Dialética do exagero, jogo político e saúde

Dialética do exagero, sabem o que é? Quando uma mãe adverte que seu filho “ vai quebrar o pescoço” se não descer do muro – mesmo que tal muro não tenha mais do meio metro de altura. Isso na melhor e mais nobre das intenções, porque tem também um outro extremo, aquele que do sujeito que ameaça que se não tivermos urnas físicas e voto impresso auditável em 2022, aquela invasão do Capitólio vai se repetir aqui no Brasil, com consequências ainda piores. Variante: quem tomar vacina contra Covid vai virar jacaré. Se no primeiro caso é o amor de mãe que se manifesta de modo perfeitamente aceitável, embora com ingênuo exagero, no outro impera a desfaçatez, a desonestidade intelectual, o autoritarismo e o apego puro e simples à mentira. É preciso não confundir as coisas, portanto, pois o fato é que existe uma grande distância entre um gesto e outro; de um lado, o cuidado materno, do outro intenções de genocídio. Mas devemos nos acautelar também para que tais arroubos de argumentação não venham turvar também a defesa de causas justas, por exemplo, a defesa do SUS que nós, pessoas de bem, costumamos praticar. Penso que a melhor defesa que podemos fazer de alguma coisa em que acreditamos é argumentar com a verdade, sem exageros. Tomo aqui, como exemplo, a discussão recente sobre a criação, pelo Governo Federal, de uma espécie de agência para a Atenção Primária à Saúde, que causou fortes arrepios e até mesmo indignação nos setores que defendem o nosso sistema de saúde, os quais, como aliás deveria ser, são fortemente ligados a uma visão política de esquerda.

Em resumo, a questão é a seguinte: o governo quer instituir, através de medida provisória, o Programa Médicos pelo Brasil (PMB), associado à criação de uma Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), com a finalidade de “incrementar a prestação de serviços médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade e fomentar a formação de médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade”. Vista a questão só por tais palavras, nada mais adequado, com a vantagem de trazer para a gestão uma fórmula jurídica mais independente e flexível. Quem que é poderia ser contra? Mas o problema é outro, e tem duas vertentes. Primeiro porque realmente não se pode confiar neste governo irresponsável, negacionista e privatizador. Segundo, porque entre suas variadas demonstrações de incompetência, em quase todas as áreas de atuação, a saúde tem sido aquela em que as tendências destrutivas têm se mostrado com mais intensidade e perversidade.

Afinal, o fabricante de cestos, que já fez um cento deles, com certeza tem potencial para fazer muito mais. Melhor seria mesmo manter o pé atrás. Mas só isso bastaria? Prefiro responder esta pergunta à moda de Sartre: negar não é dizer não, mas combater através da razão, oferecendo alternativas melhores ao que se propõe. Afinal este governo vai passar (toc toc toc) e não custa nada nos prepararmos para ações menos toscas, mais racionais e mais resolutivas em termos de políticas públicas. E creio que esta discussão tem cabimento desde já, podendo trazer luzes para a solução de problemas que afetam drasticamente não só a política de APS no país, como também as de financiamento, relações público-privadas, gestão de recursos humanos para a saúde em seus diversos campos operacionais, entre outras.  

Comecemos por um apanhado dos argumentos contrários, soprados pelos ventos à esquerda do cenário, como vejo defendido pela ABRASCO e, em particular, em publicação de Ligia Giovanella, militante pró SUS, cujo link vai ao final deste texto. Assim, entre outros aspectos menos significativos, eles denunciam o seguinte: 1. A iniciativa poderia prejudicar a continuidade do SUS em seus princípios de atenção universal, equitativa e integral, através de “mecanismos explícitos e subterrâneos que esvaziam o caráter universal” do mesmo. 2. Os conteúdos divulgados teriam mais afinidade com os preceitos da saúde privada, em franco descrédito com os princípios norteadores do SUS. 3. Seriam criadas novas formas de financiamento da saúde, sobre as quais há fortes suspeitas. 4. A atuação da União no SUS tenderia a ser “terceirizada” para entes que assumiriam prerrogativas próprias do Estado, uma estrutura claramente desenhada para atender o mercado da saúde e desmontar a prestação pública. 5. As ameaças à Atenção Primária à Saúde embutidas em tais projetos representariam medidas que se colocam na contramão do que se vê no resto do mundo, ao invés de assegurar os princípios de serviço público que devem nortear o SUS. 6. Não estaria ocorrendo participação popular nem debate sobre mudanças que têm enorme potencial de mudança nos rumos do sistema. 7. Haveria um evidente reducionismo em termos de política pública, ignorando temas centrais como região, território e equipe, afastando a oferta de ações de saúde de uma perspectiva de redes e de regionalização. 8. Embora o discurso oficial mencione a atual estratégia de Saúde da Família, não se destacam os atributos próprios e indissociáveis da APS, como orientação comunitária e familiar; competência cultural; cuidado integral e abordagem populacional.

