Respondendo à pergunta do título, em rápidas palavras, Brasília não chega a ser uma cidade das mais violentas, pelo menos em comparação com outras capitais do Brasil. É claro que se a comparação for feita com cidades de outros países, isso muda de figura. Fiz um levantamento disso em 2019 e constatei que aqui estava presente uma tendência de redução de mortes criminosas violentas observada também em outras capitais brasileiras. Na violência policial (e contra policiais), Brasília tinha uma posição confortável, com baixo número de ocorrências, quando comparada a outras capitais. Na violência contra mulheres, Brasília ostentava, também, uma posição mais positiva. No trânsito, ao contrário do que apregoa o senso comum, Brasília apresentava posição moderada, embora com taxas muito superiores às de outros países. Como evoluíram as coisas depois disso? Com base nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, apresento aqui uma síntese mais atualizada da situação, a partir do Atlas da Violência publicado pelo Ipea em 2021, juntamente com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, além de outras parcerias institucionais.
As mortes violentas indeterminadas
Analisando de maneira geral a situação do país, chama atenção, em primeiro lugar, o fato de que ocorre no país importante aumento das mortes violentas por causa indeterminada (MVCI), já no ano de 2019. Isso traz implicações não só em termos de comparações possíveis com outras localidades, como também sobre a fidedignidade das estatísticas. Assim, em 2019 ocorreram mais de 45 mil homicídios no Brasil (21,7 mortes por 100 mil habitantes) cifra inferior ao encontrado para todos os anos desde 1995. Contudo, a queda de tal número observada entre 2018 e 2019, 22,1%, deve ser vista com grande cautela, podendo traduzir alguma deterioração na qualidade dos registros oficiais. São mortes violentas em que houve incapacidade em identificar a motivação. Em 2019, por exemplo, este número aumentou em quase 70% e considerando o percentual de MVCI em relação ao total de mortes violentas, o índice passou de 6,2% para 11,7%, entre 2017 e 2019, um aumento de 88,8%.
Este crescimento brusco das MVCI é bastante preocupante, indicando perda de acurácia das informações do sistema de saúde, o que sem dúvida não só revela a piora na qualidade dos dados sobre mortes violentas no país, como pode induzir análises distorcidas, por subnotificação de homicídios. Aliás, estudo realizado em 2013 estimou que, em média, 73,9% das mortes por causas indeterminadas registradas no Brasil entre 1996 e 2010 eram na verdade homicídios ocultos, situação mais grave no Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará. De 2018 para 2019 houve no Brasil crescimento de 35,2% no número de MVCI, com aumento de 232% só no Rio de Janeiro.
Dito isso, podemos prosseguir: como está a situação das MVCI aqui em nossa cidade?
O DF tem taxa de MVCI por 100 mil habitantes de 1,2, em 2019, ao mesmo tempo que a mesma taxa no país como um todo é de 7,9. Em tal índice reduzido, somos acompanhados por AM (0,9), MA (1,1), PB (1,3) e GO (2,4). O estado de São Paulo exorbita, como comentado acima, com nada menos do que 9,1, mas quem chama atenção de fato é o RJ, onde a taxa de MVCI chega a inacreditáveis 28,3. Outros estados com altos índices, todos em torno de 10 ou mais são: BA, CE, PE e RR.
Homicídios em geral
A análise da taxa de homicídios, declarados como tal, por Unidade Federativa (UF) aponta que os números variaram de 10 a 42,7 homicídios por 100 mil habitantes. Ainda que o estado de São Paulo tenha apresentado um indicador oficial de 7,3, vale ressaltar a fragilidade desse dado como representativo da realidade do estado, diante da piora na qualidade da informação sobre a taxa de MVCI que alcançou um patamar de 9 mortes por 100 mil habitantes, índice superior à taxa de homicídios. Todas as UFs apresentaram queda da taxa de homicídios, com exceção do Amazonas que, entre 2018 e 2019, apresentou aumento de 1,6%. Observou-se que tais taxas se correlacionam, ao que tudo indica, com o controle do tráfico internacional de drogas nas rotas que passam pela região Norte e chega às capitais do Nordeste, com auge em 2017.
No DF, a taxa de homicídios em 2019 foi de 15,9 (por 100 mil habitantes). Ao mesmo tempo, no Brasil foi de 21,7. As menores taxas ocorreram em SP (7,3), SC (10,7) e MG (13,7). Os estados recordistas foram AP, BA, PA, RN, RR e SE, com taxas próximas a 40.
Homicídios praticados contra a juventude
Em todo o mundo adolescentes e jovens do sexo masculino, entre 15 e 29 anos, são as pessoas de maios risco para homicídios. No contexto da América do Sul, os fatores estruturais da mortalidade violenta estão representados por conflitos derivados do crime organizado e do uso de armas de fogo. No Brasil a violência é a principal causa de morte dos jovens, sendo que em 2019, de cada 100 jovens entre 15 e 19 anos que morreram no país por qualquer causa, 39 foram vítimas da violência letal; entre 20 e 24 anos, 38 a cada 100 óbitos e, entre 25 e 29 anos, 31. Dos 45.503 homicídios ocorridos no Brasil em 2019, 51,3% vitimaram jovens entre 15 e 29 anos, representando 23.327 vidas ceifadas prematuramente, com média de 64 jovens assassinados por dia no país.
