Acabo de receber o livro comemorativo do cinquentenário da primeira turma de médicos que se formou na UnB. Material muito bem elaborado, virtual (como, aliás, tudo ou quase tudo hoje deveria ser), organizado pelas mãos competentes de um dos egressos de então, o Dr. Marcus Vinicius Ramos, que também é presidente da Academia de Medicina de Brasília. Não estudei com eles e até conheço algumas pessoas do grupo, mas minha formatura, pela UFMG apenas um ano depois, me autoriza a comentar este evento tão significativo, além de me congratular com estes coetâneos. Meio século de formação e prática médica em outros países, de primeiro mundo, já seria algo muito significativo, mas aqui no Brasil os acontecimentos correspondentes são verdadeiramente alucinantes! Vale a pena se deter sobre o tema, sem maior pretensão de esgotá-lo.
Em primeiro lugar, considerações geográficas. A totalidade dos egressos, naturalmente, vinha de fora do DF; um ou outro de Formosa, Luziânia e cidades vizinhas. Será que voltaram, depois de formados, para seus locais de origem? Muito provavelmente, não, pois o país, àquela ocasião, mostrava uma forte tendência de migração da população para os grandes centros. Assim, vir estudar na capital, saído de alguma cidade do interior, como se confirma para boa parte dos egressos, certamente acarretaria, e de forma majoritária, a fixação neste novo ambiente urbano – ou em outro de mesma característica. Nisso, sem dúvida, houve alguma transformação ao longo dessas cinco décadas, porque aquela tão badalada “interiorização da medicina”, que ainda era uma preocupação e uma palavra de ordem nos anos 70, bem ou mal aconteceu desde lá, até mesmo pelo massivo incremento da formação médica que ocorreu nas décadas posteriores. Criaram-se, inclusive, polos regionais médicos importantes no Brasil, distintos das capitais, como é o caso, por exemplo, de Anápolis, Ceres ou Paracatu, só para citar exemplos próximos à Capital Federal. Mas que não se esqueça que ainda existem cidades bem próximas aos grandes centros urbanos do país, daqui de Brasília, inclusive, que por razões materiais, políticas ou culturais, não dispõem sequer de um profissional de saúde entre seus habitantes.
O fato é que, em termos de mercado de trabalho, aqueles egressos de 1970 encontraram um vasto território totalmente livre e aberto para quem estivesse disposto a nele se aventurar. Com efeito, o Brasil contava, na época, com cerca de 58 mil médicos ativos; hoje são quase 500 mil. A população, que pouco passava dos 90 milhões (“em ação”, como dizia a marchinha festiva da Copa do Mundo, propagada pelo triunfalismo da ditadura militar), hoje ultrapassa os 207 milhões. Ou seja, enquanto a população do país dobrou, o número de médicos foi multiplicado por seis ou sete e isso fez com que a razão de médicos por mil habitantes passasse de algo em torno de 1,0 (1,15 é o dado para 1980) para um pouco mais de 2,0 atualmente, mas em crescimento progressivo. Só nas últimas duas décadas, o número anual de registros de novos médicos praticamente triplicou, passando de 8,5 mil para algo acima de 22,5 mil. Tais cifras, naturalmente, devem ter algum significado.
Quando ao número de escolas médicas, na época em que se formaram os felizardos aqui em foco, elas não passavam de 50 no Brasil, com um ritmo de crescimento bastante lento, boa parte delas situadas nas capitais e cidades de grande porte. Hoje são alguma coisa em torno de 300, pois as estatísticas divergem. Estão presentes não só nas capitais mas em muitas outras cidades menores. Só para uma comparação, nos EUA as faculdades de medicina são 184, na China 158 e na Índia 392. É bom lembrar que estes dois últimos países possuem população cinco a sete vezes maior do que a do Brasil, respectivamente. Na época que nossos colegas cinquentenários fizeram vestibular na UnB, o Brasil inteiro oferecia nada mais do que cinco mil vagas para os cursos de medicina; hoje elas são quase 30 mil no país.
E do ponto de vista das tecnologias disponíveis para a medicina, qual seria a realidade com que aqueles recém-formados de 1970 lidaram ao longo de suas carreiras? Só para se ter uma ideia, dou um depoimento pessoal. Tive três filhos em meados dos anos 70 e em nenhum deles a gravidez de minha mulher foi acompanhada por ultrassom, pois isso simplesmente não era uma tecnologia disponível no pais de então. Da mesma forma, coronariografias, cintilogramas de diversas naturezas, exames tomográficos, dosagens de substâncias diversas no sangue – para não falar da internet. Foi, portanto, nesta nossa geração de médicos, no auge de nossas carreiras, aliás, que tudo isso passou a fazer parte da rotina da assistência. Digamos que esta turma teve que se esforçar de verdade para aprender muita coisa nova, enquanto trabalhava duramente.
Hoje se sabe que dos médicos em atividade no País, 62,5% têm um ou mais títulos de especialista, enquanto 37,5% não têm título algum, podendo então serem considerados, embora de forma aproximada apenas, como generalistas. Certamente a realidade era, nos anos 70, bem diferente. Uma parte daqueles egressos da UnB deve ter se dedicado às grandes especialidades (Clínica Médica, Pediatria, Gineco-obstetrícia ou Cirurgia); outra parte, possivelmente menor, foi procurar diretamente uma formação mais profunda em alguma especialidade ou subespecialidade; outro tanto (quantos?) teve que cair na vida com a cara e a coragem, como generalistas de fato. Era assim que as coisas funcionavam. Muitos certamente fizeram mudanças substantivas em seu perfil profissional ao longo da vida, mas é provável que a maioria tenha tido diante de si duas opções principais: ir direto para a prática médica geral ou fazer residência em uma das quatro grandes áreas, para só então tomar outro rumo. A opção por uma subespecialidade de forte substrato tecnológico era algo então muito incipiente no Brasil. Os que aí chegaram provavelmente o fizeram após trajetórias de duração variável em ramos mais clássicos da profissão. Mais uma comprovação do que se trata de uma trajetória especial a dessas pessoas, cheia de aventuras e desafios.