Antes de comentar tais questionamentos, apresento alguns aspectos que considero positivos nas propostas que vêm sendo vinculadas, com a devida ressalva de que, partindo deste governo, é mais seguro termos uma interpretação orweliana (lembram-se de 1984 e da novilíngua?) de suas ações, ou seja, podem estar anunciando coisas através de uma linguagem virada pelo avesso, tipo o bom é ruim e o bem cruel, como disse Caetano.

Mas o fato é que também chamam atenção alguns tópicos para o bem, pelo menos potencialmente, por exemplo, 1. a expansão de contratação de mais de 20 mil médicos para atuar em regiões vulneráveis do país (é bem verdade depois que este mesmo governo cometeu a insensatez de acabar com o Mais Médicos, que vinha dando bons resultados); 2. Os gestores municipais de saúde estão sendo convocados a manifestar interesse pelo processo e o Conasems estima que haverá boa receptividade ao mesmo (embora não tenham sido ouvidos quando de sua elaboração); 3. a criação de novas modalidades de financiamento, anunciada no projeto; 4. a maior flexibilidade de uma estrutura (não bem definida ainda, todavia) que fuja do túnel de ferro imposto pelo Estatuto do Funcionário Público (L. 8112), lei dos Contratos e Licitações (L. 8666) e pela lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101).

Sem deixar de lembrar que quando as coisas não vão bem, como é a atual situação da saúde no país, a emergência de novos cenários e novas ideias pode ser desejável, mais do que perigosa. 

Sem exageros…

Para mim, a questão central, que move toda essa preocupação pessimista, que não deixa de ser razoável, tem a ver com o prontuário de malfeitos que incrimina o atual governo. Mas há questões colocadas nesta proposta, mesmo que tenhamos natural relutância em aceitar, que são de fato pertinentes e que realmente deveriam passar a fazer parte do repertório de mudanças desejáveis na saúde. É bom deixar o passado para trás e ir pensando nisso como ingrediente do futuro.

A mais importante delas é a flexibilidade nos contratos, compras, licitações e contratação de recursos humanos. Isso no meu entendimento é perfeitamente possível de ser conseguido, dentro dos limites da lei, sem prejudicar os trabalhadores e prestadores e sem perder a compostura, enfim. No Brasil existe uma avançada cultura de burla, por certo, acompanhada por algo não menos negativo que é o tolhimento das ações dos gestores públicos. E tal combinação de infratores, de um lado, com amedrontados, de outro, o que não pode produzir boas coisas, eis que aqueles lá aí mesmo é que se locupletam. Temos que perseguir isso de todas as maneiras.  

Quem é que ousaria contestar a ideia de se ter mais recursos para a saúde? O argumento dos que rejeitam a atua proposta parece colocar isso como mais um ponto negativo, temendo, talvez, que estes novos recursos venham a ser buscados no bolso das pessoas físicas, inclusive as mais pobres. Tudo bem, mas poder-se-ia pensar, ao mesmo tempo, em limites e novas formulações para isso. Mais cedo ou tarde talvez seja hora de fazer com que os mais bem aquinhoados possam oferecer contribuições progressivas ao caixa da saúde, diferenciadas daquelas dos mais pobres. E para isso há vários mecanismos, desde a taxação de grandes fortunas e destinação de parte da arrecadação para a saúde até o estímulo puro e simples para que essas pessoas recorram aos planos privados, com o devido ressarcimento quando forem atendidas pelo SUS, é claro. Outras modalidades existem no cenário, muito pouco exploradas até o momento, como algum incentivo a parcerias com o setor privado, nas empresas com muitos funcionários, por exemplo.   

