A superação da crise humanitária da pandemia e a responsabilidade individual

A pandemia nos coloca diante do espelho que nos revela um mundo atravessado por muitas crises e carente de mudanças (Lima, Buss e Paes-Sousa, 2020)

Sem dúvida, na era pós Covid os serviços de saúde serão obrigados a se transformar. Mas não só eles: os hábitos de vida das pessoas e das organizações humanas já começaram a mudar e irão mudar mais ainda, o que implica começarmos a pensar nas transformações que nos aguardam no futuro. Afinal, os riscos de piora no que já está ruim não são desprezíveis. Mas que tal pensar, também, para além da reorganização das políticas de governo em geral e dos serviços de saúde em particular e de sua adequação à era pós covid, nas mudanças que caberão também aos seres humanos, seja individualmente ou nos grupos familiares e sociais em que convivem? Mudanças que, sem dúvida, deverão ser assimiladas mediante um novo contrato social, ou seja, de aceitação consensual e responsabilização coletiva, em contexto de democratização de relações e respeito ao outro. Tudo isso sem esquecer da enorme legião de pessoas doentes ou potencialmente doentes que foram prejudicadas pela situação pandêmica, sendo por isso relegados a uma situação de “invisibilidade”, no que se incluem os sequelados pela covid e mesmo aqueles que carecem de atenção institucional, como as mulheres grávidas, os idosos, as crianças pequenas e outros. Há de fato um tremendo desafio pela frente, que não se restringe apenas a recomendações sanitárias ou relativas a políticas públicas. É preciso ir além disso para mobilizar um verdadeiro esforço coletivo, mas que deverá começar pela tomada de consciência individual. É disso que iremos tratar hoje, neste texto escrito em parceria entre Flavio Goulart e Henriqueta Camarotti.

Vamos à questão central: o que cabe diretamente às pessoas, na era pós covid-19? Ou melhor dizendo, o que cabe a cada um não só na missão de evitar a propagação viral, mas também acolher o outro e ajudar na superação do sofrimento exacerbado por perdas e desespero coletivo?

Para começar, algumas questões ligadas ao contexto presente, vistas aqui apenas de passagem. É preciso primeiramente admitir que a sociedade de consumo na qual vivemos favorece enormemente as múltiplas propagações e incentivos ao individualismo, mas não ao bem estar e responsabilização coletivos.  A nova era da comunicação instantânea e massiva, embora possa trazer algumas vantagens para a humanidade, contribui de forma mais negativa do que positiva, particularmente no contexto presente, ao favorecer a propagação de inverdades e meias verdades que galopam pelas redes, vis a vis com os fatos verdadeiros, cuja andadura apresenta passos de tartaruga. No mais, para além do mundo material e orgânico do cotidiano, vive-se em toda parte expressiva tendência de descuido e desvalorização de valores como solidariedade, compaixão, respeito ao próximo e espiritualidade.

Quando as notícias do Covid-19 começaram a ser veiculadas pela imprensa, mortes, isolamento social radical, com países inteiros se desestruturando, a primeira reação que imediatamente se instalou foi o medo. Medo da contaminação, da perda de entes queridos, medo do prejuízo material e perda de emprego, enfim medo da extinção da espécie humana. Esse estado de ameaça se instalou tal qual uma espada em nossas cabeças. Com o desespero e suas consequências imediatas, surgiram consequências mais profundas ligadas ao esfacelamento das famílias, a perda de organização da sociedade e problemas ligados a saúde psíquica e doenças mentais: depressão, ansiedade, pânico, suicídios, violência urbana e doméstica. 

No processo evolutivo, o medo é um instrumento fundamental para proteção, pois com ele desenvolvemos estratégias, capacidade cognitiva e emocional, ampliamos nosso espectro de percepção da realidade e fazemos parcerias para sobrevivência. Por outro lado, a emoção do medo pode se impor nas pessoas e assim desencadear comportamentos egoísticos, egocêntricos, tipo “salve-se quem puder”. De fato, a consciência humana, diante da ameaça de morte, pode reagir acionando o modo da cooperação e proteção do grupo, ou então optar pelo modo da competição, arrastando os escassos recursos de forma individual ou no máximo para pessoas próximas.

O ser humano, teoricamente dotado do livre arbítrio e supostamente pensante, consciente e atento a questões éticas, poderia ter como atributo intrínseco a tomada de decisões em benefício do grupo. Mas restaria sempre a pergunta: qual o caminho que se toma diante de cada situação real? Salvar a própria pele versus cuidar dos demais? Buscar a salvação e a segurança de todos? Vem aí a pérola máxima da vida, a ser melhor compreendida e praticada: quando cuidamos de todos, estamos preservando a espécie, crescendo enquanto seres humanos e evoluindo enquanto humanidade.

