Tremores e trevas em meio à pandemia

Acabo de tomar conhecimento do lançamento do livro No tremor do mundo – ensaios e entrevistas à luz da pandemia, da Editora Cobogó, no qual diversos autores brasileiros, de várias áreas de conhecimento, tratam da repercussão social deste acontecimento que está mudando nossas vidas, qual seja esta fatídica pandemia de Sars-Covid-19. A obra procura não só construir em tempo real memórias desta época tão estranha, como também partilhar imaginações para o futuro, tentando antever o que nos aguarda como humanidade. Ainda não li e creio que a questão da saúde está sendo tratada ali, já que alguns dos autores são de tal área, como o neurocientista Sidarta Ribeiro. Mas de toda forma, diante de uma iniciativa tão necessária, me senti tentado a refletir também sobre o assunto, dentro do foco sanitário, o que ora compartilho com vocês, leitores. Penso que sempre é bom jogar um pouco de luz sobre as trevas e tentar alcançar estabilidade diante de um mundo que se agita em tremores e no qual nada mais parece ser sólido, tal e qual assistimos no presente momento.

Em primeiro lugar, o tema que o livro aborda adquiriu enorme visibilidade social, não só relativa à pandemia e à saúde em si, mas em relação à vida em sociedade em geral. Com certeza, , para o bem e para o mal, há muita gente conversando sobre saúde em toda parte, das mesas de botequim até as grandes lives na internet. Se já não é possível o contato físico entre as pessoas interessadas e em disputa, exceção feita aos botequins, com certeza se ampliou enormemente o número daqueles que se envolveram nos debates. Como nunca dantes, me parece. Isso só pode ser positivo.

Foi assim que novíssimas palavras, expressões e conceitos foram incorporados ao vocabulário comum, tais como pandemia, Sars, Covid, Coronovirus, proteção vertical x horizontal, imunidade de rebanho, média móvel, taxa de infecção, fases do desenvolvimento de vacinas, segunda onda, entre outras. Além de outras menos nobres, tais como negacionismo, gripezinha, doença chinesa, “e daí ?” e conversinha, por exemplo.

A polarização também se fez presente, da mesma forma que em relação a outras questões colocadas recentemente no cenário, graças ao aparecimento de grupos radicais no Brasil e no mundo. A ciência deixou de ser a respeitada orientadora das opiniões, que passaram a ser, elas mesmas, o farol a guiar muitas das afirmativas que se propagaram na infosfera, sem qualquer controle, apesar da crítica e da denúncia de quem não se rendeu ao achismo e ao opinionismo. A frase “eu não preciso de vacina, eu tenho cloroquina“, que se propagou no Brasil e se tornou mote de multidões de desavisados ou de mal-intencionados, teria sido apenas uma piada, se não fosse algo que acabou sendo levado a sério, com respaldo do próprio Presidente da República, do Ministro Militar da Saúde e de outras autoridades.  

Como resultado de tal polarização e do abandono do amparo científico, alguns tópicos ganharam grande visibilidade no debate, revelando, por assim dizer, temáticas e personagens até então ocultos, os quais viram a oportunidade de “sair do armário”. Veio daí o apoio incondicional à cloroquina, ao ozônio retal e outras bizarrices e até mesmo ao movimento das grandes entidades médicas, AMB e CFM, que em busca de notoriedade e, principalmente, da simpatia do grupo que comanda no momento o país, saíram pressurosamente em defesa da cloroquina, embora alegando, de forma contraditória que ao fim e ao cabo seria a autonomia medica que deveria decidir a questão.  

Foi assim ultrapassada uma barreira meramente partidária e mesmo ideológica, ao se exporem à luz do dia ideias e visões de mundo obscurantistas e prenhes de violência discursiva, saídas diretamente dos subterrâneos das mentalidades e que pareciam sepultadas nos desvãos da história. Isso é bem um sintoma da maneira como parte da sociedade, afinada ideologicamente com o bolsonarismo, passou a naturalizar as centenas de milhares de mortes e as milhões de incapacidades eradas pela pandemia, em nome de uma visão de mundo absolutamente não ética e destituída de qualquer compaixão, traduzida pela expressão “e daí?” e pela justificativa de que “um dia todo mundo vai morrer mesmo”. Tudo isso – é bom lembrar – com o aval e mesmo o incentivo daqueles que deveriam organizar e comandar as ações de proteção da sociedade frente à pandemia.

O que se viu, também, foi que as chamadas redes sociais, com toda a massa de informação disponível na internet, passassem a ter importância ainda maior na disponibilização de conhecimentos sobre saúde e doença para a sociedade, embora nem sempre correspondendo a uma contribuição desejável e positiva.

Assistimos, também, o surgimento ou a revelação ao mundo, de diversos atores sociais que se notabilizaram, muito merecidamente, aliás, durante pandemia, por terem chamado a si a divulgação de fatos e verdades sobre o problema, fazendo assim a “negação de sua negação”. Entre eles jornalistas, intelectuais e mesmo políticos. Correndo o risco de fazer injustiça por omissão aqui vão alguns nomes: Drauzio Varela, Atila Iamarino, Heloisa Starling, Lilia Schwarcz, Natalia Pasternak, Luiz Fernando Correia, Luiz Henrique Mandetta, Alexandre Khalil, Pe. Julio Lancelotti e tantos mais. Do lado oposto, aquele definitivamente equivocado, antes que a história os sepulte definitivamente, posso citar Alexandre Garcia como paradigma de tal gangue, tendo o presidente como hors concours absoluto, em posição indisputável.

Como bem levantado na obra em foco, existem futuros possíveis e diferenciados em perspectiva, todavia, até então não precisamente antevistos por quem se ocupava do assunto, sejam epidemiologistas, sociólogos ou outros profissionais. Assim certamente se abrem novas fronteiras e novos espaços de pensamento para se entender qual futuro nos aguarda, para o que o concurso de múltiplas disciplinas e correntes de pensamento será cada vez mais necessário.

Pode-se antever, também, que àquilo que se denomina “carga de doenças” é preciso acrescentar também, como componentes obrigatórios de tal equação, a influência de outros fatores exógenos, de origem cultural e simbólica, ligados à circulação de informações. Afinal, o que já seria preocupante e ameaçador em muitos aspectos, diante do conhecimento disponível sobre a referida carga de doenças, mais grave ainda se torna com a verdadeira pandemia de desinformação, para não dizer de má-fé estribada em opinião ideológica, que ora se assiste e que tem tudo para se tornar ainda mais avassaladora no futuro.

Concluindo, não seria, nem de longe, o caso de fazer retroceder ou renunciar a este mundo conectado e em rede. Ele é totalmente irreversível. Mas o futuro da humanidade tem que ser pensado à luz dos mecanismos de gestão e controle dessa verdadeira tropelia de informações que hoje circula, para o bem e para o mal, na infosfera, numa espécie de cavalgada irresponsável e perigosa, que lembra bem um ataque de hordas redivivas de hunos, montados em cavalos de bytes. Como disse Drummond:  maldição montada em cavalos telegráficos.    

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Mais informações sobre a obra em foco, recolhidas no site da Editora Cobogó (ver link), seguem abaixo.

 Título: No tremor do mundo – ensaios e entrevistas à luz da pandemia

Organizadores: Luisa Duarte e Victor Gorgulho

Autores: Ailton Krenak, Angela Figueiredo, Bernardo Esteves, Christian Dunker, Diane Lima, Eliana Sousa Silva, Fabiana Moraes, Fernanda Brenner, Franco “Bifo” Berardi, Fernanda Bruno, Gabriel Bogossian, Giselle Beiguelman, Guilherme Wisnik, Heloisa M. Starling, Ivana Bentes, Júlia Rebouças, Marcio Abreu,Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Noemi Jaffe, Orlando Calheiros, Paola Barreto, Pedro Duarte, Rodrigo Nunes, Sidarta Ribeiro, Silvio Almeida, Tatiana Roque

Língua: Português

Número de páginas: 352 páginas

Sabe-se que o vírus Sars Cov 2 impacta o corpo humano em diversos órgãos, e ainda que o maior perigo resida nas vias respiratórias, nos pulmões, a doença se revelou sistêmica. No interior do corpo físico, o vírus repercute de forma veloz, e o mesmo pode ser visto no corpo político da sociedade. A pandemia de Covid-19 gerou, em um período de tempo curtíssimo, um número assombroso de mortes e irradiações na vida de bilhões de pessoas ao redor do planeta. O movimento deste livro é de “tremer junto ao mundo”, expressão tomada do pensador martinicano Édouard Glissant (1928-2011), em um momento de abalo profundo, na esperança de que essa elaboração do nosso presente possa irrigar uma imaginação para o futuro. Pois, como aponta Ailton Krenak em seu depoimento aqui publicado: “Talvez, entre um tombo e outro, valha aproveitar esses hiatos – isso que chamam de interregno – e produzir mundos. Produzir mundos que possam ser o mais próximo possível do que imaginamos que é a coexistência.”

 Sobre os organizadores

Luisa Duarte é curadora independente, escritora e pesquisadora. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Foi por nove anos crítica de arte do jornal O Globo. Fez parte da equipe curatorial do programa Rumos Artes Visuais, no Instituto Itaú Cultural (2005-06). Foi curadora da exposição coletiva Quarta-feira de Cinzas, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 2015. Curadora (com Evandro Salles) de Tunga – O Rigor da Distração, no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), 2018. Organizadora dos livros ABC – Arte Brasileira Contemporânea (2014) (em dupla com Adriano Pedrosa) e Arte Censura Liberdade – Reflexões à luz do presente (2018). Curadora da exposição Adriana Varejão – Por uma Retórica Canibal, Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), Salvador, e Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), Recife, 2019.

Victor Gorgulho é graduado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrando em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ). É curador independente, jornalista e pesquisador. Curou exposições como Vivemos na Melhor Cidade da América do Sul (com Bernardo José de Souza), na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2017; Eu Sempre Sonhei com um Incêndio no Museu – Laura Lima & Luiz Roque, no Teatro de Marionetes Carlos Werneck, Rio de Janeiro, 2018; e Perdona Que No Te Crea, na Carpintaria/Fortes D’Aloia & Gabriel, Rio de Janeiro, 2019. Desde 2019 é o curador do MIRA, programa de exibição de filmes da ArtRio. Integra o corpo curatorial da Despina. Como jornalista, foi colaborador de cultura do Jornal do Brasil (2014-17) e hoje contribui com veículos como El PaísTerremoto VICE.

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Acesse também: https://cobogo.facileme.com.br/catalogo/literatura/no-tremor-do-mundo-ensaios-e-entrevistas-luz-da-pandemia?fbclid=IwAR3RfDReQ6c9YfJlTFo5Lp0iu9ai29q3heUlxCuO4CTyhgd8XoZUFigd1Fc

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