De volta: Covid e a importância das ações na porta de entrada

Pois é, interrompemos nossas atividades desde a primeira quinzena de janeiro. Mas estamos de volta, com posts semanais, sempre aos sábados. Como perdi minha agenda de contatos, devido um furto de celular, fiquei completamente às escuras durante este período e só agora posso retomar minha vida na rede. E vamos lá: o assunto hoje é, mais uma vez, Covid; passados dois anos está difícil mudar… Hoje quero retomar a discussão sobre o papel do modelo assistencial em saúde e seu impacto na pandemia, assunto que, aliás, já tratei aqui em diversas ocasiões. Mas hoje trago aqui algo relevante, de autores que eu inclusive conheço pessoalmente (ver link ao final), que é uma matriz de análise que facilita, de fato, compreender e categorizar as contribuições da Atenção Primária à Saúde no controle da atual pandemia. Como já escrevi aqui antes, além de distanciamento, álcool gel, máscara, medidas educativas e restritivas, é preciso também contar com um modelo de atenção à saúde adequado, para se alcançar resultados consistentes no controle. Trata-se, assim, de uma matriz de repertórios possíveis para a APS em circunstâncias de crise como a atual, baseada na literatura internacional e particularmente na Iniciativa da OPAS-Brasil denominada APS Forte/2020, constituída por cinco linhas de atuação.

Para início de conversa, vamos definir o que vem a ser uma APS/Atenção Básica que realmente mereça tal nome.  A verdadeira natureza dela deve conter, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) ações de saúde, no âmbito individual e coletivo; (2) abrangência que inclua a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, além da manutenção da saúde; (3) trabalho em equipe, com médico, enfermeiro e pessoal auxiliar, inclusive agentes comunitários de saúde; (4) foco da ação dedicado a populações de territórios bem definidos e explícitos; (5) responsabilização sanitária formal de tal equipe; (6) domínio de tecnologias de complexidade alta e baixa densidade: (7) capacidade de resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância no território (que podem chegar a 90% do total). Além disso, ela representa o contato inicial dos usuários com o sistema de saúde, orientando-se por princípios tais como universalidade, acessibilidade, coordenação do cuidado, vínculo; continuidade, integralidade, humanização, equidade e participação social.

Não custa nada insistir nisso, pois tem muita coisa por aí chamada de “Atenção Primária à Saúde”, ou “Atenção Básica”, sem propriamente merecê-lo. Ok assim? 

A matriz de análise aqui referida é composta de cinco categorias operacionais, a saber: vigilância epidemiológica, monitoramento de casos, informações ao público, manutenção dos princípios da APS, atenção especial a vulneráveis.  

A primeira dessas categorias, vigilância epidemiológica compreende campos de ação ligados a rastreamento e monitoramento de casos, suspeitos e contatos, além de atividades de testagem. As ações de monitoramento incluem não só os casos mais banais da comunidade como os pacientes que já receberam alta hospitalar.  Há um foco especial nas medias educativas, seja em relação à prevenção ou à educação em saúde (e disseminação de informação em sentido mais amplo.

O que se chama de manutenção dos princípios da APS faz total sentido, já que a eficácia de tal modelo de atenção é frequentemente ignorada ou mesmo desprezada, mesmo pelos profissionais de saúde, bem como pelos usuários. Aí estão incluídas ações como a garantia do acesso, da continuidade do cuidado, por exemplo a pacientes crônicos, gestantes e crianças, além da integralidade (acesso a outras queixas além de sintomas gripais). Aspecto fundamental á a coordenação do cuidado e a integração com outros níveis e serviços, que deveria ser uma prerrogativa fundamental da APS e nem sempre é compreendida ou exercida pelas equipes.

A atenção diferenciada a grupos vulneráveis, outra ação essencial da APS, não poderia ficar de fora, e entre tais grupos estão incluídos as gestantes, os idosos, a população em situação de rua, as pessoas com deficiência, os doentes crônicos, além dos casos especiais de indígenas, quilombolas, migrantes e pessoas em privação de liberdade.

