Entre o pensamento desejoso e a dialética do exagero

No campo da saúde pública, Gastão Wagner de Souza Campos é uma daquelas pessoas imprescindíveis, para parafrasear Brecht. Professor universitário, gestor público com várias passagens na saúde, professor, escritor, pensador. Acima de tudo uma mente brilhante e criativa. Tive a honra de ter sido prefaciado por ele em meu livro Saúde da Família: Boas Prática e Círculos Virtuosos. Ninguém mais gabaritado do que este goiano-campineiro para falar sobre o SUS, seja em sua defesa ou mesmo em críticas pertinentes. Em entrevista recente ao site Outra Saúde (ver link ao final), Gastão fala de um livro recém lançado por ele e outros autores da Unicamp, onde é docente, intitulado “Nas entranhas da atenção primária à saúde”,no qual eledefende que esta modalidade de atenção (no Brasil, Estratégia de Saúde da Família) teve o poder de enraizar o SUS na sociedade brasileira, com resultados celebrados mundialmente. Enquanto não tenho acesso ao livro, levanto algumas respeitosas discordâncias quanto a algumas das colocações de Gastão, relativas ao momento atual do SUS. Mas lembro que meu objetivo maior aqui é chamar atenção para certos desvios (embora bem intencionados) que os defensores do SUS por vezes cometem, quais sejam, certo exagero a respeito dos feitos do mesmo ou a narrativa de fatos que aconteceram mais na mente dos militantes do que no mundo real.

Em primeiro lugar, devo dizer que a defesa do SUS, mesmo com seus eventuais defeitos, é extremamente pertinente em um momento como o atual, no qual a política de saúde vem sendo ameaçada de várias maneiras, particularmente pelas atitudes delinquentes do Presidente da República e de auxiliares seus. Não custa lembrar que o nosso sistema de saúde representa, acima de tudo, uma solução com problemas, mas não um problema sem solução, como querem alguns. Sem ele certamente já teríamos ultrapassado a casa do milhão de mortos pela covid e não teríamos os quase 80% da população vacinados, como se vê hoje. E ponto final.

Gastão Wagner põe fé na atenção primária à saúde, que segundo ele enraizaria o SUS na sociedade brasileira, dados seus resultados celebrados mundialmente. Quanto ao seu reconhecimento além das fronteiras do Brasil não há qualquer dúvida, trabalhos nas melhores revistas médicas do mundo atestam de sobra tal fato. Porém sobre este possível enraizamento social, creio que seja assunto que mereça maior discussão. O problema, para mim, é que grande parte do que se vê hoje no país com o nome de Saúde da Família, não representa mais aquela estratégia sonhada na década de 90, a partir de ideias nascidas nos melhores sistemas de saúde do mundo. E aí a questão não é apenas relativa às alterações que foram sendo introduzidas no modelo inicial, algumas até realmente racionais, eficazes e bem vindas, mesmo com tendências às vezes, segundo alguns, demasiadamente flexibilizadoras.

Até aí tudo bem, mas para mim o grande problema é a atenção primária de fato, ou seja, aquela derivada das reais contingências de baixo aporte de recursos ou mesmo por algum reducionismo eleitoreiro ou mal informado da proposta. Assim, o que se vê por toda parte são equipes sem médicos, sem enfermeiros, sem o número preconizado de agentes comunitários de saúde ou de outros componentes da equipe básica, com distribuição territorial e populacional divergente dos parâmetros definidos pela Política Nacional de Atenção Básica. São autênticas gambiarras, infelizmente, embora se mostrem quase como sacramentadas dentro da triste realidade nacional.

O próprio Gastão reconhece que nem tudo são flores neste campo e lembra de fatores como os problemas de ambiência e infraestrutura das unidades básicas; as dificuldades de se preencher vagas nas equipes, relativas a quase todas as profissões envolvidas; a protelação do uso de registros eletrônicos, entre outros aspectos.

Posso citar como exemplo disso o próprio DF, onde no site da SES nem há menções ao número de equipes, de profissionais alocados e de locais atendidos pela ESF. É como se a estratégia de Saúde da Família não existisse. Aliás, a atenção básica é ali tratada como uma coisa única, sem distinguir o que é Saúde da Família da modalidade tradicional da atenção básica, aquela dos postinhos, que constituem estratégias de atenção qualitativamente diferentes, inclusive em termos de resultados e impacto.