É preciso também pensar em uma recomposição, ampliação e qualificação da APS, em função de substanciais mudanças epidemiológicas, culturais e políticas que estamos enfrentado no Brasil. Isso sem dúvida requer estratégias especiais de acolhimento e acompanhamento de pacientes não só nas unidades da ponta da linha como ao longo do sistema de saúde como um todo. Assim, por exemplo, aquela mera triagem ou vista d’olhos burocrática deve se transformar em real análise da situação dos pacientes, individualizada e baseada em fatores de risco, de modo que todos os pacientes que acorrem aos serviços, sem exceção, tenham suas demandas analisadas, tratadas ou canalizadas e também acompanhadas, de acordo com os atributos da integralidade e da longitudinalidade que compõem o campo da APS. Dentro disso, é necessária também a superação do estado “insular” vigente historicamente na saúde, passando os serviços de saúde, nos diversos níveis de atenção, a fazerem parte de uma verdadeira rede, não hierárquica e com circulação ampla e abrangente de informações entre seus diversos pontos, bem como com outras redes.

Como de costume, a defesa do SUS parte do pressuposto de que a atuação do Estado brasileiro é débil (o que é verdade) e que qualquer tentativa mudança em relação a isso é temida como perigosa ou inviável. Nem estamos falando da conjuntura atual, na qual o modus operandi do atual governo é marcado pelo predatismo, autoritarismo e arcaísmo nos modos de fazer política. Torna-se preciso ir além. Uma regulação mais efetiva, por parte do Estado, dos serviços privados complementares ao SUS, “para atuar como se públicos fossem” (no dizer de meu amigo Nelson Rodrigues dos Santos) é extremamente necessária – e aí é que está o foco principal dos problemas apontados.  Isso naturalmente implicaria numa revisão da relação entre Estado e setor privado, seja ele complementar (serviços contratados) suplementar (planos de saúde), ou mesmo interna corporis. Como alguém já disse há muito tempo, não precisamos de um Estado maior, mas sim mais competente, ou inteligente.

E assim nos perguntamos: por que não é assim ainda? Aliás, quando vemos os questionamentos a uma maior integração entre o setor público e o privado na saúde, por exemplo, facultando a atuação privada em determinados segmentos da assistência, o primeiro obstáculo que os defensores mais intransigentes do SUS interpõem é justamente aquele que aponta uma porta aberta para a corrupção. Isso tem sido a realidade factual, mas não seria o caso, então, de gastarmos mais energia intelectual e política na melhoria do desempenho do Estado brasileiro, de modo a torna-lo mais capaz de regulamentar e fiscalizar os contratos e demais instrumentos de parceria com a iniciativa privada? A tônica de tais debates tem sido a de lamentar a escuridão, longe de acender alguma luz sobre ela.

Resumindo tais dilemas: a questão é colocar um foco diferente naquilo que se faz hoje, particularmente em relação à atuação estatal na saúde. Já é hora de parar de fazer mais do mesmo em questões como gestão de RH, contratos e licitações, financiamento. Que tal se o Estado começasse a se ocupar também de questões de valor em relação ao que ele próprio faz ou ao que contrata?

Então, para terminar: no SUS e nas questões de saúde em geral tudo é tratado com base em números. O que importa são quantidades, seja de consultas, exames, horas trabalhadas, leitos ocupados, altas concedidas, recursos transferidos, pagamentos de serviços – seja lá o que for. Mas existem outras maneiras de agir, referendada por teorias contemporâneas gerenciais e de relações de trabalho, que distinguem entre o que é meramente “volume” e outra acepção, de fundo qualitativo, ou seja, do que representa “valor”. Seria possível falar, então, em uma “saúde baseada em valor”, como modelo de prestação de cuidados de saúde no qual os prestadores, incluindo as instituições, empresas, profissionais e servidores de maneira geral, são pagos na base dos resultados proporcionados aos pacientes, e não apenas em termos de quantidades, seja de consultas, de internações, de procedimentos ou custos. Mas isso pode ainda contar com uma dimensão especial, quando a definição do valor pago ou atribuído a procedimentos determinados ganha um sentido plural, de valores, que são os aspectos simbólicos pelos quais uma instituição se move: Ética; Comprometimento; Competência; Solidariedade; Trabalho em equipe; Humildade; Humanização.

