De Porteiros e Navegadores

No preâmbulo do livro seminal de Barbara Starsfield sobre Atenção Primária à Saúde há uma frase de paciente que é altamente reveladora de um dos grandes dilemas dos sistemas de saúde atuais, ou seja, em tradução aproximada: eu já passei por muitos médicos, mas queria ter apenas um, que juntasse tudo. Acho que todos nós somos testemunhas disso, se não em termos pessoais, com certeza em relação a nossas famílias, nossa rede de conhecidos ou nos serviços de saúde com os quais interagimos profissionalmente. Com efeito, um dos resultados mais nocivos da fragmentação que caracteriza os serviços de saúde atuais é exatamente a contradição entre a escassez, por um lado, e a multiplicidade, por outro, dos meios utilizados na assistência, não levando à produção satisfatória de indicadores de saúde, ao conforto dos pacientes, à facilitação da vida dos que prestam serviços, além de acarretar custos enormes aos processos relativos à assistência. É um antissistema de antisserviços, sem dúvida, que na verdade não interessa a ninguém. Mas será que existem soluções? Examinemos uma possibilidade. É algo que interessa diretamente a prestação pública de serviços de saúde, inclusive aqui na nossa cidade.

Algumas iniciativas atuais de resolver esta questão geralmente são geradas nos serviços privados de pré-pagamento, com foco em hospitais, nos quais se criou uma figura denominada concierge, ou seja, pessoa responsável por garantir um ordenamento na trajetória dos pacientes dentro dos serviços. Tal palavra tem origem francesa, podendo significar também “porteiro” ou “serviçal” e é de uso muito frequente na hotelaria, consistindo na função de um profissional responsável por atender as necessidades básicas e especiais dos hóspedes nos hotéis. Mas na Saúde a expressão tem sido usada de maneira limitada, a meu ver, abrangendo basicamente profissionais médicos e o ambiente hospitalar, além do uso intensivo e obrigatório de tecnologias de comunicação a distância.

Para esclarecer melhor o termo vamos a algumas definições. Uma empresa de planos privados de saúde, (Totall Saúde), por exemplo, fala de um médico concierge especializado em saúde e aponta que tal novidade representa uma tendência internacional, na qual profissionais médicos (e apenas eles, ao que parece) atendem a diversas demandas, a fim de proporcionar uma experiência bem-sucedida aos clientes, qualidade, otimização de tempo, serviços diferenciados e precisos, em favor da qualidade de vida e bem-estar dos pacientes. Entre seus valores estão: zelo pelo paciente, agilidade, hospitalidade e personalização.

Como o assunto tem a ver diretamente com a Medicina de Família e Comunidade, procurei informações sobre tal tema na página na página da entidade representativa de tal assunto no Brasil, a SBMFC, mas ali, infelizmente, não há menção ao termo concierge nem a nenhum assemelhado.

Em um trabalho escrito por enfermeiros achei informações mais precisas: A equipe de enfermagem desempenha um papel fundamental na assistência hospitalar prestada à pessoa no momento de internação. A/O enfermeira/o organiza, coordena e administra as atividades relacionadas ao paciente, articulando e supervisionando as ações executadas pela equipe de enfermagem. Entretanto, a/o enfermeira/o tem desempenhado funções não intrínsecas à enfermagem, culminando no descumprimento das suas atribuições. Essas atividades, não inerente à enfermagem, como resolução de problemas relacionados a setores como a hotelaria, higienização, nutrição, manutenção, dentre outros, são de grande importância para que a internação da pessoa seja bem sucedida. Para atender a essas demandas, surge o concierge no ambiente hospitalar, o qual é um profissional que fornece serviço individualizado, realiza visitas diárias aos pacientes, coordena e faz os devidos encaminhamentos aos pedidos dos clientes, relacionados aos diversos setores e áreas no hospital.