Sendo assim, creio que seria pouco fidedigno falar em “enraizamento na sociedade” ou mesmo de capacidade em provocar mudanças de monta no sistema quando o que se tem muitas vezes seria apenas uma corruptela do desejável.

O nome ‘entranhas’, segundo ele, tem a ver com o fato de o livro ter ido ao fundo das questões. Curiosamente, todavia, pelo que transparece na entrevista, o que encontraram nas tais profundezas, com grande ênfase, aliás, foi o problema da violência social, em suas dimensões doméstica, comunitária, educacional. Sobre elas Gastão propõe uma reflexãoteórica com foco na relação da atenção primária com tal paisagem inóspita. Corretíssimo, a violência no Brasil é algo assustador de fato e os profissionais da atenção básica se veem obrigados a lidar com ela não só entre a clientela demandante, mas também por se verem, eles próprios, submetidos à mesma, pelo tráfico, por exemplo.

Mas me parece que a ênfase conferida a tal questão na entrevista faz com que outras questões fundamentais da atenção primária, ainda mal resolvidas, pareçam pouco valorizadas. Exemplos? Responsabilidades profissionais, relações interpessoais internas, atribuições dos agentes comunitários, metodologias de acompanhamento domiciliar, trabalhos com listas e prioridades, conteúdos de formação, acolhimento, navegação (longitudinalidade), abordagem de problemas interseccionais, entre outros.    

A tal reflexão teórica proposta por Gastão teria como foco o papel da atenção básica e sua relação com a desigualdade, com o racismo, o machismo, a violência ligada à velhofobia, transfobia, patriarcalismo. É claro que os serviços de saúde não podem se omitir diante de questões dessa natureza e a exigência de que pelo menos denunciem os casos já seria um avanço. Mas não seria exorbitante exigir deles um papel mais destacado e transformador, sem considerar as demais responsabilidades presentes no cenário, por exemplo, da Justiça, Ministério Público, Ação Social, Educação, Sociedade Civil e outras instâncias?

Lembra Gastão que o SUS introduziu algo incomum na gestão da saúde, que foi a participação da sociedade e entre esferas gestoras – “que não resolve tudo” ele mesmo lembra, com razão. Sobre a participação social, equivocadamente tomada como “controle social” (na minha visão), tenho escrito aqui que é preciso tomar cuidado com o caráter de verdadeira panaceia que a mesma adquiriu, particularmente entre seus militantes, o que faz com que muitas vezes assuma apenas um caráter burocrático, seletivo e até mesmo ilusório em suas pretensas “deliberações”, às quais, em tese, os gestores deveriam se submeter, mas na prática não levam em conta. 

E ele completa a reflexão lembrando que toda política de saúde deveria ser aprovada de forma tripartite, ou seja, pelos secretários estaduais, municipais e pelo governo federal. Mas isso seria apenas puro pensamento desejoso, pois não é bem assim que as coisas funcionam, até porque muitas decisões do cotidiano da política são tipicamente restritas a uma única esfera e seria fastidioso convocar os demais gestores toda vez que fosse necessária alguma definição. A não ausculta tripartite, pensando bem, poderia ser, de certa forma, um fator positivo atualmente, por resguardar o SUS da estagnação que resultaria da necessidade de aquiescência compulsória por parte de um governo federal negacionista e irresponsável como o de agora. Aliás, Gastão mesmo reconhece tal posição, ao lembrar que tendo Bolsonaro “fechado quase tudo na educação, na ciência”, conseguindo paralisar também o Ministério da Saúde, não inviabilizou, contudo, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde – Conass. Ou seja, alguma coisa continua funcionando na política de saúde. Menos mal, portanto.

Sobre a questão da informatização da rede, que realmente configura um grande vazio no Brasil, ele lembra que isso não teria grande custo, faltando apenas competência para tanto. De minha parte, acho que falta algo mais abrangente do que isso, ou seja, o gap é de decisão política. Competência tecnológica, aliás, temos até de sobra no país, haja vista, por exemplo, as eleições informatizadas, o sistema bancário, o pix, o imposto de renda, além de outros instrumentos tecnológicos em que o Brasil é referência mundial. Além do mais, não custa lembrar que existem avanços significativos em tal campo, em progressão ascendente, a partir de municípios e de alguns estados, tudo isso com, sem ou apesar do Ministério da Saúde.