A tal dialética do exagero sem dúvida faz parte do jogo político, em qualquer parte do mundo. Uma parte da presente discussão está profundamente marcada por isso. Mas é preciso enxergar além da turvação que a ideologia muitas vezes impõe. As ameaças atuais à saúde do povo brasileiro são reais. Não podemos ter medo de pensar grande e, principalmente, pensar além das restrições da atual conjuntura nefasta em que estamos.  

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Leia mais:

https://outraspalavras.net/outrasaude/medicos-pelo-brasil-retrocesso-na-atencao-primaria-a-saude/

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Abaixo uma adaptação realizada pela Equipe do site Outras Palavras, de texto elaborado por Lígia Giovanella, Aylene Bousquat, Patty Fidelis de Almeida, Eduardo Alves Melo, Maria Guadalupe Medina, Rosana Aquino, Maria Helena Magalhães de Mendonça, originalmente publicado na revista Cadernos de Saúde Pública.

Médicos pelo Brasil: caminho para a privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde?

A ameaça surgiu com a instituição da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde em agosto de 2019

A Medida Provisória n° 890, enviada pelo Executivo ao Congresso Nacional em 1° de agosto de 2019, instituiu o Programa Médicos pelo Brasil (PMB) e enunciou a criação de uma Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS) com a finalidade de “incrementar a prestação de serviços médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade e fomentar a formação de médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade”.

A MP foi transformada em lei (n° 13.958) em dezembro de 2019, com poucas modificações decorrentes de debates no parlamento, instituindo o Programa Médicos pelo Brasil (MPB) e criando a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde.

Sua implementação foi postergada com a chegada da pandemia e mudanças no Ministério da Saúde. A implementação da Adaps foi retomada em outubro de 2021 com a conformação do conselho deliberativo e uma série de resoluções referentes a estatuto e regimento da ADAPS, seguindo estabelecido na lei. Este artigo, publicado em 2019, destaca as principais ameaças aos princípios do SUS decorrentes desta iniciativa.

Analisar e perscrutar a MP/Lei 13.958/2019 é essencial para o entendimento da conjuntura das políticas de saúde no Brasil e, particularmente, da organização da Atenção Primária à Saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS) hoje. Neste artigo, alerta-se para os riscos dessa legislação favorecer a transformação da APS, no SUS, em um espaço mercantil da assistência, e para os possíveis retrocessos para a formação de médicos para a atenção primária.

A Agência de Atenção Primária despontou em uma conjuntura de retomada de políticas ultraneoliberais e de avanço de concepções ultrapassadas

A MP n° 890/ Lei 13.958/2019 foi publicada em um cenário marcado, por um lado, pela instalação de uma crise no provimento de médicos na APS consequente à retirada dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos (PMM) e, por outro, por um grave quadro de agudização do desfinanciamento do SUS, com uma dotação orçamentária, em 2019, inferior à do ano de 2018.

No plano geral, a conjuntura é marcada por políticas ultraneoliberais em um governo de extrema-direita com perda de direitos trabalhistas e sociais, associada a crescentes iniciativas de privatização, que também alcançam o setor de saúde. Além disso, a MP sustenta-se em uma concepção restrita de APS, entendida como apenas o primeiro nível de atenção. Embora no texto legal se destaque a menção à saúde da família, observa-se a total ausência dos atributos derivados da APS, de orientação comunitária e familiar e competência cultural, centrais para a garantia do cuidado integral e abordagem populacional.

A Adaps não será órgão governamental nem agência reguladora. Seu modelo de gestão é de um órgão privado, não submetido às regras da administração pública

O PMB, que objetiva “incrementar a prestação de serviços médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade”, será executado pela Adaps que, para tal, firmará contrato de gestão com o Ministério da Saúde. No entanto, as competências da Adaps, previstas pela MP, são amplas e vão além da execução do PMB, incluindo: a execução da política e a prestação de serviços de APS; o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão; e o desenvolvimento e incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão, entre outras.