Um texto que tenho em maõs, que por ora mantenho apócrifo, por aguardar a definição exata de sua origem e autoria, me parece trazer informações também seguras. Diz o mesmo: Na área da Atenção Primária à Saúde (APS), é um profissional que disponibiliza atendimento personalizado às pessoas, visando garantir a continuidade do cuidado, conforme as necessidades de cada pessoa e ajudar para que essas pessoas se sintam acolhidas e protegidas. O conceito é de um profissional que ajuda a resolver todas as demandas administrativas, necessárias para garantia da qualidade do cuidado. […] O concierge tira dúvidas, efetua agendamentos, monitora finalização de realização de exames e de outros encaminhamentos, agiliza solicitações e se antecipa às necessidades das pessoas, proporcionando máximo conforto e garantia do cuidado certo, no tempo certo e no lugar certo. […] O cuidado das pessoas com a sua saúde é favorecido sempre que as mesmas não precisam se ocupar com atividades administrativas, pois o tempo das mesmas será para planejar e executar seu autocuidado. Nesse modelo, o estresse das pessoas é diminuído e há mais oportunidades para a pessoa focar no que realmente só depende dela, apoiada pela equipe.

Como visto, dentro desta última acepção, o referido profissional assumiria também funções externas ao campo restrito da saúde, ao se ocupar também de certas “atividades administrativas”. Admitamos que isso possa ser necessário, mas talvez algumas demandas desse tipo poderiam ser atendidas mediante aconselhamento, não com execução direta

Antes de passar a considerações conceituais e operacionais mais detalhadas sobre as possíveis atribuições de tais profissionais, uma breve consideração semântica. O termo concierge, que não é originário da área da saúde, traduz funções subalternas, ainda que relevantes. Além disso, já foi apropriado pelas empresas privadas de saúde, como parte de seu “negócio” de obtenção de lucro, forjado como apanágio médico e com foco na assistência hospitalar. O papel que se pretende dar a ele aqui não é, absolutamente, de importância secundária e muito menos restrito a uma única profissão ou lócus de trabalho nos serviços de saúde. Por estes motivos proponho outra escolha e assim, creio que Navegador, seria um bom nome, dando relevo a um dos atributos mais importantes de tal tarefa, que é o de guiar os pacientes nos meandros dos serviços de saúde, ajudando-os a obter desfechos positivos em seus contatos com os mesmos. Um possível óbice seria o uso prévio de tal palavra no jargão da informática, como ferramenta de interação com os sistemas disponíveis em um computador ou na rede. Na navegação marítima existe o conceito de Prático, aquele profissional que conduz o navio em sua chegada aos portos, por águas desconhecidas pelos demais membros da tripulação – isso certamente poderia também representar uma aproximação com o presente tema. Se quisermos ser mais sofisticados, com menores chances de sucesso talvez, poderíamos utilizar a palavra Gradiva, empregada na psicanálise, a partir de textos originais de Sigmund Freud, como alguém capaz de conduzir o Outro a uma busca bem-sucedida. Mas isso já seria apenas elucubração…

Não há dúvida que este papel de organização, coordenação e administração das atividades relacionadas ao paciente, nas palavras textuais do documento de enfermeiros citado acima, está perfeitamente sintonizado com as disposições da Atenção Primaria à Saúde, segundo Barbara Starfield (2002), que define sua estrutura mediante quatro atributos essenciais: (a) acessibilidade e primeiro contato: capacidade do serviço de se organizar para facilitar o acesso das pessoas no atendimento de suas necessidades em; (b) longitudinalidade: disponibilidade de fonte continuada de atenção e sua utilização ao longo do tempo, mediante relação interpessoal e de confiança mútua entre usuários e profissionais; (c) integralidade: capacidade da APS em reconhecer a variedade completa de necessidades relacionadas à saúde das pessoas sob sua responsabilidade, com oferta dos recursos necessários, o que inclui também encaminhamentos para serviços da rede referenciada; (d) coordenação do cuidado: reconhecimento de problemas abordados em outros serviços e a integração desse cuidado no cuidado global do paciente, ou seja, garantia de continuidade, seja pelo mesmo profissional, ou por informações em prontuários médicos, ou ambos, o que exige articulação entre todos os serviços que compõem a rede referenciada. Os itens (b) e (d) dessa relação, ou seja, longitudinalidade e coordenação do cuidado se ajustam perfeitamente ao conceito que desenvolvo aqui neste momento.

