Covid-19 no DF: cadeia de responsabilidades x responsáveis na cadeia

E segue a pandemia. A imprensa insiste em mostrar números absolutos de casos e mortes, como se fosse um placar esportivo, mas não custa nada insistir que só se pode comparar taxas que explicitem o denominador, ou seja, o número de habitantes dentro do qual se contam as pessoas adoecem ou morrem. Números absolutos não dizem muita coisa, embora frequentemente choquem. Os dados mais recentes mostram que na taxa de mortalidade no DF permanece em posição intermediária entre as capitais mais populosas do país, bem melhor do que Recife, Fortaleza, Belém e Manaus, por exemplo, mas muito pior do que Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e mesmo Goiânia. Na incidência de casos por 100 mil habitantes, a taxa do DF é superior à de todas as outras capitais analisadas: aqui 2286; em seguida vem Belém com 1538; São Paulo, 1324. Sem deixar de admitir a sub notificação, que só joga tais números para cima. Mais um dado a respeito da atual situação: um modelo estatístico desenvolvido por pesquisadores da USP (Vicente e Veiga – ver link abaixo), baseado na evolução dos casos em cada local, em períodos de 30 dias, mostra que a situação do DF ainda é de crescimento acelerado da pandemia. Deveríamos ter indicadores melhores, por certo, pois em comparação com o restante do país temos uma boa rede de serviços de saúde; uma renda per capita acima da média nacional; distâncias curtas; boas vias de acesso; escolaridade geral alta; altas taxas de profissionais de saúde por habitantes, em todas as categorias; inexistência de localidades inacessíveis, ribeirinhas ou no fundo de florestas, por exemplo. E ainda fomos os primeiros a baixar medidas de quarentena. Assim, surpreende totalmente que o GDF esteja relaxando as medidas de proteção. Ou melhor, oscilando nas determinações normativas, “dando uma no cravo outra na ferradura”. Mas a culpa de tal situação epidemiológica precária seria só do governo que temos?

“Culpa”, sem dúvida, é uma palavra perigosa, serve para muita coisa, inclusive para incriminar terceiros e transferir responsabilidades. Em um caso como o presente, com mortes acumuladas, que já chegam, no DF a mais de uma centena e meia só nesta última semana, o senso comum não titubeia: isso só pode ser culpa do governo! Mas pode não ser bem assim. O governo certamente tem responsabilidades, mas ele é apenas um elo numa corrente bem mais extensa.

É preciso refletir sobre variáveis que podem estar presentes , antes de se buscar, simplesmente, o(s) culpado(s) da vez. Algumas questões em jogo: liderança; comunicação; boa condução, qualidade das equipes técnicas; apoio e confiança na ciência; práticas sociais; adesão da população. Isso tudo nos leva a um conceito desenvolvido a seguir, traduzido pela seguinte questão: temos de fato um Bom Governo aqui?

Para isso, podemos recorrer a Tendler (1998 – ver citação), que traduz o tal Bom Governo como um conjunto de práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além de cada campo isolado de atuação governamental, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública. Forma-se, assim, um saudável processo de entrelaçamento e dinâmicas, de natureza bilateral, entre o governo local e a sociedade civil, gerando pressões para o incremento da prestação de contas feita pelo governo à sociedade, com mais responsabilidade e transparência do setor público, mediante a operação de um sistema de causalidades envolvendo governo e comunidade. Em suma, uma sociedade civil robusta representa sem dúvida um forte pré-requisito para o tal “Bom Governo”.

Podemos aproveitar para fazer uma análise das ações do governo local. Ele seria bom de fato? Na saúde e no restante das práticas políticas que exerce? No plano interno e nas relações com a sociedade? Na probidade e na competência técnica e administrativa? E fora do governo, ou seja, na sociedade, como andam as coisas? Veja o quadro abaixo.

