A gestão da saúde nas cidades na pós pandemia

A atual pandemia, sem dúvida a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, testou a resiliência e a capacidade do SUS, particularmente nos sistemas municipais, dando extrema visibilidade aos desafios da saúde pública no país. O SUS, apesar de desprestigiado, se saiu bem, diga-se de passagem. Mas as atuais e as novas autoridades recém eleitas nos municípios deverão enfrentar demandas crescentes da opinião pública sobre tal assunto. A situação atual aniquilou muitas das expectativas existentes anteriormente e colocou no cenário novas questões . O certo é que ela vai passar e é hora de perguntar o que virá depois . A este respeito, trago aqui um documento que julguei de grande valor, qual seja uma Agenda Saúde na Cidade, tendo como alvo os novos gestores da saúde municipal, com mandatos a partir de 2021, mas de interesse também de todos aqueles que contribuem para a formulação e a gestão de políticas municipais de saúde. É uma agenda de propostas factíveis e tecnicamente corretas para organizar a prestação de serviços de saúde a partir da Atenção Básica, particularmente no cenário pós Covid-19. Ela é válida para o DF também, pois na prática não somos mais do que uma grande cidade. E é bom lembrar que teremos eleições daqui a dois anos.

A Agenda é fruto de discussões organizadas por um conjunto de instituições (ver ao final), do qual o participa Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), organização sem fins lucrativos, independente e apartidária, que tem como objetivo contribuir para o aprimoramento das políticas públicas do setor de saúde no Brasil, de acordo com os seguintes princípios: … que toda a população brasileira deva ter acesso à saúde de qualidade e que o uso de recursos e a regulação do sistema de saúde sejam os mais efetivos possíveis. E que o acesso à saúde respeite o princípio da equidade, tendo o Estado Brasileiro um papel relevante, de natureza distributiva, neste processo.

Dos quadros de tal entidade fazem parte o economista  Arminio Fraga, fundador da mesma, além de Drauzio Varella, Guilherme Frering, João Biehl, Lígia Bahia, Márcia Castro, Paulo ChapChap e Paulo Hartung. A instituição é dirigida pelo cientista político Miguel Lago, apoiado pelos economistas Rudi Rocha  e Rodrigo Fiães. Gente de variada extração intelectual e ideológica, pelo visto.

O documento aqui apresentado, de natureza coletiva e suprapartidária é pautado nos desafios reais da saúde municipal, denominado de Agenda Saúde na Cidade, tem como foco a ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE, sendo resultado dos esforços de três organizações principais: Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), Impulso e Instituto Arapyaú. Para chegar às 10 propostas enunciadas, foram ouvidos especialistas, acadêmicos, gestores e profissionais da ponta, buscando a construção de um documento pautado nas dificuldades reais dos milhares de profissionais que trabalham na assistência direta ao cidadão.

Cada uma das propostas, enunciadas aqui somente em sua formulação geral, é desenvolvida em torno de quatro tópicos: 1. Ação; 2. Mecanismo e Produto; 3. Resultado; 4. Impacto. Para detalhes, não deixe de acessar o link a seguir.

Um quadro resumo das propostas é mostrado abaixo.

ITEMDIRETRIZJUSTIFICATIVA
1.TORNAR A ATENÇÃO BÁSICA MAIS RESOLUTIVAUma Atenção Básica resolutiva e que coordena o cuidado poupa recursos, garante o direito à saúde e reduz mortalidades evitáveis.
2.MELHORAR A REGULAÇÃO EM SAÚDE PARA ACABAR COM AS FILAS  Tão importante quanto oferecer o melhor tratamento é garantir seu início em tempo oportuno. Regular com agilidade salva vidas e poupa recursos municipais, possibilitando a diminuição de até 80% nos custos totais. Uma Regulação bem estruturada promove a redução de filas no SUS e otimiza todo o sistema.
3.AUMENTAR A COBERTURA DE ATENÇÃO BÁSICA  Aumentar a cobertura de Atenção Básica promove acesso à saúde, favorece a resolutividade do sistema e reduz mortalidades evitáveis
4.REALIZAR CONTRATAÇÕES DE INSUMOS E PRESTADORES ORIENTADAS A RESULTADOS EM SAÚDE  Uma gestão de contratos orientada a valor proporciona aumento da resolutividade da Atenção Básica, ganho de capacidade estatal e repercute na melhora da situação de saúde da população como um todo.
5.ORGANIZAR CARTEIRAS DE SERVIÇOS, MEDICAMENTOS E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE  Organizar carteiras de serviços, medicamentos e práticas dos profissionais de saúde ajuda a orientar a oferta e o desempenho de serviços e pode ser um instrumento eficiente de redução de desigualdades
6.TREINAR, CAPACITAR E MOTIVAR A FORÇA DE TRABALHO DA SAÚDE  Treinar, capacitar e motivar a força de trabalho impacta diretamente na produção e resolutividade da atenção básica, ampliando o acesso e melhorando a qualidade da saúde municipal.
7.CONSTRUIR ESTRATÉGIA DE MONITORAMENTO VIABILIZANDO RESPONSABILIZAÇÃO E APRENDIZAGEM A NÍVEL DE SISTEMAConstruir uma estratégia de monitoramento, viabilizando a responsabilização e a aprendizagem contínua, torna o sistema mais resolutivo e eleva a produtividade
8.CRIAR CAPACIDADE EPIDEMIOLÓGICA PARA O ENFRENTAMENTO DAS PRINCIPAIS CAUSAS DE MORBIDADEAo criar capacidade epidemiológica, o município consegue mapear necessidades e demandas de saúde de acordo com o perfil da população, garantindo mais efetividade e integralidade dos serviços e possibilitando a avaliação do impacto das políticas adotadas.
9.GARANTIR EQUIDADE NO ACESSO AO DIREITO À SAÚDE E COCRIAR O SISTEMA COM O USUÁRIOCocriar o sistema de saúde possibilita que a pressão e informação dos usuários gerem serviços mais efetivos e reduzam desigualdades no acesso à saúde
10.INSTITUIR POLÍTICA DE PROMOÇÃO DE SAÚDEUma política de Promoção da Saúde ajuda a manter a sustentabilidade de recursos do SUS e impacta positivamente a saúde da população

