De repente, à maneira brasileira de nos acharmos todos grandes técnicos em futebol, estamos transferindo nossa sabedoria para a epidemiologia e a infectologia, de tal forma que expressões como “curva epidemiológica”, “achatamento da curva”, “razão de transmissibilidade”, “fator R”, “letalidade x mortalidade”, “efeito manada”, “lock-down”, além de outras, se incorporaram ao vocabulário comum, perpassando até as conversas de botequim (que, aliás, lamentavelmente, vão ficando mais frequentes nos últimos dias). Bom por um lado, sem dúvida, por demonstrar a preocupação dos cidadãos, até então jejunos em tais assuntos, face à presente pandemia (aliás, outra palavra recém incorporada ao linguajar cotidiano). Mas por outro, tem gente utilizando tais conceitos exatamente para justificar algo pelo seu avesso, por exemplo, quando os seguidores daquele líder de uma quarta parte da população, repetem o que tal guru lhes inculca, ou seja, que as medidas de contenção tomadas até agora não teriam servido de nada. Assim, no Brasil atual, como naquele funesto e famoso “1984” orweliano, a mentira se torna verdade e a burrice vira inteligência. Mas vamos ao que interessa: como está de fato a situação da Covid-19 aqui em nossa cidade?
Dados recentes, de 4 de maio, da imprensa mostram (ver link) que o Hospital Regional da Asa Norte (Hran), referência no tratamento da Covid-19 aqui no DF, tem todas as suas dez UTI ocupadas, o que represente 5% dos leitos reservados na cidade, entre os 172 leitos reservados para pacientes com a doença. Destes, uma terça parte já estavam ocupados no início de maio, com um total de 108 pacientes hospitalizados, ou seja, 6,3% do total de casos, havendo 33 óbitos por Covid-19. A SES-DF registra, ainda, mais 123 leitos de UTI disponíveis nos demais hospitais públicos e privados conveniados: Hospital Universitário de Brasília (HUB); Hospital Regional de Santa Maria (HRSM); Hospital de Base; Hospital da Criança de Brasília e Unidade de Pronto Atendimento do Núcleo Bandeirante. O Hospital de Santa Maria oferece 40 leitos deste tipo, sendo que destes, 11 já estavam estão ocupados com casos de Covid-19. Informa-se, ainda, com escassez de detalhes, que o Hospital de Base tem 15 leitos reservados para tanto, estando todos disponíveis nesta primeira semana de maio de 2020. Sabe-se que mais de 90% dos pacientes portadores da doença que porventura necessitem de UTI, caso não tenham acesso a isso, têm sua mortalidade estimada em catastróficos 90% ou mais.
Atualizando estas informações, neste dia 6 de maio de 2020 o que foi possível apurar, em relação à situação do DF, foi o seguinte:
- Mais de 2 mil casos confirmados de infecções pelo Covid-19
- Nas últimas 24 horas confirmados 241 novos casos
- Total de 2.078 pessoas infectadas pelo vírus
- Mortes registradas: 34
- 60 pessoas internadas em UTI; 75 em leitos comuns de enfermaria
- Aumento de 13,1% no número de pessoas diagnosticadas nas últimas 24 horas
- Crescimento de 7,14% de pacientes com necessidade de UTI
- Sub notificação: possivelmente alta, mas sem registro preciso
No plano nacional, tudo indica que neste final de semana entremos nos quatro dígitos para o número absoluto de mortos, com mais de 140 mil infectados. Cinquenta anos depois do tricampeonato mundial, voltamos a mostrar ao mundo o quanto somos “prá frente”…
Um especialista ouvido pela imprensa, não epidemiologista, por sinal, mas coordenador de Terapia Intensiva em uma instituição privada, afirmou que a situação do Hran poderia representar um “sinal amarelo”, pois a curva de transmissão do coronavírus na capital ainda é crescente, ainda longe, portanto, do pico de utilização dos leitos disponibilizados exclusivamente para a presente situação. Segundo ele, é preciso aumentar significativamente tal oferta. Elementar, meu caro…
Na entrevista de Eduardo Hage, desta mesma data, já comentada aqui (link ao final), ele demonstra certo otimismo com a oferta de leitos de UTI e leitos comuns no DF, mas alerta que isso dependeria da manutenção do isolamento em torno de 70%, quando ela não passa de 55% e há mesmo evidência de relaxamento progressivo na população. Assim, o “pico” da epidemia, seja pelo relaxamento da quarentena, mas também pelo relativo desconhecimento que se tem sobre o comportamento do agente infeccioso, permanece obscuro por enquanto. Há um território de sombras, portanto.