Um modelo assistencial baseado na estratégia referida acima, o seja, a Atenção Primária à Saúde, deve ter como estratégia de organização a chamada gestão da saúde da população, o que implica em vinculação de uma população, com as respectivas famílias, com tal modalidade de atenção, com alguns macroprocessos associados: (a) o cadastramento dos indivíduos ou das respectivas famílias; (a) a identificação do perfil da carteira de serviços a serem oferecidos; (c) a classificação de riscos individuais; (d) a vinculação das pessoas a equipes de APS; (e) a identificação de grupos com riscos individuais e a sua estratificação, por estratos de risco, nas condições crônicas. Mais uma vez, sintonia adequada com o conceito de navegação nos serviços de saúde.

Em tal gestão da saúde populacional há que se destacar que são previstos uma série de procedimentos, que vão desde um nível mais simples, com foco em (a) gestão de saúde, com utilização de protocolos voltados para pessoas ainda saudáveis, com intervenções principais focadas em mudanças no estilo de vida das mesmas; (b) em um nível seguinte de complexidade, a gestão passa a ser de doenças e agravos, e o foco das intervenções ainda no estilo de vida; (c) no nível mais complexo de condições de saúde, aplica-se a gestão de caso, sempre associada às mudanças no estilo de vida. Isso, naturalmente, tem muito a ver com a função de navegação, à qual estamos debatendo aqui.

No texto apócrifo referido acima são dispostas as diversas atribuições de tal profissional, no âmbito da APS, sendo as seguintes: (a) estar ciente e entender as necessidades e demandas das pessoas, junto com a equipe de saúde; (b) auxiliar as pessoas no engajamento do cuidado com sua saúde e, se for principal cuidador de algum familiar, no cuidado destes; (c) facilitar o acesso das pessoas nos recursos de saúde que as mesmas tem indicação de uso, tanto no agendamento dos atendimentos quanto nas liberações de autorizações; (d) identificar os obstáculos para o melhor cuidado, sejam eles na rede de serviços, nos serviços de APS ou em domicílio; (e) garantir prontidão de retorno para a equipe sempre que algum ponto de atendimento não for contemplado, no prazo e lugar definido; (f) informar tempestivamente a equipe sempre que tiver conhecimento de uso de Pronto Socorro ou escape do plano terapêutico individual; (g) registrar adequadamente nos sistemas informatizados ou outro; (h) facilitar comunicação adequada entre todos os envolvidos no cuidado das pessoas; (i) operacionalizar o adequado monitoramento de todas os agendamentos e necessidades trazidas pelas pessoas.

O que há de se destacar, ainda, é que a responsabilidade por tais ações de Navegação, deveria ser, se não exclusiva, pelo menos lógica, precípua e naturalmente, do pessoal da Enfermagem. Tendo isso como ponto de partida, é possível arrolar algumas das diretrizes que devem orientar características de tal prática, a seguir:

