O Governo Federal acaba de cancelar um decreto emitido ainda na véspera, no qual se abriam porteiras para a iniciativa privada se banquetear no SUS. O Ministro da Cloroquina, ou melhor, da Saúde, certamente envolvido com o hasteamento da bandeira nacional ou com a redação de alguma ordem do dia para sua caserna, nem foi ouvido. E não faria muita diferença se o fosse. Em um país normal isso dificilmente aconteceria ou, se acontecesse, seria imediatamente seguido de uma nota de desculpas e até talvez alguma demissão. Mas desculpa é palavra que não está presente no tosco dicionário do Messias, nem de seus acólitos e demissão só se cogita para quem contraria ordens vindas de cima. Que ninguém acuse tal personagem de imprevisível; ao contrário, previsibilidade (para cometer equívocos) é coisa que não lhe falta. Mas agora falando sério: que tal discutir com maior profundidade a relação entre o SUS e a iniciativa privada? O não-governo deu um pontapé inicial, mas o grande problema deste é que nada que faz merece ser levado a sério. Ou seja, não daria nem para começar a discutir. Mas mesmo assim vou tentar abordar o assunto.
Primeiramente, dado caráter de pouca coerência nas ações que emanam do Palácio do Planalto, é preciso saber o que realmente significa essa jogada que está sendo ensaiada. O decreto em foco, já cancelado, era totalmente capenga e sendo assim poderia até, mais adiante, ser considerado inócuo. Mas sem dúvida é melhor ter cautela, considerando que balões de ensaio (alguns deles furados desde a plataforma de lançamento), constituem regra neste aglomerado de gente desencontrada que nos serve de governo. Paulo Guedes, aliás, fingiu de morto, mas o Messias já ameaçou reeditar o famigerado decreto.
Sendo assim, no meio de tanta escuridão, vamos tentar acender uma vela, para não apenas renegar as trevas que nos cercam. O que significa realmente “privatizar” na saúde?
Comecemos pela Constituição de 1988. Ela garante a presença da iniciativa privada da saúde, mas ao mesmo tempo confere ao Poder Público atributos de “regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”, conforme dita o artigo 197 da mesma (Relevância Pública). E existem mecanismos diversos de se fazer tal execução, por um tertius privado, por exemplo, como é o caso da participação de organizações sociais na execução das ações de saúde.
Alguns dirão: esta é uma faca de dois gumes! Não discordo, mas é bom lembrar que ao mesmo tempo que tem picaretas no pedaço – e não são poucos – existem experiências perfeitamente honestas e consequentes de cooperação de instituições privadas com o Estado, das quais o Hospital da Criança de Brasília, sempre destacado aqui neste blog, é um bom exemplo. Há muitas outras boas experiências no país. Assim, quando se deplora tal modalidade de delegação de serviços públicos, além da confiabilidade do prontuário do prestador contratado há que se levar em, conta também a capacidade do Estado brasileiro em redigir os contratos e, principalmente, em acompanhá-los devidamente, para não falar de sua capacidade de execução. Boa parte dos problemas nesta área decorre da associação entre “fome” e “vontade de comer”, ou seja, do casamento nefasto entre a ganância privada e a incompetência do Estado. Como disse um dia George Bernard Shaw, um homem feio, porém muito sagaz, diante da provocação de uma linda miss que lhe propôs matrimônio: melhor não, senhorita, o filho que tivermos pode herdar a sua burrice e a minha feiura, e não o contrário. Assim, como tudo nesta vida, existem realmente aqueles “dois gumes” nas parcerias do Estado com o setor privado, só que usados do lado equivocado ou com proverbial má fé.
Uma boa maneira de começar a conversa com o setor privado de saúde brasileiro, até para ver se essa turma está realmente interessada na busca de ações comuns e convergentes entre ele e o Estado, seria a de pacificar de vez a questão dos reembolsos devidos ao SUS pelas operadoras de planos de saúde. As pessoas pagam a vida inteira um plano de saúde e quando têm uma intercorrência grave e onerosa, já coberta contratualmente em seu plano, recorrem ao SUS. E o fazem porque sabem que ali encontrarão guarida e atendimento eficaz. O custo disso fica para o SUS; já para os planos, a economia que obtêm não é repassada automaticamente ao caixa do sistema de saúde, que na verdade representa uma poupança social, não apenas um “dinheiro do governo”. Capitalismo com regras assim só pode dar certo para os donos do dinheiro, não é mesmo? Que tal se pelo menos o setor privado abrisse mão das eternas pendengas judiciais que promove, com os bons advogados com que pode contar, visando simplesmente não honrar suas dívidas com o Estado ou com o SUS?
