre os estados, não entre as cidades.  Ao mesmo tempo, segundo o Ministério da Saúde, a incidência do vírus no Brasil é de 4,9 casos por 100 mil habitantes, com o Distrito Federal no topo da lista (14,9 casos/100 mil), seguido pelos estados de São Paulo (9,6), Ceará (7,9), Amazonas (7,4), Rio de Janeiro (7,2), Rio Grande do Norte (6), Roraima (5,9) e Acre (5,1). E de tal modo a informação mais difundida é esta, a que dá ao DF, comparado apenas com estados, a triste prerrogativa de estar em primeiro lugar no ranking infeccioso nacional.

Seria fácil corrigir tal distorção, se os dados das cidades ou, pelo menos das capitais, estivessem facilmente acessíveis. Mas nisso há certa dificuldade, pois dependem da coleta, do registro, do processamento e da divulgação feitos pelas Secretarias Estaduais de Saúde. Assim, numa primeira vista, só foi  possível localizar informações sobre algumas cidades, como se mostra uma comparação (atualizada para 5 de abril – ver link https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/analise-municipios-br/) entre Brasília, São Paulo, Rio e Fortaleza. Aí, a coisa muda de figura. Nossa cidade se desloca do topo para uma situação bem mais abaixo, ficando pareada com o Rio e bem abaixo de São Paulo e Fortaleza. Na mesma fonte, a projeção de casos para o mês de abril mostra que eles disparariam exponencialmente em São Paulo, mantendo níveis mais modestos nas outras três cidades, ficando Brasília em situação ainda inferior quantitativamente às outras três.

Ampliando um pouco mais o escopo da comparação, vejamos agora uma lista maior de capitais, no caso, as mais populosas em cada região do país. Os dados estão mostrados na tabela abaixo, em ordem decrescente de incidência por 100 mil habitantes. Confirma-se que Brasília está longe de ser a cidade mais afetada, ao contrário do que mostrava sua mera comparação com estados, ficando bem abaixo de São Paulo, Manaus e Fortaleza, por exemplo, equiparando-se ao Rio, Recife e Porto Alegre. Goiânia e Belém mostram números baixos, até mesmo surpreendentes, menores do que cinco. Poderia ser apenas um problema de subnotificação (ou atraso na consolidação dos registros), mas, de toda forma, o acompanhamento das curvas respectivas ao longo do tempo provavelmente deverá esclarecer a essência do fenômeno. Curitiba, BH e Salvador ficam em posição intermediária.Isso vale para o dia sete de abril. Hoje, passados cinco dias a situação certamente já mudou, não sabemos se para pior, melhor e quanto. Até aqui, portanto, tais números de certa forma confirmariam o acerto das medidas precoces de isolamento e quarentena em Brasília, com mérito do governo local. Entretanto, o que mais há no cenário?

CAPITAL POPULAÇÃO Nº CASOS (Até 07/04) INCIDÊNCIA/100 MIL HAB
MANAUS 2.182.763 712 32,6
SÃO PAULO 12.252.023 3754 30,6
FORTALEZA 2.669.342 704 26,4
PORTO ALEGRE 1.483.771 254 17,1
RIO DE JANEIRO 6.718.903 1110 16,5
BRASÍLIA 3.015.268 485 16,1
RECIFE 1.645.727 254 15,4
BELO HORIZONTE 2.512.076 299 11,9
CURITIBA 1.993.105 205 10,6
SALVADOR 2.872.347 292 10,2
­­­­­­GOIÂNIA 1.516.113 73 4,8
BELÉM 1.492.745 68 4,6

Atenção: Dados do dia 07/04/2020

Entre as ações recentes do GDF está a criação de um Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE) para enfrentamento da pandemia, coordenando as ações de combate coletivo à infecção. Entre suas atribuições estão: analisar os padrões de ocorrência, distribuição e confirmação dos casos suspeitos de coronavírus no DF; elaborar os fluxos e protocolos de vigilância, assistência e laboratório; capacitar servidores da SES e das unidades privadas de saúde, de forma a ampliar o potencial de resposta contra a doença; e subsidiar os gestores com informações técnicas sobre o assunto, para a melhor tomada de decisões. Além disso, COE atuará de forma conjunta com outros órgãos, como o Corpo de Bombeiros, Secretaria de Educação, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Defesa Civil, Rede Hospitalar Privada, bem com o Ministério da Saúde, o Conselho de Saúde do Distrito Federal (CLDF) e outras entidades. Foram incluídas depois no âmbito das ações de tal comitê a dengue e a zika. É de se esperar que funcione a contento, sem travas burocráticas e a habitual interposição de vaidades, clientelismo e corporativismo.

