Covid 19 no DF: nunca se viu algo assim. Parecia que tudo ia bem, mas de repente, as medidas de proteção são relaxadas antes da hora; os testes diagnósticos foram adquiridos e usados de maneira equivocada; as mortes se aceleraram; os casos novos galoparam; os leitos de UTI já não dão para o gasto; as informações dentro da própria máquina de governo enlouqueceram. E o Buriti se espelha no Alvorada: um secretário é trocado em plena crise o governador desfila sem máscara (ou quem sabe, lhe caiu a máscara?). Tudo isso lembra aquelas bonecas russas em série, as matriochkas, que se encaixam uma dentro da outra e vão revelando aquele “museu de grandes novidades”, de que falava Cazuza. No caso, aqui no DF, novidades de má catadura. As bonecas-mães (matriochka = “mãezinha”), atendem pelos nomes de Jair Messias e Ibaneis Rocha, não nos esqueçamos. Foram feitas, ao que parece, uma sob medida para a outra. Aliás, o nosso governador lembra aquele nosso colega de escola que acertava as perguntas no professor no início, mas logo descambava para a mais completa ignorância, afinal reveladora de quem realmente ele era. Personagem de programa humorístico, talvez, mas no caso, totalmente sem graça. Mas vamos ao que interessa: a bola da vez são os leitos de UTI…
A Central de Regulação da SES-DF informou, no meio da semana que passou, que a ocupação dos leitos de UTI para pacientes com a Covid-19, na rede pública, chegou a 100%, tendo sido já formada uma fila de pelo menos 15 pessoas aguardando vaga. Poucas horas depois havia três leitos disponíveis, mas já 26 pessoas na fila. É grave a situação, pelo visto, mas talvez mais grave ainda seja a discrepância existente entre as informações da regulação e as da SES – e eu que pensava as duas faziam parte de uma estrutura só…
No meio da semana, enquanto uma registrava 63% de ocupação, a outra dava 96%. A explicação, trazida pela imprensa, não pelo governo, que ficou mudo, estavam sendo incluídos pela SES também os leitos de UTI que estavam, na verdade, bloqueados por falta de pessoal e de equipamentos complementares. Assim, enquanto a Central de Regulação registrava 295 leitos de adultos ocupados, 150 bloqueados e apenas três disponíveis, a SES-DF falava em 317 leitos ocupados (sendo 309 para adultos) e nada menos do que 186 disponíveis (159 para adultos).
Em entrevista à TV, o diretor de regulação da SES-DF, Petrus Sanchez, confirmou, candidamente, que os dados divulgados no portal do GDF nem sempre refletem a realidade, pois, segundo ele, os hospitais têm uma “regulação interna”, que nem sempre é repassa informações ao controle central. Durma-se com um barulho desses.
Mas em matéria de atitudes “cândidas” (ou “cômicas”, se quiserem), nada se compara à do governador Ibaneis, que baixou esta semana um decreto de calamidade pública, já esclarecendo, de saída, que a finalidade do mesmo era a de captar mais recursos federais. E de forma coerente, aliás, baixou portarias ao mesmo tempo, relaxando totalmente as medidas de quarentena na cidade.
E nós, cidadãos? Nem as Matriochkas, nem a própria Mãe de Deus, poderão nos salvar…
Mais informações em:
***
E ainda dentro do assunto leitos de UTI, a realidade atual na pandemia de Covid-19 nos traz, do ponto de vista ético ou político, seria o de aceitar que leitos de UTI permaneçam desocupados na rede privada, enquanto pacientes morrem em casa por absoluta falta de acesso a eles nos hospitais públicos, como já se vê em algumas cidades. Diz a Constituição que a assistência à saúde é livre à inciativa privada; ao mesmo tempo ditam as leis que a relação entre o Poder Público e os entes privados devam se dar por contratos, que nos termos formais e legais implica em “ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas”. Está implícito também que nada disso se dará sem a ocorrência de reposições financeiras, a serem transferidas a quem presta o serviço em foco. A possível formação de uma “fila única” para os leitos de UTI e mesmo outros, públicos ou privados, representa um imperativo ético do qual não se pode fugir, principalmente em um momento como este, com milhares de mortos se acumulando a cada dia. Além disso, a preservação da vida é cabalmente de responsabilidade pública, particularmente diante do potencial de omissões e oportunismos discriminatórios típicos dos negócios puramente privados.
Saiba mais:
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/05/20/fila-unica-para-uti-informacoes-para-reflexao/
- https://apsredes.org/debate-19-05-perspectivas-de-utilizacao-de-leitos-privados-na-saude-publica-possibilidades-na-resposta-a-covid-19/
***
Momento Cultural…
A Varíola no Sucruiú – Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas
<<Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo. Arruado que era até bem largo, mas mal se enxergavam aquelas casas. Ao demais rezando, ao real vendo – eu vim. Casas – coisa humana. Em frente delas todas, o que estavam era queimando pilhas de bosta seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça acinzentada e esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. Aí tossi, cuspi, no entrecho de minhas rezas. Voz nem choro não se ouviu, nem outro rumor nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas mortas, e até os cachorros, cada morador. Mas pessoas mor que houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça verdolenga se vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que branqueavam, tantas máscaras. Aos homens e mulheres, apartados tão estranhos, caladamente, seriam os que estavam jogando todo o tempo mais rodelas de bosta seca nas fogueiras – isso que deviam de ter por todo remédio. Nem davam fé de nossa vinda, de seus lugares não saíam, não saudavam. Do perigo mesmo que estava maldito na grande doença, eles sabiam ter quanta cláusula. Sofriam a esperança de não morrer. Soubesse eu onde era que estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos? Os mortos ficavam sendo os maus, que condenavam. A reza reganhei, com um fervor. Aquela travessia durou só um instantezinho enorme. Mesmo que os cavalos nossos indo iam devagar, que é como se vai, quando todos rezando sozinhos em cima deles, devagar duma procissão. Não se perturbou palavra. E foi que dali acabamos de surgir – da arrepoeira e fumaça de estrume, e o corusco de labareda alguma, e a mormaceira. Deus que tornasse a tomar conta deles, do Sucruiú, daquele transformado povo.>>
***

