Alerta que a realidade atual na pandemia de Covid-19 nos traz, do ponto de vista ético ou político, seria o de aceitar que leitos de UTI permaneçam desocupados na rede privada, enquanto pacientes morrem em casa por absoluta falta de acesso a eles nos hospitais públicos, como já se vê em algumas cidades. Diz a Constituição que a assistência à saúde é livre à inciativa privada; ao mesmo tempo ditam as leis que a relação entre o Poder Público e os entes privados devam se dar por contratos, que nos termos formais e legais implica em “ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas”. Está implícito também que nada disso se dará sem a ocorrência de reposições financeiras, a serem transferidas a quem presta o serviço em foco. Nos termos legais brasileiros não existe, portanto, a “requisição” pura e simples de leitos, devendo sempre correr ressarcimento, sem impedimento de que haja relativa subordinação do setor privado da saúde às políticas públicas, com respaldo no artigo 5º da Constituição Federal e em documentos legais relativos a calamidades. A formação de uma “fila única”, portanto, para os leitos de UTI e mesmo outros, públicos ou privados, representa um imperativo ético do qual não se pode fugir, principalmente em um momento como este, com milhares de mortos se acumulando a cada dia. Além disso, a preservação da vida é cabalmente de responsabilidade pública, particularmente diante do potencial de omissões e oportunismos discriminatórios típicos dos negócios puramente privados.
Dados recentes mostram que o Brasil dispõe de 2,01 leitos por 1.000 habitantes, o que representa uma taxa inferior àquela de países como a Itália (3,18), a Espanha (2,97) e a Inglaterra (2,81), sendo bastante desigual entre as diversas regiões e unidades da federação. Apenas uma parte de tal capacidade hospitalar encontra-se disponível para atendimento a toda a população, sendo 31% dos leitos vinculados apenas aos clientes de planos de saúde e particulares de modo geral. Mesmo na rede pública do SUS, 21,5% dos leitos são de natureza privada e 64% filantrópicos, ou seja, fora do controle estatal direto. Em termos de leitos públicos, em dois terços das regiões de saúde do país o número de leitos de UTI por 100 mil habitantes é inferior ao mínimo necessário, mesmo para um ano típico, sem considerar as necessidades trazidas ao cenário pelo Covid-19. Em se tratando da oferta de leitos de UTI e respiradores disponíveis, verifica-se que a disponibilidade no SUS é cerca de 50% da oferta total, com enorme heterogeneidade regional na distribuição de tais recursos e que mesmo juntando SUS e serviços privados, mais de metade das regiões de saúde dispõem leitos insuficientes. Verifica-se, ainda, que das regiões de saúde com número de leitos de UTI pelo SUS abaixo do mínimo, pelo menos a metade não possui leito algum, o que significa que parcela apreciável da população que depende exclusivamente do SUS conta com zero leito de UTI na região em que reside. Tal carência absoluta se concentra nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Uma maior cooperação entre o Poder Público e a iniciativa privada tem sido advogada como um caminho para se contornar este grave problema que aflige o país. Segmentos mais lúcidos e comprometidos com a saúde pública no Brasil, defendem que se implemente no país uma estratégia de “fila única” para internação e UTI, com foco nos casos graves de Covid-19, independentemente de os pacientes serem usuários, ou não, da rede dos planos privados. Isso, evidentemente não é aceito pelas empresas do setor, que defendem que seus serviços sejam oferecidos apena com base no mercado, ou seja, para quem contribua financeiramente de forma direta com o sistema. Propõe-se, assim, a criação de um sistema nacional de vagas, nos moldes do atual e bem-sucedido Sistema Nacional de Transplantes, sob regulação do Ministério da Saúde, dentro de um modelo já testado em outros países.
É sobre o que acontece nestes “outros países” é que nos deteremos agora. Iniciativas de inclusão de leitos e outros serviços privados na estrutura pública, dentro do cenário da atual pandemia de Covid19, ou mesmo independente dele, são práticas habituais em países como Espanha, Irlanda, Chile, Austrália, Itália, México e outros.
As palavras de ordem que determinam tais intervenções públicas são bastante uniformes: planejamento, critérios, ressarcimento, negociação, cooperação, relevância pública da saúde, foco na realidade local e nas necessidades das pessoas.
