Nossos dois últimos posts trouxeram informações sobre a mortalidade no trânsito em Brasília, demonstrando que nossa cidade, embora possa melhorar – e muito – seu desempenho nesse aspecto, ainda guarda uma posição de destaque no cenário brasileiro. Isso pode nos confortar, mas não seria o bastante para dormirmos em paz. Temos também que buscar comparações com países que evoluírem neste quesito. Sim! Não precisamos chegar perto de Tóquio, mas Manaus e Belém, com todo respeito, não devem ser nossos parâmetros. Nos dois posts referidos, contudo, pouco se falou sobre as explicações do fenômeno no terreno da psique dos envolvidos, sejam vítimas ou ofensores. Este é um território movediço, sobre o qual muito preconceito anda solto, por exemplo, nas afirmativas de que os motociclistas são sempre imprudentes; de que os pobres dirigem mal; de que as mulheres não são hábeis no volante; de que há pessoas naturalmente propensas a acidentes, seja em casa, na rua ou no trabalho; de que os portadores de distúrbios mentais são usuais causadores de acidentes; na culpabilização das vítimas e assim por diante. Pensando nisso, resolvi trazer aqui algum esclarecimento a respeito. Não se trata de um trabalho novo, pois remonta ao ano de 2009, mas creio que ainda contribui para o debate. Ele intitula-se Impulsividade e acidentes de trânsito e realiza a meta análise de uma série de trabalhos científicos sobre tal assunto. Pretendo retomar a tal tema oportunamente, com a especial ajuda de Henriqueta Camarotti. O trabalho é referenciado em link ao final. Vejamos suas conclusões.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que estamos diante de um fenômeno complexo e multicausal, no qual diferentes fatores de risco interagem, por exemplo: os que influenciam a exposição ao risco, como os econômicos e demográficos; os que influenciam diretamente no envolvimento em acidentes, como velocidade inapropriada ou excessiva, o uso de álcool ou outras drogas; o fato de se ser jovem, usuário vulnerável (como idosos, crianças e pobres); as condições ambientais, por exemplo, escuridão, fatores mecânicos, defeitos e outros problemas relativos à via de tráfego. Há também os fatores que influenciam na gravidade do acidente e das lesões pós-acidente.
Os autores de artigo citado acima chamam atenção para que os resultados da literatura sobre a participação diferenciada de portadores de transtornos psiquiátricos em acidentes de trânsito são totalmente contraditórios. Alguns estudos mostram que pacientes com transtornos da personalidade apresentam até seis vezes mais probabilidades de se envolver em acidentes de veículos. Traços de personalidade que poderiam estar associados à direção perigosa são a irresponsabilidade, a agressividade, o egocentrismo, a impulsividade e a intolerância à frustração. Outro estudo retrospectivo aponta que motoristas com diagnósticos psiquiátricos, por exemplo, transtorno depressivo maior, psicose reativa breve, transtorno de personalidade bordeline, transtorno conversivo, transtorno misto de personalidade, transtorno de personalidade passivo-dependente, fobia social e transtorno de ajustamento não seriam diferentes dos controles quanto a situações como batidas, velocidade insegura, infrações ou não uso de cinto de segurança. Pode ser apenas aparente tal contradição, dadas as características dos estudos epidemiológicos que geralmente são retrospectivos, de amostragem limitada e carentes de dosagens sanguíneas do nível de substâncias psicoativas.
Mas não há dúvidas de que entre os fatores que poderiam influenciar na ocorrência de acidentes de trânsito estão as características da personalidade do motorista, como, por exemplo, controle da hostilidade, tolerância à tensão, ansiedade, egocentrismo e sociocentrismo. Esses fatores foram, sem dúvida, mais preditivos sobre a performance na direção do que eventuais diferenças individuais fisiológicas ou psicofisiológicas. Mas de toda forma, lembram os autores, a impulsividade é um dos traços que tem sido frequentemente associado a comportamentos de risco em geral, à violação de leis de trânsito, bem como aos acidentes automobilísticos.
No entanto, os resultados de estudos sobre a relação entre a impulsividade e os acidentes de trânsito são considerados contraditórios, como trabalhos mostrando associações positivas e também ausência de qualquer relação. Isso poderia ter relação com questões metodológicas e da forma de definir o constructo “impulsividade”. De toda forma, não se constata, na literatura, estudos comparativos marcantes sobre a relação entre impulsividade e comportamento no trânsito.
Concluem assim os autores:
A impulsividade está associada aos comportamentos de risco no trânsito, correr por aventura e infrações. A associação entre impulsividade e mais envolvimento em acidentes é controversa. Diversos estudos apresentados nesta revisão foram observações transversais, em que a falta de controle de confundidores, a ausência de grupo-controle, o uso de instrumentos psicométricos sem validação, entre outros, impõem cautela na análise dos resultados. É necessária a realização de pesquisas com controle das variáveis de confusão, coleta de dados de fontes seguras, como arquivos oficiais (a fim de suprimir-se o relato dos participantes) e mensuração da impulsividade por meio de instrumentos psicométricos validados e que tenham relação com as modernas teorias de personalidade, psicopatologia e neurociências. São de particular interesse os estudos que vierem a utilizar medidas neuropsicológicas de impulsividade de forma complementar ao uso de questionários de autorrelato na medida em que estes são mais suscetíveis à distorção e não representam uma medida direta do fenótipo impulsivo. O uso de concepções modernas de impulsividade relacionadas ao comportamento exploratório, à dificuldade em tolerar frustração ou a postergar gratificações e precipitação ao ato poderá também fornecer informações úteis sobre quais aspectos da impulsividade possam estar mais relacionados tanto ao comportamento de risco quanto ao acontecimento de acidentes no trânsito.
***
Meus comentários: Nos tempos atuais, é preciso lembrar também das questões estruturais ligadas à precarização do trabalho, que veio a dar nas legiões de entregadores de encomendas e comida – os já famosos motoboys – que lideram hoje as estatísticas de acidentes de trânsito no Brasil, tanto em temos de mortalidade como de gravidade de lesões. Mas afora isso, é preciso considerar a gravidade do fenômeno na sociedade atual, responsável pela perda de milhares de vidas em plena etapa produtiva da vida. Estamos diante de uma avalanche que não tem causas simples ou isoladas. O controle passa também, sem dúvida, pelas medidas coercitivas (nas quais alguns enxergam a única solução), mas deve incluir a educação (não apenas para o trânsito, mas para a cidadania), a busca de consenso e convencimento social sobre o problema; a superação da crise moral que o país atravessa, capitaneada pelo bolsonarismo, cujo negacionismo se estende também às questões de trânsito; a resolução da crise econômica e por consequência, das condições de vida e trabalho da população.
***
Ver o texto completo: Araújo MM, et al. / Rev Psiq Clín. 2009;36(2):60-8 (Impulsividade e acidentes de trânsito Impulsiveness and traffic accidents Marcus Maximilliano Araújo1 , Leandro Fernandes Malloy-Diniz2 , Fábio Lopes Rocha3 1 Médico e perito criminal do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). 2 Psicólogo, doutor em Farmacologia Química e Molecular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 3 Psiquiatra e doutor em Ciências da Saúde do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais)