QUESITO COMENTÁRIO
LIDERANÇA E CONDUÇÃO – Oscilações frequentes nas determinações de Governo, minando o processo de condução

– O Governo Federal que também tem sede aqui dá péssimos exemplos

– Governador do DF, na busca de apoio do Governo Federal, comete equívocos profundos

COMUNICAÇÃO – Variabilidade e conflito nas mensagens emitidas, que mais confundem do que esclarecem a população
EQUIPES TÉCNICAS – Alto grau de qualificação das equipes da SES-DF, embora nem sempre sejam auscultadas totalmente
APOIO DA CIÊNCIA – Aparentemente pouco requisitado, em termos de recurso a atores externos, das universidades, por exemplo

– Tendência à autossuficiência do Governo

PRÁTICAS SOCIAIS – Tendência à debilidade (clientelismo forte)

– Conselho de Saúde do DF não demonstra ser um ator forte no processo

– Câmara Legislativo com forte componente auto referenciado em suas ações

ADESÃO DA POPULAÇÃO – Baixa, pela soma dos fatores acima e principalmente pelo contraditório das mensagens, seja por parte do GDF, seja da Presidência da República

– Situação agravada pela cultura consumista, individualista, de não reconhecimento de direitos, autoritária, entre outros aspectos, por parte da população

BOM GOVERNO – Não há, com certeza, por faltar aqui aquele “conjunto de práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, tendo como substrato as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública”

Como se vê, aqui no DF não dá para colocar a culpa só no governo ou em qualquer outra instância, isoladamente. A cultura da população também contribui para os indicadores negativos relativos ao Covid que temos hoje no DF. O Legislativo tende a olhar para o próprio umbigo e procura a luz de holofotes. O Ministério Público não faz diferente e ainda encara a situação pelo lado punitivo; tudo o que quer é mandar alguém para a cadeia.  Isso implica que o atual fracasso (não há outra palavra…) no DF deveria ser analisado com foco em uma cadeia de responsabilidades, na qual os elos são mais numerosos do que o senso comum costuma enxergar. Esta cadeia, todavia, não se resolve com o punitivismo exercitado não só pelo Judiciário e Ministério Público, mas também pelo senso comum dos críticos populares e da mídia, traduzido pela expressão emblemática: tem que botar os responsáveis na cadeia.

O buraco é realmente mais em baixo, ou seja, alguma coisa como aquilo disposto por Tendler, repetindo: um saudável processo de entrelaçamento e dinâmicas, de natureza bilateral, entre o governo local e a sociedade civil, gerando pressões para o incremento da prestação de contas feita pelo governo à sociedade, com mais responsabilidade e transparência do setor público, mediante a operação de um sistema causal bi ou tri direcional envolvendo governo e comunidade. Em suma, uma sociedade civil robusta representa sem dúvida um forte pré-requisito para o tal “Bom Governo”.

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Referências:

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Para não perder o momento, aqui vão dois comentários sobre acontecimentos da semana:

  1. Pazuello vai ou não vai para reserva? Tanto faz, a lógica simplória e ineficaz dos militares continuará em vigor. O problema é dos fardados apenas; para a Saúde realmente não muda nada. Aliás, nestes últimos sessenta dias, talvez mais, se considerarmos o Governo Federal como um todo, a frase de Clemenceau nunca se revelou tão precisa, ao mostrar que não é só a guerra que deve ser vedada a tais decisores, mas a saúde também.
  2. Gilmar falou torto por linhas certas. Pode ser que tecnicamente não se tenha, ainda, um genocídio no Brasil. Mas as consequências são as mesmas, haja vista a perversidade, a irresponsabilidade e a incompetência deste governo, agora estruturado como um vasto quartel em operação de guerra, na qual se inclui deslavada propaganda, inclusive de medicamentos. O fenômeno pode até não ser doloso (embora haja controvérsias…), mas com certeza é culposo – eles sabem o que estão fazendo! Ou seja, trata-se de um caso para os Tribunais, inclusive internacionais.

 

 

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