Aliás, o próprio Luiz Carlos Lobo, coordenador das atividades didáticas à época, em seu texto no livro em pauta, chama atenção para o conflito entre a prática especializada e a generalista, já existente no âmbito do Hospital Universitário da UnB, por ocasião da formatura da turma de 1970.
Como teria sido a formação médica que esta turma de seventies receberam na UnB? Posso dizer que tiveram mais sorte do que eu, pois na minha UFMG o currículo era o mais conservador e careta possível: dois anos de ciclo básico e depois três de clínica, mas de forma totalmente desintegrada. Como disse o meu professor João Amílcar Salgado, o jovem procurava a Faculdade de Medicina para ter contato com gente, mas lhe ofereciam, sequencialmente, cadáveres, lâminas, secreções corporais, chapas, papeletas… Gente, de carne e osso mesmo, só a partir do terceiro ou quarto ano e assim mesmo intermediada por um professor…
A Medicina da UnB já começou bem diferente. Primeiro porque trouxe de fora pessoas jovens e conhecedoras do ensino médico mais atualizado, em termos mundiais, como foi o caso dos professores Luiz Carlos Lobo e José Roberto Ferreira. E a proposta, realmente, virava de ponta cabeça a maneira tradicional de ensinar medicina. Entre seus postulados estava a interdisciplinaridade; o ensino em blocos integrados entre o básico e o clínico; o contato precoce do aluno com os serviços de saúde; a responsabilidade social da assistência prestada pela Faculdade; a inclusão de conteúdos de ciências sociais, entre outros, de fazer inveja a uma universidade americana ou europeia de então. Tais coisas só vieram a contaminar a minha velha Faculdade da Avenida Alfredo Balena, em BH, cerca de 10 anos depois. Funcionou na UnB? Se tivesse prosseguido o projeto, com certeza teria funcionado. Mas entre outros prejuízos que a ditadura trouxe ao país está mais este: o de ter expulsado professores e aniquilado esperanças, já na década de 70, desestruturando o avanço que vinha sendo construído. Hoje pouco sobrou disso tudo e a vanguarda do ensino médico no DF já não reside na UnB, mas sim na Escola Superior de Ciências da Saúde, abrigada na SES-DF. Menos mal.
Mas na verdade, estes 50 anos foram marcados mesmo pelas enormes transformações sociais pelas quais passou o país como um todo, não apenas a formação ou a profissão médica. Com efeito, atravessamos toda uma ditadura, a Democracia foi reconstruída, para depois se ver profundamente ameaçada, como agora. O antigo país rural, extrativista gradualmente adentrou ao mundo urbano industrial. O velho sistema de saúde fragmentado e ineficaz pelo menos foi unificado, embora persistam muitas desigualdades. Mais e mais pessoas passaram a ter acesso à educação, inclusive superior, com a notável presença de pessoas menos favorecidas neste segmento. Novas formas de prestação de serviços médicos se instalaram no cenário, deixando para trás a tradicional polarização entre clínica particular e serviço público/INPS, com o advento da nova realidade dos planos de seguro em saúde. A tecnologia na área médica se tornou indispensável e mesmo dominante. As doenças que matavam antes, tais como as infecciosas e parasitárias e as deficiências nutricionais perderam a vez para as cardiovasculares, as violências e aquelas dependentes dos hábitos de vida.
Mas talvez as mudanças mais significativas foram de índole cultural. Os médicos começaram a serem vistos (e se verem, embora com restrições) como trabalhadores assalariados, percebendo-se na contingência de se organizar para lutar por melhores condições de trabalho e melhor prestação de serviços ao público, não apenas por atributos corporativos. Os pacientes começaram a perceber que a prestação de serviços de saúde não era apenas um favor do Estado ou algo a se comprar no Mercado, mas sim um direito social verdadeiro.
A turma de 1970 (e adjacências) não dispôs de um mar calmo para navegar em sua vida profissional, com certeza. Penso que nós, estes médicos hoje cinquentenários na profissão, representamos, de fato, um marco geracional sui generis: entramos na faculdade numa era ainda antiga, saímos com as coisas já muito alteradas e enfrentamos muitas outras profundas mudanças ao longo de nossa vida profissional. Se não conseguimos grandes vitórias – embora pense que também não tenhamos passado pela vida profissional e de cidadãos em nuvens totalmente brancas – certamente podemos ser reconhecidos como abridores de caminhos. É claro que muitos de nós se perderam e alguns como eu, desistiram da clínica – e nem seria fácil alguém fazer tal viagem sem se perder ou desviar de rumo – mas com certeza temos um testemunho a dar. A medicina não é mais a mesma, o mundo já mudou muito e nós também já não somos aqueles que um dia fomos. Resta saber quantos de nós aprendemos as lições, ou, pelo menos, se fomos capazes de reconhecer que há lições a aprender, nesta acidentada trajetória.
E o futuro? Este já não nos pertence…
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Alguns textos relevantes sobre o tema:
- https://issuu.com/acadmedbr/docs/cinquentenario_de_formatura-ebook (E-book dos 50 anos )
- http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/76170/79914 (Artigo Adib Jatene: Escolas Médicas)
- http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3632 (Tese UERJ sobre Ensino Médico no Brasil)
- http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/files/DemografiaMedica2018%20(3).pdf (Demografia Médica brasileira)
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