Há também uma categoria identificada como “outros” na qual estão incluídos alguns tópicos novos, mas que chamam a atenção a partir de dados empíricos. Entre estas, a reorganização dos serviços, ou seja, a necessidade   de   adaptação dos mesmos ao contexto da pandemia, contemplando, entre outros aspectos, novas escalas de trabalho, novas funções profissionais, formas alternativas de trabalho etc. Em tal contexto as questões de saúde mental possuem especial relevância e já vêm compondo os repertórios de práticas de muitas unidades básicas de saúde. Destaque também para a utilização de novas tecnologias, como teleatendimento, informação ao público e processos internos de capacitação.

O quadro abaixo mostra uma síntese disso.

Vigilância EpidemiológicaRastreamento de casos suspeitos Monitoramento da pandemia Rastreamento de contatos Testagem na UBS Testagem fora da UBS  
Monitoramento de casosMonitoramento de casos leves Monitoramento de altas hospitalares  
Informação sobre cuidados e prevenção:Medidas de prevenção Educação em saúde (disseminação de informação)  
Manutenção dos princípios da APSContinuação do cuidado (pacientes crônicos/gestantes/crianças) Coordenação do cuidado (integração com outros serviços) Integralidade (acesso a outras queixas além de sintomas gripais, etc.) Manutenção do acesso  
Atenção especial a grupos vulneráveisGestantes Idosos População em situação de rua Indígenas Quilombolas Pessoas com deficiência Doentes crônicos Migrantes Pessoas em privação de liberdade  
OutrosReorganização do serviço Saúde mental Uso de novas tecnologias Atenção ao profissional de saúde Gestão de crise

 Tudo isso permite ampliar mais ainda a compreensão do papel da APS não só no controle da atual pandemia, mas na melhoria das condições de saúde gerais de toda a população. Aliás, a própria organização Mundial de Saúde indica, respaldada por numerosos trabalhos científicos realizados pelo mundo a fora, que os sistemas de saúde dotados de uma estrutura baseada no trabalho colaborativo e em equipes de  Atenção Primária à Saúde (APS),  não apenas  melhoram  os  resultados  de  saúde,  mas também a  equidade e a atenção integral e continuada aos pacientes. Entre as tarefas precípuas de tais equipes estão atividades diversas de vigilância, de diagnóstico precoce, de tratamento de casos leves, de implementação de medidas de prevenção e educação em saúde. A APS tem certamente um papel central diante de uma pandemia como a atual, sem embargo que que o mesmo possa ser continuamente aprimorado, mesmo em condições como as da atual crise. Como pressuposto, devem existir processos de comunicação clara e instituição de comitês específicos de crise, o que tem sido demonstrado em diferentes países, com a formação de redes   de   vigilância   baseadas na APS, com grande eficácia também para a influenza sazonal.

Assim, a APS, como primeiro ponto de contato para os pacientes, em contextos de emergência sanitária tem papel essencial como canal insubstituível de acesso ao sistema de saúde, aliás, de longe o mais importante para os usuários.  Em adição, as equipes da APS são capazes de não só realizar o diagnóstico precoce, mas também identificar contatos e fornecer informações de qualidade, em função   do   vínculo   já   estabelecido   com   a comunidade local.

A APS é capaz, sim, de grandes feitos numa situação com a atual, embora não esteja sendo tratada no Brasil com a responsabilidade e a seriedade que merece.

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Saiba mais:

  • Matías Mrejen, PhD Rudi Rocha, PhD Christopher Millett, PhD Thomas Hone, PhDThe quality of alternative models of primary health care and morbidity and mortality in Brazil: a national longitudinal analysis – – Open AccessPublished:August 13, 2021DOI:https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.100034
  • Fernandez, M.; Carvalho, W.; Borges, V.; Klitzke, D.; Tasca, R.apsemrevista.org233 A Atenção Primária  à  Saúde e o enfrentamento  à  pandemia da COVID-19:  um  mapeamento  das  experiências  brasileiras  por meio da Iniciativa APS Forte APS em RevistaVol. 3, n. 3, p.224-234| Setembro/Dezembro–2021ISSN 2596-3317 –DOI 10.14295/aps.v3i3.216

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