Nas já citadas políticas de desmanche da atenção básica, Gastão deplora a atuação do atual governo, citando a criação de uma agência para tal área, já aprovada, mas ainda não implementada, como mais uma suposta estratégia de privatização e de aniquilação da atenção primária. Ele tem certa razão, porque de tal fonte, ou seja, do atual governo da República, é difícil saírem coisas que prestam, mas de toda forma a essência da proposta, que é a criação de uma agência com mais flexibilidade de ação – haja vista atuação da Anvisa e de outras presentes no cenário – poderia ser uma solução interessante. Não fosse a sanha de destruição bolsonariana, claro. Mas é de se indagar se pelo menos não caberia a quem de fato pensa os rumos da saúde no Brasil tentar desenvolver conceitualmente algo assim, quem sabe para aplicação futura. A não ser que se acredite que não há futuro para a saúde no Brasil, o que não é o meu caso e creio que não seja o dele também.

Há uma menção de passagem, mas negativa, à atuação de grupos privados, como Einstein, Sírio-Libanês e outros, na ministração de cursos de Atenção Primária na linha da OMS. Aqui talvez fale alguém que acredita (e defende) sua instituição de origem, a Unicamp, que também é sócia de tal esforço (o que inclusive dá origem ao referido livro recém lançado). Respeito a opinião, mas acredito que o SUS, as universidades públicas e o próprio setor privado lucrariam (não apenas em termos materiais) com este tipo de aproximação.

A cereja do bolo está no lead da matéria, não diretamente nas palavras de Gastão Wagner ao jornalista, quando se afirma que a mobilização proporcionada pela atenção primária no Brasil será capaz até mesmo de derrotar Bolsonaro em 2022. Convenhamos: isso não é apenas pensamento desejoso, mas chega a ser delirante. Não sei se Gastão realmente acredita nisso, mesmo cometendo um certo exagero em algumas de suas ideias. Por certo é preciso muito mais do que isso (mas muito mais mesmo!) para superarmos o atual desastre político, ético e humanitário que assola o país. Mais uma vez, seria exigir demasiado da atenção primária à saúde, ao tentar lhe conferir atributos tão messiânicos (mas fujamos dessa palavra!).

Enfim, a defesa do SUS – ou de qualquer outra obra humana – requer exatidão e fidelidade à realidade. Caso contrário o tiro pode sair pela culatra, pois o descrédito pode ser ainda pior do que a desinformação. É preciso cuidar para não cairmos em pelo menos nas armadilhas já citadas: pensamento desejoso e a dialética do exagero. Mas separemos as coisas: incidir em tais erros ainda é radicalmente diferente – e muito menos danoso – do que a propagação mal intencionada e mesmo criminosa de notícias falsas que a horda bolsonarista pratica à luz do dia e ainda chama de liberdade de opinião.   

Nota final: estes comentários são totalmente provisórios, pois ainda não li o livro que está em foco na entrevista. Espero poder lê-lo tão logo seja possível e desde já afirmo que preferiria que estas minhas observações preliminares fossem contestadas com a leitura do mesmo.

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Veja aqui a entrevista de Gastão Wagner

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AVISO IMPORTANTE!

Pandemia, participação social e políticas para a saúde da população negra

Quarta-feira, 15 de dezembro, às 10h
 Negros morrem mais do que brancos no Brasil, por motivos que vão desde a desigualdade de renda até a maior exposição à violência por armas de fogo. Com a pandemia de COVID-19, estudos demonstram que os impactos da doença são desproporcionalmente maiores na vida dos negros.
Diante dessas diferentes ameaças, o tema da 5ª edição do Diálogos IEPS é “Pandemia, participação social e políticas para a saúde da população negra“.
Três eixos vão nortear este Diálogos IEPS: o papel da participação social para a promoção da equidade no setor da saúde; desafios para a escalar a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) nos municípios brasileiros, possíveis caminhos de implementação, incentivos e indicadores para monitorá-la.

Participantes:

Luana Araújo – Médica infectologista pela UFRJ, mestra em Saúde Pública pela Johns Hopkins e consultora no Hospital Albert Einstein
Ionara Magalhães – Professora Adjunta da UFRB, membra do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra e do GT Racismo e Saúde da ABRASCO
Edna Araújo – Professora Titular da UEFS, Doutora em Saúde Pública/UFBA e coordenadora do GT Racismo e Saúde da ABRASCO
Maria Letícia Machado – Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS
Ricardo Gandour – Mediador

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GASTÃO WAGNER, para quem ainda não o conhece:

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