É preciso lembrar que em cenários como o atual, particularmente em países com sistemas de saúde fragmentados e permeados pelo interesse privado, com gestão pública frágil ou ineficiente, medidas desta natureza são sujeitas a erros e omissões, com alto custo em vidas e recursos materiais. É bem o caso do Brasil, já se vê.
Esta forma emergencial de contratação de leitos se opõe à opção de construção de “hospitais de campanha”, que vem se tornado popular (entre os políticos, pelo menos…) no Brasil, mas que carrega o ônus de se ter estruturas mais duradouras do que o fenômeno que visam atacar. Com efeito, tal contratação, apesar de tudo, é mais barata e eficaz, sendo inclusive mais imediata em sua execução.
Há muito o que aprender com tais experiências externas, sem dúvida. Um primeiro aspecto é o de que a “requisição” de leitos e outras estruturas, pura e simples, tal como se vê em tempos guerra, não é praticada, sendo substituída por mecanismos de negociação entre Estado e particulares, dentro de regras de mercado, mas sem perder de vista o que a Constituição brasileira chama de ”Relevância Pública”, ou seja, as ações e serviços de saúde a que cabe ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, mesmo se a execução é feita diretamente ou através de terceiros, seja de direito público ou privado.
A questão de remunerar, ou não, tais serviços, não constitui objeto de pendências entre as partes, cabendo considerações mais quanto à forma de fazê-lo. Várias modalidades são experimentadas, cabendo especial relevo à chamada DRG, que já é amplamente utilizada no Brasil desde os tempos do Inamps e a partir da qual foi construído o sistema AIH. Trata-se da classificação de pacientes em grupos homogêneos, de acordo com a complexidade, permitindo, dessa forma, comparar e prever desfechos assistenciais e consumo de recursos.
As várias soluções surgidas nos países que fizeram a opção de contratação negociada de serviços privados, sendo a Espanha uma referência em termos de quantidade, apontam para a necessidade de ajustes em função da estrutura já disponível, com base regionalizada, o foco na epidemiologia da Covid-19 em tempo real, a arregimentação de vontades não baseada apenas em contratos formais, mas também como instrumento de cooperação cívica entre o público e o privado.
Além dessas medidas, que são bastante óbvias, é preciso bastante atenção no planejamento, monitoramento e análise do processo de contratação, o que, naturalmente envolve a presença de sistemas de informação robustos e capazes de oferecer subsídios em tempo efetivamente real. Critérios claros, explicitados em protocolos construídos de forma participativa, a respeito de quem vai para a UTI e quem não vai também são essenciais, dentro de um cenário que pode ocasionalmente colocar os serviços de saúde diante de verdadeiras “escolhas de Sophia”. Transparência e justiça nos processos de gestão e remuneração também constituem obviamente fatores essenciais, incluindo=se aí não só os profissionais de saúde em suas diversas categorias, como os gestores e organismos de participação social dos diversos níveis de governo, além das representações dos setores público e privado. A questão do tempo de ação também tem importância fundamental, não só pela possibilidade de, em tempo útil, salvar – ou não salvar – vidas, como também pela adequada gestão de tal fator na manutenção do processo de contratação, o qual, por definição, deve ser temporária.
Liderança também é, obviamente, um fator fundamental. No caso brasileiro, dada a diretriz constitucional de “comando único em cada esfera de governo”, isso longe de representar um distanciamento entre os níveis federativo, deve implicar em ação coordenada e mediante uma liderança nacional – coisa que, em absoluto, é descuidada na atual crise política que antecedeu, acompanha e certamente se sucederá à presente crise sanitária do país.
Não custa lembrar que nos Estados Unidos, “modelo” que as nossas autoridades procuram avidamente seguir, a questão possui menos relevância política, embora fortemente humanitária, sendo as duas realidades incomparáveis. pois lá a presença do setor público é frágil, sendo o cenário comandado radicalmente pelo setor privado. Aos mais pobres, mais velhos e marginalizados em geral, cabe torcer pela providência divina, pois não haverá, nos EUA, Poder Público a lhes socorrer, a não ser de forma pontual.
Portanto, no Brasil, defendo a “fila única” para leitos de UTI e outros equipamentos privados, sim. Mas antes é preciso aprender com experiências internacionais realmente consistentes.
****
Saiba mais:

