O Entorno, mais uma vez (que certamente não será a última)…

Entorno ou transtorno? O trocadilho pode parecer infame, mas certamente se equipara à recente troca de amabilidades entre os excelentíssimos governadores do DF e de Goiás, tendo este último debochado da rima do nome de Ibaneis, com pequenez. Poderia ser pior, com pequinês, por exemplo, mas não se chegou a tanto. A questão que os moveu, uma vez mais, é a mesma de sempre: a ultrapassagem das fronteiras federativas para a busca de atendimento à saúde em Brasília. Isso certamente acontece com intensidade na presente pandemia, mas na verdade vem acontecendo historicamente desde que o “quadradinho” se emancipou de sua Terra Mater, já se vão mais de 60 anos. Parece que as autoridades locais não se lembram – ou se esquecem de propósito – que quem vem dos territórios vizinhos para trabalhar aqui vem também para fazer compras, utilizar serviços pagos e realizar outras atividades que contribuem para a economia do DF. Além do mais, a Constituição assegura o direito de ir e vir (até agora, pelo menos). A solução para isso não está em colocar barreiras e catracas, criando assim um apartheid interfederativo peculiar. Caiado e Ibaneis, pelo visto, se espelham no Átila do Alvorada no negacionismo da pandemia, mas também na imitação da truculência de tal personagem. Desta vez o ruralista goiano fez “bingo”; de outra, a vitória poderá ser do rábula local. Mas uma coisa é certa: quem perde é o povo dos dois lados da fronteira (que em alguns lugares não passa de uma simples rua). Agora, falando sério, excelências: que tal tratar este assunto com maior profundidade e responsabilidade?    

Este é um tema que se reitera na mídia e no discurso dos políticos. Para início de conversa é bom lembrar que o IBGE (ver link ao final) aponta que mais da metade dos municípios brasileiros não oferecem serviços de atenção básica em saúde, de forma completa e resolutiva, e com isso precisam encaminhar os usuários para outras cidades para a realização de exames, mesmo os mais simples. Se há necessidade de internação hospitalar, chegam a 60,7% os locais que precisam encaminhar pacientes para outros municípios. O atendimento das emergências, assim mesmo em complexidade mínima, está presente em mais de 90% dos municípios. Algumas variáveis reveladas pelo IBGE: apenas 14,7% dos municípios dispunham de serviços de nefrologia públicos ou conveniados ao SUS; 9,7% possuíam leitos ou berços de UTI neonatal; 34,6% possuíam leitos/berços para cuidados intermediários. Isso se aplica também, sem grande diferença, ao entorno do DF, o que certamente implica em relação de sobrecarga ao DF. O que poderia ser feito?

Vamos lá.

Este caso específico do DF e Entorno representa, sem dúvida, um caso frequente de complexas relações entre entes federativos, bem como entre governos e população, com problemas muitas vezes agravados pelas barreiras políticas e geográficas, derivadas da tendência competitiva e até predatória vigente na federação brasileira. Em tal contexto, problemas de natureza sanitária, econômica, demográfica, cultural, política etc não têm como serem resolvidos de maneira singela ou apenas dentro dos moldes formais, nos limites de municípios ou estados, isoladamente. Há que buscar governança integrada, o que requer a ampliação do escopo da gestão dos vários participantes da equação assistencial, em termos de meios e de fins. Não há lugar para alguma soberania e mesmo a noção de autonomia deve ser qualificada e até relativizada.

Novos arranjos institucionais devem ser criados, fugindo do cercadinho e do cada um cuida de si tradicional, o que implica na formatação de novos instrumentos de ação. Bom exemplo desses arranjos é a Força Nacional de Segurança, algo praticamente impensável até alguns anos atrás, por ameaçar, supostamente, a marcante autonomia dos entes federados, mas que uma vez instalada veio ao encontro das demandas e das necessidades das sociedades política e civil nos locais em que atua.

Assim, de forma consequente, o princípio básico de ação governamental na crônica situação de saúde no Entorno do DF deveria se apoiar em valores de solidariedade e cooperação, com definição de novos papéis e novos modus operandi das máquinas administrativas, com foco na responsabilização das três esferas gestoras. Das TRÊS esferas, insisto. Só assim será possível afastar os fantasmas do predatismo e da competição, o que implica em aumentar recursos e poder decisório, não necessariamente de cada um dos entes federados, mas do conjunto deles, com a criação de instrumentos eficientes de gestão integrada, sem abrir mão da responsabilização individualizada de cada ente envolvido.