  1. Navegação de pacientes nos serviços de saúde não precisa se constituir com um setor fisicamente distinto dentro do serviço, constituindo mais um atributo do que um setor físico, como acontece, aliás, com a prática de acolhimento. Isso não impede, entretanto, que o atributo da Navegação tenha uma pessoa, de preferência enfermeira(o), direta e formalmente responsável por ela.
  2. A Navegação de pacientes não deve e não pode ter seu âmbito restrito aos hospitais ou serviços especializados, mas se estender também à APS, onde, aliás, ela talvez tenha um papel ainda mais importante do que naqueles.
  3. Tentando descrever em uma só palavra tais tarefas, a expressão integração, seja entre meios e fins, processos e resultados, talvez seja a mais exata, além de abrangente. Ela aqui se opõe à fragmentação, que é habitual nos serviços de saúde, aspecto que, como e sabe, é responsável não só pelos custos exagerados que as práticas de saúde muitas vezes apresentam, como também pelos resultados decepcionantes ou mesmo prejudiciais aos pacientes.
  4. Não é demais lembrar que tanto as tarefas de navegação como o papel do seu agente Navegador devem ser conhecidos, discutidos e esclarecidos, para serem compreendidos e acatados pelo conjunto de atores no âmbito dos serviços de saúde.
  5. A expressão “manter os pacientes no radar do serviço”, utilizada por Bengoa, é bastante expressiva para designar uma das tarefas fundamentais que compete aos bons Navegadores de saúde. Associados a tal diretriz, três componentes devem fazer parte das ações de navegação: vinculação, atendimento, encaminhamento.
  6. Mecanismos de gestão clínica e seus respectivos agentes devem estar associados a tal prática, podendo ser citadas o trabalho em equipe, a formação de redes, o uso de guias e protocolos, a classificação de risco, os processos de gestão da clínica e de casos, a geração de indicadores de satisfação e resultados, o uso da noção de valor, entre outros.
  7. A boa Navegação depende, essencialmente, de bons sistemas de informação, que devem passar a incluir entre seus elementos constituintes alguns domínios de interesse, por exemplo, dados sobre interações dos pacientes em vários pontos da linha de serviços, tipo de procedimentos recomendados e demandados, evidências de resultados, perda ou manutenção do contato com os serviços.
  8. Dentro disso, a definição e o monitoramento de indicadores é fundamental, podendo-se incluir entre eles aqueles relativos a risco, demanda, seguimento, resultados. As ações de demanda e seguimento devem ser conjugadas e ter em foco pelos menos dois trajetos possíveis: a consulta médica, nas variedades primária ou especializada, e a participação em grupos de promoção da saúde de diversas naturezas.
  9. Embora as noções de “portaria” e “porteiro” (gate-keeper), associadas pela etimologia e pelo uso ao atributo ora discutido, apresentem também valor significativo na estrutura da APS, é preciso compreender a Navegação como conceito que vai além disso, um verdadeiro diferencial nos serviços, possibilitando de fato a organização, a coordenação e a administração das atividades relacionadas ao paciente, de forma integrativa e articulada entre os diversos pontos da linha de produção de cuidados, garantindo, ao fim e ao cabo, reais eficiência, humanização e economia nos serviços prestados.
  10. Por último, sem deixar de ser importante, cabe lembrar que os princípios gerais que se aplicam à noção de saúde baseada em valor (ver link) também são necessários e essenciais também aqui. Assim, devem ser lembrados: a valorização dos diversos sujeitos implicados no processo de produção de saúde, sejam eles pacientes, seus familiares, trabalhadores dos diversos níveis e profissões, além dos gestores da instituição; as diretrizes da transversalidade e transdisciplinaridade; o protagonismo de cada um dos sujeitos envolvidos; a não-separação entre as funções de atenção e gestão; a gestão descentralizada e participativa; os cuidados com os ambientes onde se vive e se cuida ou é cuidado; a utilização de contratos de gestão baseados em resultados e impactos positivos reais sobre a saúde; a ampliação do acesso; no caso dos hospitais, as práticas de visita aberta e de participação das famílias, além de foco no monitoramento e na avaliação.

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Leituras recomendadas:

OBS. Oportunamente, quando tiver acesso a tanto, inserirei aqui a referência do trabalho apócrifo sobre Concierge em Saúde citado acima.

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