Aqui no DF. A taxa de mortalidade (2019) para tal faixa etária foi de 29,2 por 100 mil habitantes, ao passo que no Brasil chegou a 45,8. A taxa de mortalidade de jovens no DF é das mais baixas do país, destacando-se em sua companhia os estados de PI, MS, MG, SC, RJ e SP, sendo que neste último ela é a mais baixa do Brasil, ou seja, 12,5. Do outro lado estão as UF em que esta taxa se aproxima ou passa de 80; são eles: BA, SE, RN, PB.
Violência contra a mulher
Em 2019, 3.737 mulheres foram assassinadas no Brasil, número que ficou abaixo dos 4.519 homicídios femininos registrados em 2018, com redução de 17,3%. A mesma tendência é mostrada em 2019 e segue aquela relativa a homicídios em geral (homens e mulheres), com redução de 21,5% em relação ao ano anterior. Isso inclui tanto as circunstâncias de feminicídio, ou seja, mulheres vitimadas em razão de sua condição feminina, em decorrência de violência doméstica ou familiar ou quando há menosprezo ou discriminação à condição de mulher, como também pela violência urbana geral, como roubos seguidos de morte e outros conflitos. Tal redução de violência letal que atinge as mulheres precisa, no entanto, ser matizada pelo crescimento expressivo dos registros de MVCI, que tiveram incremento de 35,2% de 2018 para 2019.
O DF mostrou, em 2019, taxa de mortalidade feminina por 100 mil habitantes de 3,3, versus 3,5 no Brasil como um todo. O maior expoente se deu em RR, com 12, 5 e o menor em SP, com 1,7, seguido de RJ com 2,5; MG, 2,7 e PI, 2,8. Cabe observar também como esta taxa variou ao longo da década anterior. No DF ela teve crescimento negativo de 41%, acompanhando a tendência do Brasil (-18%), destacando-se em tal aspecto os estados de RJ (-39,6) e PR (-41,7). Do outro lado, com marcante crescimento, AM, MA, CE, RN e AC, chegando, neste último, a inacreditáveis 69,5% positivos.
Violência contra a população negra
Em 2019, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios no Brasil, com uma taxa por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros tal taxa foi de 11,2, implicando que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Em outras palavras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior que entre não negras. Da mesma forma, as mulheres negras representaram 66,0% do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para mulheres não negras. Além disso, ao se analisar dados da última década, verifica-se que a redução dos homicídios ocorrida no país esteve muito mais concentrada entre a população não negra do que entre a negra.
Neste campo, o DF apresenta uma taxa por 100 mil habitantes de 21,1, menor do que a do país, 29,2. As taxas mais baixas estão em SP (9,1); PR (14,8); MG (16,6) e PI (18,5). As taxas mais altas, ultrapassando a cifra de 50 por 100 mil habitantes correspondem aos estados de AP, SE, RN e PE.
Homicídios por arma de fogo
Nos últimos anos a discussão sobre a flexibilização do acesso às armas de fogo ganhou evidência no Brasil com a ascensão de grupos políticos conservadores da extrema direita, cuja síntese se dá no bolsonarismo. Assim desde 2019, com o atual governo, já foram editados mais de trinta decretos, portarias e projetos de lei voltados para ampliar o acesso da população às armas e munições, sendo alguns deles questionados no STF, sofrendo alterações mesmo suspensos. Argumentos apresentados pelos armamentistas em debates no Congresso Nacional em defesa da propriedade, porte e posse de armas de fogo, tais como: acesso como direito de liberdade, incremento da proteção dos cidadãos, problema restrito às as armas ilegais, entre outros, têm sido contestados por evidências tanto nacionais como estrangeiras.
As taxas de mortes por arma de fogo por 100 mil habitantes, para 2019, mostram que no Brasil a cifra é 14,7 e no DF 8,5. As taxas mais baixas são de SP (3,8); SC (5,3); MG (8,8); MS 7,8. As mais altas, acima de 30, estão em SE, RN e BA. Caso excepcional seria do estado do RJ, geralmente tomado como emblemático nas questões de violência, onde tal taxa é de apenas 13,4 mortes por 100 mil habitantes.
Comentários
Em primeiro lugar cabe lembrar que neste Atlas da Segurança Pública se comparam estados (UF) com o DF. Aqueles são formadas por numerosos municípios, com realidade mais ampla e diferenciada, em termos geográficos, políticos e institucionais, do que com um “estado” como o DF, o qual na verdade não é mais do que uma cidade, portanto com situação bem mais homogênea. Assim, a simples comparação dos números pode não dar um retrato exato da realidade. O ideal seria, portanto, fazer comparações entre o DF e as capitais dos estados, além de outras cidades de porte médio e grande.