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Meus comentários (Flavio Goulart)

  1. São bastante apropriados os enfoques em: (1) gestão municipal da saúde, pela sua importância estratégica e marcante correspondência com os dispositivos legais do SUS e (2) atenção primária à saúde, pela sua importância estratégica, reconhecida internacionalmente, como elemento de organização e regulação dos sistemas de atenção à saúde.   
  2. É fato notável – e não deixa de ser alvissareiro – que entidades e indivíduos que até então estavam fora do mainstream da discussão das questões da saúde pública no Brasil, representativas de um arco de forças e pensamentos que ultrapassam a abordagem tradicional no país, dominada por um viés focalizado na prestação e gestão estatal de serviços de saúde. No caso presente, seus agentes principais, como o IEPS e o Instituto Arapyaú, têm como apoiadores e intelectuais pessoas originadas no setor empresarial e filantrópico, o que sem dúvida acrescenta diversidade e valor à presente discussão.
  3. A abordagem é passível de críticas pelo seu foco profundamente gerencialista, embora isso não seja algo que a desqualifique, desde que assim considerada e deixe aberto o espaço para considerações de índole mais política ou cultural.
  4. De toda forma, talvez falte ênfase e reforço político aos dispositivos estruturantes do SUS, tais como o direito á saúde, a relevância pública, a descentralização, o foco mais abrangente em políticas sociais de outras naturezas.
  5. Uma crítica mais “à esquerda” certamente atacaria também a pouca ênfase que o documento traz à participação social prevista na Constituição de 1988, que entre a militância do SUS costuma ser denominada (equivocadamente, a meu ver) como “controle social”, embora, no meu ponto de vista, isso não desqualifique o documento, considerando alguns equívocos e distorções que envolvem, na prática, o estatuto real de tal dispositivo constitucional, algumas vezes tornando-a pouco funcional. Trata-se, aqui, de uma questão de ressignificação de tal dispositivo, mais do que negá-lo como desnecessário ou supérfluo à ideia matriz do SUS.  
  6. Enfim, a frase “a pressão e informação dos usuários gerem serviços mais efetivos e reduzam desigualdades no acesso à saúde”, no meu entendimento, contém a essência do que deva ser a participação (e não o pretenso “controle”) social em saúde.
  7. Faltaria sem dúvida alguma menção aos possíveis mecanismos de associação ou intercâmbio municipal em saúde, o que representa uma área de sombra na estrutura do sistema de saúde no Brasil, particularmente nas áreas remotas e mesmo nas regiões metropolitanas e fronteiriças.

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Ver o texto completo no link abaixo:

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São as seguintes as organizações formuladoras e apoiadoras da presente Agenda:

  1. ASSOCIAÇÃO SAMARITANO
  2. IEPS
  3. IMPULSO
  4. INSTITUTO ARAPYAÚ
  5. VETOR BRASIL
  6. VITAL STRATEGIES

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Um registro atualizado (24/11/2020)

Partiu Jofran Frejat. Muito se engana quem apenas considerá-lo um político tributário do rorizismo; ele foi muito maior do que tal caudilho. Sua maior qualidade era a defesa intransigente do SUS – e da coisa pública de saúde em geral. Deu prosseguimento ao projeto pioneiro de saúde para o DF, da autoria de Bandeira de Melo ainda nos anos 50, ampliando enormemente a rede de serviços da cidade ao longo de suas três gestões na SES-DF. Tinha sólida formação técnica, tanto em medicina como em administração sanitária, com passagem pelo NHS da Inglaterra. Entre todas as suas obras deve ser destacada a criação do curso de Medicina da ESCS, que desbancou o monopólio histórico da UnB, trazendo arejamento e novas luzes para o ensino médico na cidade, confiando aos especialistas em tal área a formulação do projeto pedagógico, além de respeitar suas opiniões. Grande perda, sem dúvida!

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