A Adaps se constituirá como serviço social autônomo (SSA), uma figura jurídica de direito privado sem fins lucrativos. Embora encarregada do desenvolvimento da política nacional de saúde, não será órgão governamental da administração direta, nem se constituirá em uma agência, similar às agências reguladoras como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A opção por SSA, segundo Miranda, representaria um “agenciamento empresarial”, dada a possibilidade de captação de recursos financeiros para além do provimento estatal. O modelo de gestão SSA seria paraestatal, órgão auxiliar na execução de função pública. Vale ressaltar que, não sendo uma modalidade de Administração Indireta, os SSA não estão submetidos à observância das regras da administração pública.

Vislumbra-se mais um ataque à participação social e clara aderência a novas modalidades de gestão inspiradas nas diretrizes da “new public management”

Nesse cenário com competências amplificadas da Adaps, a participação do setor privado é claramente explicitada: “articular-se com órgãos e entidades públicas e privadas; (…) firmar contratos com órgãos e entidades públicas e privadas, incluindo instituições de ensino; (…) firmar contratos de prestação de serviços com pessoas físicas ou jurídicas”.

A relação com o setor privado se fortalece também na composição do conselho deliberativo da ADAPS (proposta na MP 890), que incluía quatro representantes do Ministério da Saúde, um do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), um do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (CONASS) e um de entidades privadas do setor saúde. Na lei aprovada, após pressões no parlamento a composição do conselho deliberativo foi modificada para a seguinte composição: seis representantes do MS, um do Conass, um do Conasems, três de entidades representativas da corporação médica (Associação Médica Brasileira, Conselho Federal de Medicina, Federação Nacional dos Médicos), e um do Conselho Nacional de Saúde.

Na MP não havia participação do Conselho Nacional de Saúde ou representações de usuários ou profissionais. Vislumbra-se mais um ataque à participação social, princípio basilar do SUS. Fica clara a aderência a novas modalidades de gestão inspiradas nas diretrizes da “new public management”. Esse movimento político se insere na esteira das políticas de reforma do Estado, em perspectiva da utopia liberal, em que um ponto central é a transferência da provisão de serviços sociais ao setor privado.

Na experiência brasileira, modalidades de gestão como a da Adaps ocorrem sem garantias, com frouxo controle público e baixa capacidade de controle institucional e social

Os argumentos para as novas modalidades de gestão no setor público seriam o alcance de maior flexibilidade, autonomia e agilidade na gestão e ampliação das parcerias entre Estado, mercado e sociedade civil. Um dos aspectos mais destacados seria a contratação de pessoal com flexibilidade, nas condições de mercado, sem incorporação ao regime jurídico único e correspondentes sistemas de aposentadorias, além de não estar submetida aos limites de contratação de pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Todavia, na experiência brasileira, o alcance de maior flexibilidade nessas modalidades de gestão tem ocorrido, em geral, sem garantias, com frouxo controle público e baixa capacidade de controle institucional e social. Estão presentes na MP tanto a possibilidade de transferência da provisão para o setor privado, como também os elementos de flexibilização da força de trabalho, pois os contratos iniciais de médicos serão por bolsa e, só após dois anos, via Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Vale recordar que não há evidências de que a prestação privada ou a terceirização sejam mais efetivas ou eficientes do que provisão similar pelo setor público. A produção cientifica é insuficiente para concluir se essas novas modalidades de gestão no setor de saúde promovem melhores resultados na qualidade da prestação ou na eficiência (tão propalada nos dias atuais), especialmente em países de renda média e baixa como demonstram revisões Cochrane, e, ademais, alguns estudos indicam impactos negativos em países de alta renda como a Inglaterra.

A Unimed coloca-se como parceira do Ministério da Saúde para a prestação da APS no SUS, dando indicativos da orientação privatista dessa política

Nesse sentido, a criação da Adaps aponta para uma perspectiva privatista da APS no SUS, que se dará em maior ou menor grau a depender da qualidade do contrato de gestão e da capacidade e vontade política do governo em realmente exercer o controle sobre a execução. Outra dimensão central para a análise é a relação público-privado, que aqui se expressa no anúncio da liberdade de estabelecer contratos com o setor privado. Alerta-se para o risco de ocorrer uma dupla terceirização: a MP terceiriza a implementação da política de APS na ADAPS, instituição sem finalidade de lucro, e a ADAPS terceiriza a prestação contratando o setor privado com ou sem fins de lucro.

O posicionamento do presidente da operadora de planos privados de saúde, Unimed, expressa bem essa dimensão público-privada. Ao mencionar o PMB, a Unimed coloca-se como parceira do Ministério da Saúde para a prestação da APS no SUS, dando indicativos da orientação privatista dessa política.

A operadora vislumbra uma parceria virtuosa entre a adjetivada bem-sucedida experiência de interiorização das “cooperativas singulares” do sistema Unimed e o Estado brasileiro. Evocando o texto constitucional, o posicionamento conclui que a saúde suplementar legitimamente pode ocupar um importante papel na gestão da saúde pública, em uma nova era “na qual a iniciativa privada se fará presente cumprindo as obrigações da saúde pública brasileira”.

Médicos pelo Brasil”: implicações para formação e fixação de médicos para a APS, grande desafio para os sistemas de saúde

A fixação de médicos na APS, especialmente em áreas mais vulneráveis e remotas, é um grande desafio para os sistemas de saúde. Estudos que analisam a distribuição de general practitioners nas primeiras décadas de implantação do Serviço Nacional de Saúde inglês (NHS) e em outros sistemas de saúde concluíram que as soluções pontuais não são suficientes para superar esse déficit e exigem mudanças (não sem conflito) e regulação do ethos médico e na disputa dentro do aparelho formador.

A política anterior de provisionamento de médicos, o PMM, para além do provimento emergencial de médicos para a APS em regiões com escassez de oferta e dificuldade de fixação, incluía um eixo de formação para o SUS com investimento na regulação da formação de especialistas, criação de vagas de graduação e residência, novos cursos de medicina baseados em diretrizes curriculares revisadas, abertura de turmas de Mestrado Profissional em Saúde da Família, além de outro eixo voltado à melhoria da infraestrutura das unidades básicas de saúde (UBS).

Apesar do curto espaço de tempo, diversos efeitos positivos do PMM foram identificados, em especial no eixo de provimento, com redução na escassez e das desigualdades na distribuição dos médicos, uma vez que 78% desses profissionais foram alocados em municípios prioritários; redução de internações por condições sensíveis à APS e aumento dos investimentos com construção e reforma para melhoria da infraestrutura das UBS.

A nova orientação rompe com a exigência de residência e quebra a regra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

A sinergia entre os três eixos do PMM buscou afetar aspectos cruciais para a sustentabilidade e a qualificação da APS por meio do incentivo à formação via residência e melhoria da infraestrutura das UBS, também considerada elemento para a fixação de profissionais da saúde. Por outro lado, o PMB envolve apenas o provimento em áreas remotas e formação especializada em serviço.

Para a implementação do programa, a ADAPS contratará, por meio de processo seletivo público, médicos com registro no Conselho Regional de Medicina e tutores especialistas em medicina de família e comunidade ou em clínica médica. O processo seletivo para médico de família e comunidade incluirá curso de especialização com duração de dois anos, ao fim do qual o médico deverá realizar uma prova que o habilite ao título.

Dessa perspectiva, a MP rompe com a exigência de residência e quebra a regra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) que exige quatro anos de prática em APS para habilitação para a prova da especialidade. Diferente de uma residência, na qual a presença cotidiana do preceptor é fundamental para o residente habilitar-se nas competências concernentes à especialidade MFC; no curso de especialização, haverá apenas um tutor.

A SBMFC, apesar de destacar a importância da residência e de marco regulatório para a formação de especialistas do país, manifestou-se em apoio ao PMB. Durante o curso de formação, o candidato receberá bolsa-formação e, após aprovação na especialização, seria contratado por regime CLT. Embora aventada na imprensa e aplaudida por entidades médicas como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a MP 890 não estabelece uma carreira para os médicos do PMB.

Uma importante medida para a fixação de profissionais em áreas remotas é a oferta de formação interiorizada como previa o Mais Médicos

A formação interiorizada prioriza regiões de saúde com menor relação de vagas e médicos por habitante para a implantação de escolas médicas, ponto ignorado pelo PMB. A omissão sobre a graduação parece deixar claro que a reorientação da formação médica não faz parte da agenda governamental. Não por acaso, a MP 890/ Lei 13.958/2019 revogou os art. 6° e 7° da Lei n° 12.871/2013 do PMM.