Cabe lembrar também, preliminarmente, que no material que analisei em 2018 as fontes de dados eram agrupadas de acordo com a qualidade das informações. O DF, para surpresa minha, não estava na cabeceira, mas sim nem um segundo grupo em termos de qualidade. O Atlas atual infelizmente não especifica tal discriminação qualitativa.
Sobre os homicídios, ainda que se vislumbre elementos para atestar uma redução dos mesmos tanto no país como no DF, há certas questões a serem consideradas, pois podem fundamentar uma visão menos otimista. A primeira delas diz respeito à atual permissividade em relação às armas de fogo patrocinada pelo Governo Federal a partir de 2019. Isso certamente pode facilitar o acesso a armamentos e favorecer a ocorrência de crimes contra a vida, facilitando também tal acesso a criminosos, tendo em vista a comprovada ligação entre os mercados legal e ilegal de armas. Os especialistas chamam atenção para os efeitos duradouros de tal política. Certamente os efeitos negativos disso se estendem ou se estenderão até a nossa cidade.
Outro foco de tensão, talvez de menor impacto aqui no DF, diz respeito ao recrudescimento da violência no campo, que aumentou em 2019, quando foram registrados uma média de cinco conflitos por dia, o maior número de conflitos em 10 anos, com um total de 32 assassinatos. As principais vítimas foram indígenas, sem-terra, assentados e lideranças agrárias. Mais uma vez, especialistas no assunto chamam atenção sobre as injunções do ambiente político-legal, com forte impacto sobre o aumento da pressão no campo.
O terceiro ponto de atenção diz respeito ao uso da violência por policiais, conjugada à ausência de mecanismos institucionais de controle quanto aos padrões institucionais do uso da força, o que propicia não apenas a vitimização de civis, mas também de policiais. Embora os dados de 2018 mostrassem o DF em posição relativamente confortável em relação ao restante do Brasil, não há evidências, até o momento pelo menos, de que tal situação venha se mantendo estável.
Os autores do relatório destacam, ainda, o risco atual de politização das organizações da segurança pública, em particular das polícias militares, colocando em risco a segurança da sociedade, quando não a própria democracia. Aqui no DF a potencialidade de tal risco certamente é relevante, havendo relatos ora de omissão da PM em eventos pró governo, ora de repressão violenta a manifestantes contrários. Neste aspecto, os dados do levantamento anterior, de 2018, mostram o DF com bom desempenho comparativo entre as capitais, com sete mortes em 2017 e apenas duas em 2018. (Mal) comparando, em São Paulo foram mais de 400 mortes e no Rio mais de 500! Naquela ocasião, a tendência geral nas capitais brasileiras era de redução desse tipo de morte.
Ainda neste campo, entre 2017 e 2018 morreram sete agentes policiais no DF, seja por operações policiais ou fora do horário de serviço. No Rio e São Paulo (capitais), foram 97 e 61, respectivamente. Algumas capitais não apresentaram este tipo de óbito, como foi o caso de BH, Porto Alegre, São Luiz, Florianópolis e Rio Branco. Quanto aos civis mortos pelas polícias, em 2018, o DF computava de 0,1mortes por 100 mil (o índice mais baixo no país!), taxa que variou de cerca de 10 em Goiânia (a maior entre as capitais!); 8 no Rio e em Aracaju; 3,3 em São Paulo.
No campo da violência policial, resta saber como estão as coisas agora, com o verdadeiro incentivo miliciano das “excludências de ilicitude” que o Governo Federal propõe para as polícias de todo o país, como parte do pacote eleitoral para 2022.
Ainda nos dados de 2018 foi possível observar a distribuição das taxas de homicídio/100 mil habitantes dos estados brasileiros por faixa, em 2018, formado assim o quadro a seguir, no qual se percebe que o DF até que não estava mal na fita, mas sem dúvida poderia melhorar.
| FAIXA | ESTADO |
| 60-70/100.000 | Roraima |
| 50-60/100.000 | Rio G. do Norte – Alagoas – Ceará – Sergipe –Amapá – Amazonas – Pará – (Acre) |
| 40-50/100.000 | Bahia – Pernambuco – Rio de Janeiro |
| 30-40/100.00 | Goiás – Mato Grosso – Espírito Santo – Paraíba |
| 20-30/100.000 | Paraná – Rondônia – Maranhão – Rio Grande do Sul – Tocantins |
| 10-20/100.000 | Mato Grosso do Sul – Piauí – Santa Catarina – Distrito Federal |
| 0-10/100.000 | São Paulo |
Na questão do trânsito, que será objeto de outro post neste blog, dentro em breve, ao contrário do que apregoa o senso comum, Brasília tinha em 2018 uma posição moderada, embora com taxas muito superiores às de outros países.
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