Valorizo também que diz um reconhecido especialista no assunto, que observa a situação não a partir de uma UTI, mas através do Sistema de Saúde como um todo. Trata-se de Gonzalo Vecina Neto, docente da Faculdade de Saúde Pública da USP e da FGV. Em entrevista concedida à FSP (ver link ao final) Gonçalo coloca questões importantes, particularmente quanto à questão da disponibilidade de leitos de UTI e das possibilidades de interação entre público e privado. Ele defende a ideia de uma fila única de leitos públicos e privados para UTI, mediante intervenção da gestão do SUS, o que evidentemente não agrada aos investidores privados. Aposta para as dificuldades estruturais e políticas de uma intervenção estatal mais forte na questão dos leitos, pelo modelo fragmentado de atenção à saúde existente no país. Lamenta o notório silêncio do governo federal face ao que realmente interessa, lembrando que nas crises o mais importante é ter liderança, o que não se tem no Brasil atual. Trabalhar com o que é frágil seria essencial, mas no Brasil são muito precárias as políticas adequadas para os mais velhos, para os portadores de deficiência, para os pobres, os negros, os índios… Diz ele: “a sociedade trata os frágeis esperando que eles se escafedam”. O isolamento social deve ser enfatizado, não havendo motivos para abandoná-lo atabalhoadamente. Nas periferias o “achatamento” da curva não foi relevante e assim ocorrerá um desastre se não se testar e não se isolar essas pessoas. Tal isolamento, aliás, está perdendo força, por uma verdadeira derrota no campo da comunicação, tendo como pano de fundo o negacionismo de alguns políticos e gestores, particularmente no plano federal. A testagem ampla é essencial, mas deve estar associada à capacidade de processamento, o que ainda não se tem no volume necessário no país.
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Comentários: para início de conversa, se Ibaneis teve um gesto ousado em desencadear o isolamento antes de outros gestores no país, por outro lado parece ter sido também o primeiro a recuar, quem sabe por depender de favores que seu vizinho na parte mais baixa do Eixo Monumental pudesse lhe proporcionar – ou por sintonia ideológica mesmo. Embora o Sub Secretário da SES-DF, Eduardo Hage, tenha de certa forma nos tranquilizado, na questão da disponibilidade de leitos, a dinâmica acelerada da pandemia, não fugindo a tal regra aqui no DF, exige cautela e mais do que isso, prontidão para a ação. E aqui em nossa cidade, sem dúvida, temos pelos menos três pontos frágeis: (1) o possível esgotamento da capacidade de UTI no sistema público, que exigirá forçosamente medidas intervencionistas estatais, ao arrepio dos interesses privados; (2) a tibieza da ação de testagem, da qual não se tem ainda uma programação concreta e muito mesmo se haverá estrutura e insumos em quantidade suficiente, ainda mais diante da “miraculosa” solução de se iniciar tal processo na modalidade “drive-thru” (que seria adequada apenas para acesso a fast-food…); (3) as notórias carências de recursos humanos e coordenação em rede, das quais padece o sistema de saúde do DF e já insistentemente apontadas aqui neste blog (ver link).
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Para meditar: https://wordpress.com/post/saudenodfblog.wordpress.com/1238
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Saiba mais:
– Situação atual da pandemia no DF:
- https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/05/06/interna_cidadesdf,852077/df-tem-241-casos-em-24-horas-e-ultrapassa-2-mil-infectados-pela-covid.shtml
- https://covid.saude.gov.br/
– A entrevista da Gonçalo:
– A situação dos leitos no DF:
- https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/05/04/coronavirus-hran-tem-100percent-dos-leitos-de-uti-ocupados-sinal-amarelo-diz-especialista.ghtml
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/04/27/como-deve-ser/
– Possíveis soluções para o sistema de saúde no DF:

