Estado de emergência, controlose e infantilização da gestão pública

O recente “estado de emergência” instalado no país como um todo e em muitas unidades federadas, entre elas o DF, sem dúvida constitui uma estratégia adequada para dar mais agilidade à gestão da coisa pública, aí incluído o controle da pandemia do Covid 19, geralmente tolhido por um verdadeiro “túnel de ferro”, formado pelas leis de Contratos e Licitações (L. 8666), Estatuto do Funcionalismo (L. 8112), Lei de Responsabilidade fiscal e algumas outras. Dentro de tal estrutura, muitas vezes, nenhum gestor consegue se mover, ainda mais em tempos de crise, como o presente, sem correr o risco de que alguma autoridade pressurosa, seja do Ministério Público ou dos Tribunais de Contas, acorra para proferir um solene “não pode”. Pode ser até que tais autoridades estejam corretas em sua sanha bloqueadora em boa parte das vezes, mas em outras tantas talvez não alcancem compreender o que representa uma verdadeira emergência, julgando que o cumprimento rigoroso das minúcias legais é mais importante do que salvar vidas. É óbvio que do lado dos fiscalizados, ou seja, dos gestores do Executivo, sejam costumeiras as burlas, seja por má fé ou por ignorância. Mas é preciso encontrar um meio termo, sem dúvida. Sempre me ocorre a situação que presenciei pela TV naquele maremoto no Japão, alguns anos atrás. Em Narita, cidade arrasada pelo fenômeno, o aeroporto ficou em tal estado que havia lama até no segundo piso e aviões virados de ponta-cabeça. Pois bem, dois dias depois tudo funcionava normalmente. Imaginem a mesma situação aqui no Brasil… Ficou-me a indagação: será que no Japão existe algo parecido com as leis que citei acima? Ou o que manda lá seria uma proverbial “vergonha na cara”?

Minha crítica ao que acontece no Brasil tem como foco o que denominarei de controlose. Um exemplo: a “auditoria” que o TCU fez nos aeroportos brasileiros por ocasião do apagão aéreo de alguns anos atrás. Suas excelências na época deitaram sólida peroração sobre rotas aéreas, riscos aeronáuticos, questões meteorológicas diversas etc, como se fossem pilotos experimentados ou engenheiros especializados em aviação. Mesmo que tenham contratado alguém com tal perfil para assessorá-los, isso não era de competência de um tribunal de CONTAS – é bom frisar a palavra chave dessa questão. Parece que não conseguiram perceber que o buraco, ou melhor, o solo, estava bem mais em baixo e não lhes competia nada além de uma análise relativa ao emprego correto ou incorreto do dinheiro público.

Exemplos de tal “controle destrambelhado”, a que poderíamos chamar também de “controlite” ou “controlose”, não faltam… Não custa lembrar mais um. A rodovia que liga Brasília a Goiânia – BR 060 – levou anos e anos para ter concluídas suas obras de duplicação. Os embargos impetrados pelo TCU e pelo Ministério Público (e por sei lá mais quem) eram contínuos e contumazes. Motivos não faltavam: prestações de contas atrasadas, contratos irregulares em termos de conteúdo, licitações supostamente viciadas – coisas assim. Não é que isso não tenha importância ou não seja ilegal. Quem conhece os empreiteiros brasileiros sabe muito bem o que fazem e deixam de fazer. Só que o grande problema não seria bem esse. A questão maior é que, enquanto os embargos ocorriam incessantemente e paralisavam as obras, só no trecho então denominado “Sete Voltas”, que ficava logo após a divisa como DF, devem ter morrido algumas dezenas de pessoas – e enquanto morria gente, suas excelências embargavam, simples assim. Não seria o caso de liberar, sob condições bem definidas o prosseguimento da obra? Não, com certeza! Entre essa gente impera uma espécie de Lei Férrea que reza: “não pode fazer; em caso de dúvida, abster-se; se é urgente, esperar; não fazer nada é mais prudente”. Diante disso, o que valem uma, ou duas, dez ou cem mortes? Isso tudo sem falar nos prejuízos materiais causados por tais paralisações forçadas, por exemplo, as toneladas de terra dos aterros já prontos, levadas, na próxima estação chuvosa, a entupir riachos e rios sem conta na região. E tudo tinha que ser feito de novo, custasse o que custasse (e certamente o custo foi alto), desde que os contratos e os trâmites burocráticos estivessem em dia.

Coisa parecida é a tônica das auditorias clássicas, que na Saúde trazem muitos exemplos, sempre preocupadas com prazos e cifras, mas quase nunca ocupadas em saber dos impactos e resultados das ações realizadas – ou não. Os contratos estavam com datas vencidas, costuma ser a tônica das questões colocadas pelos auditores e outras excelências, sem que ninguém indague pelas vidas salvas, pelo atendimento às necessidades das pessoas, pela redução eventual do tempo de espera dos pacientes. Assim, o que importa menos é produzir bem-estar e saúde; ao contrário, sim (e sempre!), cumprir as metas quantitativas físicas e financeiras, a qualquer custo!

Essa turma do controlismo exacerbado trabalha com a ideia de que não se faz necessário qualquer equilíbrio entre a necessidade de gestão e a de controle, o clássico checks and balances inventado pelos liberais ainda no século dezoito. O clima instaurado por esses torquemadas é o de um verdadeiro “apagão decisório”, ao infundir nos gestores um “temor semelhante ao de crianças inseguras educadas por pais opressores” como disse um especialista verdadeiro, o advogado Bruno Dantas, o qual, entre outros atributos é Ministro do Tribunal de Contas da União. Diz ele que quem deveria regular e gerir a coisa pública em nosso país acaba evitando tomar decisões inovadoras e realmente eficazes, por medo de ter seus atos questionados e ir parar na cadeia. Ou ainda pior do que isso: protelar e deixar de decidir o que lhe é obrigação, por estar sempre aguardando um aval prévio dos egrégios Tribunais de Contas, o que configura um verdadeiro regime de terror e de confusão entre poderes, nada condizente com a verdadeira democracia. Assim, esta hipertrofia do controle só serviria para infantilizar a gestão pública, algo semelhante à atitude dos pais repressores que inibem a criatividade e a desenvoltura dos filhos, produzindo seres dependentes e autômatos.

Quanto às tradições controlistas e autoritárias dos referidos órgãos de fiscalização, nada indica que elas se arrefecerão só por haver no cenário um decreto de emergência, como agora. Da mesma forma, lamentavelmente, as atitudes de burla, arraigadas como são, podem se manter ativas. Mas esta polarização não ajuda em nada na solução do grande problema atual, que é o de salvar vidas .

É preciso, sim, buscar a eficiência, a transparência e a legalidade. Mas dentro de um cenário de tremenda corrupção, como acontece no Brasil, deve-se evitar, ao mesmo tempo, correr o risco de uma generalização indevida. Adverte Dantas: “… a hipertrofia e o voluntarismo devem ser repelidos nos órgãos de controle, pois não possuem legitimação democrática para formular políticas públicas”. E ele lembra também: “se uma política pública que consome dezenas ou centenas de bilhões de reais do orçamento não resulta em benefícios para a população, [isso] é tão condenável quanto uma licitação fraudada ou um contrato superfaturado”.

Nestes tempos pandêmicos, com tantas alterações na vida das pessoas e nos próprios processos sociais, entre eles o de cumprimento das leis, esta infantilização da gestão pública, pode ser uma nova patologia instalado no cenário, fazendo com que a gestão pública, intimidada, acabe por evitar decisões inovadoras, por receio de terem seus atos questionados ou mesmo deixarem de tomar decisões emergenciais, acarretando mais dispersão de recursos do que a contenção dos desperdícios que procuravam evitar, para não falar das vidas perdidas. É preciso, portanto, pensar nas consequências sobre o processo decisório, em outras palavras, avaliar os riscos de interrupção de uma aquisição, reforma ou obra emergencial, ou da imposição de algum impedimento terminante, mesmo que uma determinada decisão de gestão não atenda estritamente aos requisitos normativos, mas que mesmo assim possa estar revestida da lógica da defesa da saúde pública.

Penso que tal questão não é a de colocar as leis em segundo plano, mas submeter sua aplicação a critérios de bom senso, este ingrediente de distribuição bastante desigual no nosso país. Que se puna aqueles que fizerem a coisa errada, mas que também não se prive a população da boa ação do Estado, do qual se espera muito em dias com os atuais. Já nos basta o choque de cabeças que está ocorrendo hoje no Governo Federal, com o presidente promovendo crises sucessivas, não sua solução baseada nas Leis e na Ciência, sem esquecer do velho e útil Bom Senso.

***

Para conhecer a opinião de Bruno Dantas: https://oglobo.globo.com/opiniao/o-risco-de-infantilizar-gestao-publica-22258401

Uma resposta para “”

  1. Flávio, é sem muito bom ler o que você escrevinha. O seu texto de hoje é fartamente recheado de realidade e bom senso,dois ingredientes que estão rareando já há bastante tempo. Abraço.

    Curtir

Deixe um comentário