Organismos colegiados de gestão interfederativa são necessários, seja entre municípios, mas principalmente entre Estado e estes. Mas atenção: não se deve prescindir de papéis a serem exercidos pelo Gestor Federal, que não seja apenas o de árbitro, mas de agente atuante de uma expressiva ação trilateral, sem que isso se transforme em usurpação do poder pelo governo central. Tal ação interfederativa deve se estender ao conjunto de serviços públicos comuns aos estados e municípios que compõem a região, o que ultrapassa a possível pauta de atuação de governos locais, de forma a incluir itens tão diversos como: infraestrutura urbana; capacitação profissional específica em saúde; política de saneamento básico e limpeza pública, em função dos indicadores epidemiológicos; proteção ao meio ambiente e controle da poluição ambiental; educação e cultura, nos aspectos relacionados à saúde, além de segurança pública.

Isso implica em que as próprias atribuições específicas em saúde de cada ente federativo sejam ampliadas, de forma a incluir a coordenação das ações e programas de saúde; o desenvolvimento dos sistemas locais e microrregionais de saúde; o fomento à integração dos serviços públicos de saúde comuns; a utilização cooperativa dos instrumentos de planejamento local e regional, entre outras possibilidades, tendo como foco o a redução das desigualdades sanitárias.

Há mais de 20 anos foi criada a Região Integrada de Desenvolvimento – RIDE-DF, que teria atribuições similares ao que se anuncia acima. Ela, entretanto, se perdeu na burocracia e principalmente na falta de representatividade e poder dos representantes de cada esfera de governo que ali estão (apenas formalmente) presentes. A presença do governo federal emtal instância é meramente simbólica. Enfim, não serviu para nada. No meu entendimento, pode ser extinta, ou então recriada com outra estrutura e definições operacionais.

O pressuposto maior de tais ações deve ser o de que o Entorno não é simplesmente um transtorno para o DF, pois a população que nele habita, além de ser portadora de direitos de cidadania tanto quanto aquela que habita a Capital Federal tem também um importante papel na movimentação da economia do DF, já que é no comércio local que costuma fazer suas despesas de custeio familiar e outras. Além disso, estas pessoas não podem pagar os custos da incúria de governantes que permitiram e estimularam a atração fantasiosa de centenas de milhares de migrantes, movidos de outras regiões do País por promessas vãs, com o consequente descalabro da exploração imobiliária nas áreas onde foram forçados a se alojar.

Uma coisa é certa. Atitudes de levantar paliçadas, instalar catracas ou fechar as fronteiras, como volta e meia o governador do DF ameaça, fazem parte de uma lógica política medieval, aquela das “cidades-estado”, não se coadunam com as diretrizes do SUS e nem com a necessária colaboração e solidariedade entre os entes federativos, muito menos em situações sanitárias limite, como agora. Quanto ao papel do gestor federal, considerando os episódios recentes de descontrole e não-governança durante a pandemia, por parte dos fardados que atualmente ocupam a Babel que se instalou no Bloco G da Esplanada dos Ministérios, fica claro que dali pouco se pode esperar.

Quem sabe, no futuro, poder-se-ia dar um jeito nisso. Até lá, o Entorno continuará sendo um incômodo transtorno para o DF e seus cidadãos tratados como gente de segunda classe.

***

Veja mais:

***

25/02/2021: Duzentos e cinquenta mil mortos no Brasil!

E ainda tem gente que ri, tira férias na praia , provoca aglomerações, só pensa em livrar os filhos enrolados com a Lei, desfaz do bom senso e da ciência, se vangloria da própria ignorância e da ignorância dos que o cercam, se recusa a responder perguntas e se diz perseguido pela imprensa. Pode? No Brasil, pode… Ou pelo menos tem podido até agora. Trouxe aqui um texto para compartilhar com meus leitores, impactante não só pela robustez da argumentação como pela qualificação de quem o assina. A inteligência e a sensibilidade de seres humanos assim, não desse gado ignóbil, é que haverão de nos salvar… Fiquemos do lado deles, não dos outros. Acesse: https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/02/25/com-suas-mutacoes-de-escape-e-possivel-que-o-virus-se-antecipe-a-vacinacao/

Deixe um comentário