Covid no Brasil: não-políticas de um não-governo, baseadas em evidências zero…

Recomendar cloroquina para tratar covid; considerar a pandemia uma “gripezinha”; postergar a compra de vacinas; nomear um milico obtuso para Ministro da Saúde; delegar a pastores evangélicos a negociação de verbas públicas; tentar acabar com a atual pandemia por decreto. Ninguém precisa ser opositor do atual governo, basta ser honesto intelectualmente e dispor de algum bom senso, para admitir que as medidas utilizadas pelo bolsonarismo para enfrentar a pandemia de Covid 19 foram, na melhor das hipóteses, equivocadas, mas, além disso, misturaram ideologia e má fé. Com efeito, existe no cenário um valor chamado evidências e as práticas nelas baseadas são essenciais para a fundamentação de decisões clínicas ou políticas na saúde, seja de alcance individual ou coletivo. Vamos considerar que no calor da pandemia, com as incertezas do cenário de emergência, algumas vezes, talvez, as tais evidências, em sua totalidade, não estiveram ao alcance da mão dos tomadores de decisão no Palácio do Planalto e no Ministério da Saúde. Mas nem de longe esta turma procurou vincular suas tomadas de decisão às evidências já então disponíveis. Aliás, ignorou-as solene e acintosamente. Trago aqui hoje uma análise produzida pelo IPEA e respeito de dois focos de atuação do Ministério da Saúde ao longo da pandemia, na qual se conclui que o processo de tomada de decisão do mesmo se viu profundamente marcada pelo desprezo a quaisquer possíveis evidências científicas seja na formulação e/ou na implementação de políticas e ações concernentes. Bem ao contrário, tais decisões estiveram estritamente vinculadas aos valores políticos do governo de plantão. Uma síntese de tal artigo é apresentada a seguir.

Algumas questões-chave levantadas pelo artigo em foco:

  1. Foram analisadas duas ações concretas do governo federal: a opção por recomendações de enfrentamento à pandemia desconsiderando a de adoção das medidas não farmacológicas; e a adoção do tratamento precoce para covid-19.
  2. Ainda que o processo das políticas públicas seja inseparável dos valores políticos, da persuasão e da negociação, acredita-se que, quando se trata de políticas de saúde, as evidências científicas possuem maior relevância que posicionamentos políticos.
  3. Deve-se admitir que o processo de tomada de decisão em saúde não é uma tarefa simples, com momentos em que faltam conhecimentos para a tomada de decisões; outros em que existem conhecimentos suficientes, mas as decisões não são tomadas no tempo devido; e existem aqueles em que as decisões são necessárias mesmo diante de escassas evidências, fazendo-o, algumas vezes, pouco transparente e sistemático.
  4. Tomar decisões em saúde, em sua complexidade, inclui diversos elementos: entre fatores contextuais concretos, como a disponibilidade de recursos materiais e financeiros; decisões judiciais; legados institucionais; ideias; valores; e interesses.
  5. Aspecto crítico é a decisão de gestores sustentada por elementos desconhecidos ou frágeis, de forma não estruturada, baseando-se em opiniões, o que sem dúvida resulta em ineficiência e à ineficácia.
  6. Em adição, políticas públicas de saúde baseadas em evidência permitem a melhoria do desempenho dos sistemas de saúde, além de evitar iniquidades provenientes de políticas mal formuladas, havendo comprovação científica de que políticas de saúde devem de fato incorporar evidências científicas à prática clínica.
  7. A expressão evidência científica implica sua geração a partir de pesquisas científicas, sem embargo de que de estas também podem se diferenciar em seus padrões de qualidade, que precisam respeitar uma hierarquização de tais evidências com rigor metodológico, o que envolve o desenho do projeto, a coleta de dados e a análise de dados.
  8. Sistemas de avaliação da qualidade da evidência estão disponíveis na literatura, citando-se especialmente o denominado Grade (Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation), que visa qualifica as evidências disponíveis em quatro níveis. (a) Alta – quando há forte confiança de que o efeito verdadeiro se aproxima do efeito estimado. (b) Moderada – quando há moderada confiança na estimativa do efeito. O verdadeiro efeito está próximo daquele estimado, mas existe possibilidade de ser substancialmente diferente. (c) Baixa – quando a confiança na estimativa do efeito é limitada, visto que o verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente daquele estimado. (d) Muito baixa – quando há pouca confiança na estimativa de efeito.
  9. Nesse sentido, a evidência dos ensaios clínicos randomizados e controlados geralmente apresenta alta qualidade, enquanto a evidência proveniente de estudos observacionais possui baixa qualidade. Mesmo a opinião de especialistas é caracterizada como nível de evidência muito baixo.
  10. Destaca-se a atuação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec/SUS) como importante ator no uso de evidência para ações e serviços públicos de saúde (mas que apesar disso foi desrespeitada e manipulada pelos sucessivos Ministros da Saúde do atual governo).
  11. São ressaltadas algumas dificuldades ao uso sistemático de evidências para informar a tomada de decisão na produção e na implementação das políticas, por exemplo, o fato de não serem habitualmente utilizada de forma sistemática na elaboração de recomendações em saúde; de sua produção competir com outros fatores no processo decisório; de não-valorização da pesquisa como insumo de informação; do baixo alcance, algumas vezes, da disseminação dos resultados das pesquisas científicas, bem como de nem sempre estarem as evidências científicas à disposição dos tomadores de decisão..