Medidas associadas, igualmente corretas, estão sendo tomadas, como por exemplo, algo que já deveria ser obvio, ou seja, que o atendimento deve ser procurado, inicialmente, nas unidades básicas de saúde (UBS) mais próximas de onde residem os pacientes; o Hospital Regional da Asa Norte (Hran), passa a ser considerado referência para o atendimento realizado nas unidades, quando indicada a internação; ações de vigilância reforçadas no Aeroporto Internacional de Brasília; normas sobre o atendimento nas unidades básicas de saúde, com os casos suspeitos em área separada até a solução final; idem pra transporte sanitário de pacientes; na assistência farmacêutica de alto custo ficou definido que os usuários que fazem parte de grupos de risco, como idosos, crianças, gestantes, imunodeprimidos, transplantados e portadores de doenças respiratórias, podem cadastrar representantes para a retirada dos medicamentos. Cogita-se, ainda, da possibilidade de contratação de profissionais sem processo seletivo e a aquisição de equipamentos sem necessidade de licitação, além da convocação de servidores aposentados e também os aprovados em concursos vigentes, utilizando a lista de cadastro reserva. Mas isso, é claro, vai depender de muita negociação política e decisão jurídica correspondente. Tem sempre um Promotor de plantão procurando coisas assim com uma lupa, para acusar algum gestor incauto de “improbidade administrativa”, como se sabe… De toda forma, as primeiras convocações e aquisições já estão sendo processadas – como aliás convém a um momento “de guerra” (inescapável tratá-lo assim…).

São medidas corretas, sem dúvida. Mas melhor seria se a nossa cidade não enfrentasse, quase desde sempre, situação pré-falimentar de seu sistema de saúde. Só para citar três óbices de vulto: (a) a definição apenas formal e burocrática, jamais enfrentada de fato, de modelo assistencial que tenha na atenção básica sua porta de entrada e instância reguladora, donde advém a habitual superlotação dos serviços hospitalares e de pronto socorro; (b) as distorções da política de recursos humanos, agravadas por questões corporativas e de mercado, o que faz com que Brasília, que tem os melhores indicadores no país relativos à presença de médicos e enfermeiros, continue a conviver com marcantes vazios assistenciais; (c) a sempre postergada descentralização de recursos, particularmente para aquisição de alguns insumos estratégicos e reparos na estrutura de unidades, embora devesse ser essencialmente vinculada, tal descentralização, a indicadores de responsabilização e performance – o que também não é levado a sério. Mas nestes quesitos Ibaneis pode tranquilamente alegar que recebeu aquela famosa “herança maldita” (e ela é histórica, certamente), mas nada o impediria de pensar seriamente no assunto tomar iniciativas que desencadeiem as mudanças necessárias.

Um rápido comentário, ainda, sobre outros atores com atuação pertinente à presente situação. O sindicato dos profissionais de saúde (SindSaúde-DF), em sua página da web, bem no momento da subida dos casos, se regozijava com a aprovação de uma complementação salarial denominada GATA, seja lá o que isso for. As entidades médicas estão preocupadas, porém muito mais com o conforto e a segurança dos profissionais do que propriamente com os problemas dos usuários do sistema público. Já a Câmara Legislativa DF parece estar reagindo à altura dos acontecimentos, pois votou verbas diversas para a aquisição extraordinária de equipamentos, além de discutir a decretação de estado de calamidade púbica encaminhada pelo Executivo. Em qualquer um desses casos, entretanto, nenhuma palavra ou lembrança sobre a importância ainda mais significativa que o SUS adquiriu em tal cenário e a necessidade de que o mesmo seja defendido e fortalecido.

Em suma, o GDF parece estar fazendo o dever de casa, mas isso não significa que esteja tudo bem. Há uma dívida social de vulto, que precisa ser paga. Com ela no passivo da cidade, dificilmente o resultado será o que a nossa população merece.

(Com a colaboração de Flavio Moreli Goulart).

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Por estes dias li numa dessas redes sociais a manifestação de um antigo sanitarista do Ministério da Saúde conclamando a nós todos “baixarmos as armas” (ou algo parecido) em favor da luta contra o coronavírus. Não posso perder a oportunidade de comentar. Quem deve baixar as armas, cara pálida? Todos nós que já estamos preocupados como assunto e só temos “armas” para combater o vírus? Ou particularmente aqueles que mantêm suas baionetas em riste desde 2018, como os adeptos do capitão da reserva, entre os quais se inclui, aliás, o referido manifestante. Eu, por exemplo, estou fora disso, da mesma forma que os mais de 70 milhões de eleitores brasileiros que não fizeram tal opção. Estes últimos, aliás, não precisamos “baixar armas”.  Como decorrência, aqueles que se permitem deitar falação agora sobre este baita problema, como eu o faço no momento, deveriam ter a honestidade de se olhar no espelho a cada manhã e, em face da sua opção eleitoral para a Presidência da República, julgarem o quanto seu voto contribuiu (ou não) para o calamitoso estado de coisas atual. É claro que este governo não é responsável pela pandemia, mas suas ações têm sido as mais desastradas, irresponsáveis e mal calculadas que se possa imaginar. E certamente agravam o quadro. Assim, não custa nada exercer um pouco a virtude da “humildade”, como o próprio capitão pediu ao seu quase ex-Ministro da Saúde recentemente, combinando-a, de passagem com alguma “honestidade intelectual”, se é que tal qualificação possa ser aplicada a bolsonaristas-raiz.

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REFERÊNCIAS

 

 

 

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