Ao abrir mão da regulação da residência médica, evidencia que o governo não está disposto a exercer a prerrogativa constitucional da formação para o SUS. De fato, a formação proposta apresenta dois limites centrais: a baixa capacidade de formar médicos de família e comunidade, pois seu público deixa de ser o conjunto dos médicos formados no Brasil anualmente; e a queda da qualidade, na medida em que a residência médica, “padrão-ouro” da formação, supõe treinamento em serviço com supervisão/preceptoria constante.

Outra questão, nas entrelinhas da MP, reside na mudança de relação entre os entes federados. O desenho do SUS pressupõe responsabilidades próprias dos três entes federados, cabendo ao ente municipal a gestão, o planejamento e a provisão da atenção básica. A Adaps cria a possibilidade de uma cunha de ingerência na gestão municipal, na contramão da construção política do SUS, intervenção essa advinda não apenas do nível federal, via Adaps, mas também possivelmente do setor privado.

Ademais, como o centro da MP é a categoria médica, se poderia afirmar que estamos diante de uma proposta de “re”criação do modelo de ambulatórios do antigo INAMPS, focado apenas na atenção médica individual. Fato esse reforçado pela ausência das dimensões comunitária e familiar no escopo dos atributos da APS.

Cenário político: reação partidária, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, de movimentos sociais e da Conferência Nacional de Saúde

No cenário político, a MP foi recebida com disputas e controvérsias. A partir de sua apresentação, deputados formularam mais de 300 propostas de emendas: a oposição com o intuito de ampliar o debate sobre o SUS, e a bancada governista com o objetivo de responder a interesses de segmentos da corporação médica.

Uma emenda substitutiva focada em alterar a proposta de criação da Agência para uma modalidade de gestão pública e com controle social foi apresentada por partidos de esquerda, dialogando com a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, movimentos sociais em saúde e conselheiros e delegações da 16a Conferência Nacional de Saúde (CNS), oportunizando o debate no momento da realização da CNS.

As emendas de parlamentares progressistas focaram em conter o avanço da privatização, da precarização do trabalho da equipe, preservar o caráter público na formação incluindo graduação, especialização e residências com parcerias com universidades públicas.

Seguindo os trâmites do Congresso, a MP foi analisada por uma comissão parlamentar, que em seu relatório final não incluiu as recomendações dos parlamentares aliados ao SUS. Em outubro de 2019, quando este artigo foi escrito, a MP ainda não havia sido votada no pleno do Congresso Nacional. No entanto o intenso debate no parlamento com maioria governista resultou em poucas mudanças no texto aprovado. A principal delas, a alteração da composição no conselho deliberativo da Adaps.

Urge ampliar as bases de apoio na sociedade para combater iniciativas que afetam os princípios que estruturam o SUS constitucional

A disputa pelos recursos públicos por empresas do setor privado (corporações financeiras que gerenciam planos de saúde, hospitais), sempre presente na história brasileira, torna-se mais acirrada em situações de desregulamentação, como na conjuntura atual.

A criação de um SSA com prerrogativa de contratação de empresas privadas para a prestação transforma a APS em espaço mercantil, numa lógica próxima à da proposta de cobertura universal de saúde. O empresariamento é também facilitado pelo assento de entidades privadas no colegiado gestor da ADAPS, o que representa a inclusão de atores privados na tomada de decisão da política de APS.

Abre-se caminho para a privatização da APS, que tem sido considerada a parte mais estatal da rede de serviços do SUS, com uma enorme vocação não mercantil 25. Em síntese, a MP propõe ajustes duvidosos no provimento, uma agência privatizante e o abandono da agenda de regulação da formação de especialistas, de expansão da residência em medicina de família e comunidade e de reorientação da formação na graduação.

Frente a essas e outras medidas que ameaçam os princípios que estruturam o SUS constitucional – universalização, publicização, integralidade do cuidado e participação social – urge ampliar as bases de apoio na sociedade de modo que iniciativas que afetam esses princípios possam ser combatidas.

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