Então, para início de conversa, a iniciativa privada deveria declarar se está interessada neste tipo de iniciativa. Seu histórico diz que não, mas não custa insistir. Isso se complementaria com o estabelecimento de uma espécie de compromisso público, intermediado por quem de direito e não por certas raposas que vigiam galinheiros, de abrir mão de qualquer processo de judicialização, tão frequente da parte deles, frente a eventuais medidas fiscais, por exemplo, de redução da alíquota de descontos no IRPF e outras facilidades concedidas a instituições de saúde, muitas delas filantrópicas apenas na fachada.
A preocupação explicitada no finado decreto, relativa às inúmeras unidades públicas de saúde que se transformaram em construções fantasmas pelo país a fora, não há dúvida, é concreta e meritória. Mas a questão é que isso traduz a incúria de governos, sejam eles locais ou não, em gerir a coisa pública. Tais coisas não existiriam ou seriam minimizadas se o Estado brasileiro, em suas três vertentes federativas, fosse mais competente. O primeiro movimento seria de fazer justiça aos bons gestores e usar a mão pesada da lei contra os maus. Mas isso, sabemos todos, é difícil de acontecer no Brasil (Gilmar mandaria soltar…). O problema das obras inacabadas poderia, quem sabe, ser resolvido mediante “adoção” de tais unidades por parte da iniciativa privada, tal como acontece com parques, espaços culturais e praças, por exemplo. Não precisa doar nada para ninguém e muito menos retirar do SUS seu atributo constitucional de gestão, dentro da norma da relevância pública. Que se coloque uma placa na porta dos serviços: Esta unidade é mantida pela empresa tal, mas a gestão da mesma obedece aos princípios constitucionais do SUS (e que tais princípios sejam explicitados em seguida).
O foco da presente tentativa do governo é a atenção básica. Esta, apesar dos problemas, representa um ponto forte do SUS, junto com as ações de proteção coletiva e a alta complexidade clínica. Atenção, portanto: no quesito atenção básica, pode ser que a iniciativa privada seja mais devedora do que credora do sistema público, ao contrário do que imaginam as mentes iluminadas do Planalto, que parecem querer “salvá-la” entregando-a à iniciativa privada.
Vamos pensar grande? Por exemplo em construir uma Rede Nacional de Serviços de Saúde, formada por entidades públicas e privadas, de naturezas diversas, composta por unidades de diversos níveis, com base em informações de estrutura e arcabouço de oferta de serviços públicos e privados por região ou local; perfil epidemiológico e demográfico da população; indicadores de acesso, renda e filiação a planos de saúde? Assim, seria possível que o usuário adentrasse ao sistema por uma porta de entrada única, seja ela privada ou pública, mas que pudesse trafegar dentro de tal rede mediante mecanismos de regulação, com a devida compensação de procedimentos e custos entre os dois segmentos envolvidos. Complicado? Sem dúvida, mas vamos partir do pressuposto que estamos à procura de soluções e não de esbarrarmos frente ao primeiro obstáculo que apareça. Se fosse simples a solução já teria brotado em algum lugar (mas se procurarmos bem talvez isso já esteja acontecendo).
A formação de uma rede como esta, com os respectivos mecanismos de informação e compensação, dependerá, certamente de sistemas de informação aperfeiçoados, que favoreçam a tomada de decisão em tempo real frente às múltiplas situações que surgirão. O atual estado da informatização em rede já existente no Brasil, como ocorre, por exemplo, nas eleições, na rede bancária e em outros campos, nos permite pensar tal questão de forma ampliada e otimista. Sim, nós podemos! Decisão política é tudo.
Ainda no campo ampliado do pensamento (livre pensar e só começar…), poderíamos imaginar também a constituição de comitês nacionais ou regionais voltados para o desenvolvimento de processos e tecnologias em saúde, formados por representantes do SUS e do setor privado, com atributos consultivos, mas respaldo político para a implementação de suas definições. Nestes se poderia debater e propor soluções para temas essenciais da gestão em saúde, como estudos e pesquisas sobre modalidades de cooperação público-privada; protocolos para situações de emergência (é gritante a situação da atual pandemia); desenvolvimento de instrumentos nacionais de satisfação de usuários; normas e metas para o ensino das profissões de saúde; protocolos de gestão clínica; normas e critérios de acreditação de serviços de saúde, entre outros exemplos. Tal organismo teria papel eminentemente técnico e não competiria com as atribuições legais dos Conselhos de Saúde (que, aliás, estão a merecer estudos aprofundados sobre seu real papel no sistema de saúde).
Clareou um pouquinho?
Senhores do Planalto: não é preciso inventar a roda ou desenhá-la quadrada, ao arrepio de quem realmente entende a situação de saúde no país ou pelo menos dependa da solução dos problemas que Vossas Excelências tentam resolver tão canhestramente. Isso não funciona! Sei que bom senso é artigo racionado hoje no Brasil, mas não custa exercitá-lo.
Dá vontade de clamar: chega de patetices! Mas o nome dos agentes responsáveis por isso, em Brasília, é legião!


Parabéns por tentar, mais uma vez, divulgar a necessidade de ser feita, de forma objetiva, essa discussão obrigatória.
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