Do mesmo modo que a evolução do cérebro e dos mecanismos neurofisiológicos refinou a emoção do medo e tornou o comportamento cada vez mais complexo, também dotou o ser humano, desde os primórdios de Homo sapiens, da capacidade de resiliência e de funções refinadas da empatia e da compaixão. Aparentemente, pelo menos, nada poderia ser mais intrínseco à evolução do cérebro humano do que a capacidade altruística. Aliás, pesquisas atuais nas neurociências têm comprovado que compaixão é atributo que pode ser desenvolvido e treinado, permitindo construir relações mais harmônicas, solidárias e justas.    

Resiliência, termo oriundo da física que significa, a grosso modo, voltar ao formato original após um impacto deformante, tem sido usado nas ciências sociais e na psicologia como a capacidade de transformar o sofrimento em aprendizado, o trauma em competência. Mais do que nunca, os seres humanos parecem carentes de tal capacidade, o que faz com que em tempos de pandemia a vulnerabilidade e a propensão ao submundo das cavernas do medo se intensifiquem, afastando e criando barreiras ao contato, ao afeto e à solidariedade. O Mito da Caverna proposto por Platão é bem emblemático quando expressa a opção entre se continuar no fundo escuro e frio do mundo subterrâneo, de forma iludida pelas imagens deformadas pela alienação egóica, versus romper tais grilhões para sair em direção à luz do sol, símbolo da visão ampla, da verdade e do fortalecimento do espírito.

Seria possível aprofundar mais um pouco no entendimento da neurofisiologia do medo, porque, como espécie, o H. sapiens reteve uma porção reptiliana no cérebro, como sede do instinto e da sobrevivência. Mas ao mesmo tempo a evolução desenvolveu o sistema límbico e do neocórtex, áreas cerebrais que fazem tal Homo definitivamente humano, ou seja, seres potencialmente empáticos e compassivos. Enfatize-se, então, que nossa espécie é possuidora de inigualável capacidade de sentir, integrar as vivências traumáticas e desenvolver estratégias de superação pessoal e coletiva – e isso teria sido a mola mestra da sobrevivência do H. sapiens no Planeta. Como têm afirmado os pensadores neo-evolucionistas contemporâneos, os humanos não são os mais fortes, nem sequer os mais resistentes, mas sobreviveram devido ao fenômeno da cooperação, que preponderou sobre a competição. De fato, sobreviveu porque desenvolveu a cooperação entre os indivíduos da espécie, avançou e evoluiu porque foi capaz de ajudar e apoiar aqueles que os acompanham, sendo assim também capaz de aprendizado inter e intragrupal.

O isolamento determinado pelas autoridades sanitárias, legítimo, sem dúvida, teve, porém, a marca negativa de se converter em afastamento existencial, com cada um buscando formas de se proteger do vírus, mas ao mesmo tempo excluindo ou reduzindo o processo de convivência, de troca de ideias, de pensar compartilhado, de descoberta de soluções coletivas. Muito comum – e isso aqui se confirma – que as crises sociais e humanitárias revelem o que há de melhor e de pior no ser humano. Unir-se é começar a vencer, já era voz corrente entre tribos indígenas brasileiras – mas será que estaríamos, de fato, vencendo a ameaça da atual pandemia?

No início da pandemia, diante do sofrimento que ameaçava a comunidade internacional, a pergunta emergente era a de que essa crise iria nos ensinar, ou se seríamos capazes de sair de tal ameaça mais cônscios das nossas responsabilidades como pessoas e como parte do ser humanidade.

Então, caberia indagar se munidos de capacidade resiliente, de processos empáticos, de compaixão e cooperação, estaríamos enfrentando adequadamente esta pandemia do Covid-19. Estaríamos colocando em prática nosso arcabouço de inteligência mais precioso? Ou de forma mais direta: o que temos aprendido e se temos crescido como seres humanos ao vivermos a presente pandemia? Daí derivam novas perguntas e possibilidades, nem todas já consideradas ou respondidas, por exemplo: (a) No nosso cotidiano quanto de energia psíquica dedicamos àqueles que estão afundados na dor e nas questões de sobrevivência? (b) Estamos cuidando para não sermos um vetor de contaminação praticando os protocolos sanitários de proteção e aceitando as vacinas como propostos pelas autoridades médicas? (c) Temos real consciência de que a superação desta pandemia é iminentemente coletiva? (d) Está sendo possível sair da caixinha de vitimização para olhar em volta e disponibilizar-se para o outro? (e) O que temos aprendido e contribuído de fato em prol do avanço da consciência humanitária e na prevenção e superação de dificuldades e crises humanitárias? (f) O que mudou para melhor em nosso cuidado com o coletivo e nos empenhar em soluções que passem pela organização solidária de cidadãos? (g) Seríamos hoje pessoas melhores, contribuindo para uma cultura de Paz, Igualdade, Democracia e Justiça no Planeta?

Há estratégias novas e eficazes para a busca de resposta pra tais indagações.  Por exemplo, a tecnologia social da Terapia Comunitária Integrativa (TCI), já praticada no Brasil e em dezenas de países pelo mundo a fora, tem revelado que grande parte do sofrimento humano está ligado à solidão, à rejeição e aos conflitos emocionais. O antídoto e o poder terapêutico a esse estado de coisas são dados pela escuta e construção de vínculos solidários no contato entre todos que buscam aliviar suas dores emocionais ao encontrar e fazer parte de redes de relações interpessoais e grupais. Durante situações como a presente pandemia, os encontros on-line de TCI se multiplicaram, com marcante capacidade de promover o diálogo entre as pessoas e grupos sociais, fomentando apoio recíproco com a reafirmação e a comprovação de que a saída é sempre coletiva.

Enfim, caberia às equipes de saúde e das demais políticas sociais, aos grupos da sociedade civil e às próprias pessoas de per se refletir e agir de acordo uma declaração que serve ao meio ambiente e também às crises sanitária e social atual: O futuro está sendo escrito hoje. Vamos escrevê-lo juntos, com todos os nossos corações e nossa humanidade (Greenpeace Internacional). O modo como vamos enfrentar e superar as sequelas a médio e longo prazo do Covid-19 depende de todos pessoas e organizações, governos e sociedade civil, mas depende também de nossas escolhas individuais e coletivas. A pergunta definitiva seria:qual a minha contribuição para o ressurgimento de uma humanidade melhor? Ela precisaria ser respondida por todos nós. 

No mais, em nível sistêmico, cumpre promover a superação de um estado “insular” nos serviços de saúde, nos diversos níveis de atenção, passando a fazer parte de uma verdadeira rede, não hierárquica e com circulação ampla e abrangente de informações entre seus diversos pontos, bem como com outras redes. Os serviços de saúde devem também se preparar para receber uma nova carga de doenças, para as quais as estimativas, em relação aos anos anteriores, são de acréscimo acentuado e mesmo de aceleração de incidência, aí se incluindo as doenças mentais de diversas naturezas, mas principalmente a ansiedade grave, o estresse, depressão, a adição a drogas e o suicídio; a AIDS; as condições ligadas ao estilo de vida (decorrentes do tabagismo e do alcoolismo e do tabagismo); as condições crônicas de maneira geral (diabetes, câncer, artroses, obesidade), além das violências, traumatismos e doenças profissionais em geral. Além disso, ao par das obrigatórias atividades de prevenção e tratamento de enfermidades, a Promoção da Saúde precisaria se transformar em atividade essencial nos serviços, com componentes de informação e educação; promoção de atividade física e de hábitos saudáveis em termos de alimentação e vida; controle do tabagismo; controle do uso abusivo de bebida alcoólica; e cuidados especiais voltados ao processo de envelhecimento.

Deve ser lembrado ainda que é preciso não perder de vista que tais questões por assim dizer mais “sistêmicas”, ou seja, que dependem mais diretamente da ação governamental e institucional, sobre as quais a influência dos indivíduos é indireta, devem ser analisadas e tratadas à luz dos chamados determinantes sociais, tais como renda, moradia, transporte, acesso a saneamento e educação, que certamente são processos já agravados pela atual pandemia. Não se trata aqui de meras abstrações ou postulados apenas genéricos, itens de discursos vazios, mas sim quesitos a serem incorporados de fato às reflexões e práticas desenvolvidas nos serviços de saúde. As ações políticas públicas essenciais devem continuar a fazer o que faziam antes, mas ao mesmo tempo que enfrentam novas questões sociais agravadas pela pandemia, devem rever e recompor seu arsenal de atribuições, no que se inclui a necessidade imperiosa de trabalhar de forma integrada com outros agentes das políticas sociais.

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Em tempo (Deu no British Medical Journal desta semana):

Depois de quase seis meses de investigação, um inquérito do Senado brasileiro sobre covid-19 encerrou seus procedimentos recomendando a acusação de autoridades federais, assessores do governo e empresas por vários crimes cometidos durante a pandemia. O primeiro da lista é Jair Bolsonaro, acusado de cometer crimes como a “prevaricação”, o descumprimento ou atraso de deveres públicos por motivos de interesse pessoal; charlatanismo, promoção de curas falsas; e a propagação do vírus. Ele também foi acusado de “crimes de responsabilidade”, previstos na Constituição do Brasil, que é punível com impeachment devido à incompatibilidade de sua conduta com a dignidade, honra e decoro esperados do gabinete presidencial, Leia mais: https://www.bmj.com/content/375/bmj.n2625

Referências:

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