Em síntese, para que os processos das políticas embasadas em evidências possam ser utilizados nas políticas públicas, é preciso reduzir a distância entre a gestão das políticas de saúde e os resultados das pesquisas científicas. Essa aproximação ocorre por meio de um processo conhecido como tradução do conhecimento, que está refletida na interação entre os elaboradores e usuários do conhecimento para facilitar que diferentes mecanismos possam ser utilizados. Trata-se de uma atividade dinâmica e interativa, que inclui a síntese, disseminação, troca de experiências e aplicação ética do conhecimento para melhorar a saúde, fornecer serviços e produtos de saúde mais eficazes, bem como fortalecer o sistema de saúde.

Concluem os autores:

As práticas baseadas em evidência, apesar de não estarem isentas de críticas, contribuem para a fundamentação de decisões clínicas ou de saúde pública (Brasil, 2014). Sabe-se que, em um contexto de pandemia, com as incertezas impostas pelo cenário de emergência sanitária, muitas vezes não estão à disposição dos atores políticos as melhores evidências a serem seguidas. Ainda assim, é fundamental vincular ao processo de tomada de decisão as melhores evidências disponíveis, visto que é de suma importância, nesse contexto, melhorar o desempenho do sistema de saúde e evitar iniquidades provenientes de políticas mal formuladas. A partir dos dois casos de atuação do Ministério da Saúde analisados neste capítulo, percebemos que a ação desse ministério durante a pandemia está marcada pelo esvaziamento das evidências científicas no processo de tomada de decisão para a formulação e/ou implementação de políticas e ações em saúde. Nos processos analisados, foi possível reconhecer que as decisões informadas por evidências deram lugar às decisões estritamente vinculadas aos valores políticos do governo federal. Apesar de reconhecermos que o processo das políticas públicas é inseparável dos valores políticos, da persuasão e da negociação, sabemos da importância das evidências científicas para embasar o processo de tomada de decisão em saúde.

E concluo eu: os tais “valores” políticos do atual governo são o que há de mais desprezível, irresponsável e criminoso. Nada a ver com verdadeiras evidências científicas ou considerações humanísticas.

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Para acessar o texto completo:Michelle Fernandez DOI http://dx.doi.org/10.38116/ 978-65-5635-032-5/capitulo20 in: POLÍTICAS PÚBLICAS E USOS DE EVIDÊNCIAS NO BRASIL: CONCEITOS, MÉTODOS, CONTEXTOS E PRÁTICAS Organizadores(as) Natália Massaco Koga Pedro Lucas de Moura Palotti Janine Mello Maurício Mota Saboya Pinheiro

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Não gostaria de deixar passar em brancas nuvens o levantamento que a jornalista (Valor Econômico) Maria Cristina Fernandes fez em relação ao que chamou de Os 10 maiores feitos do “governo” Bolsonaro :

  1. Brasil: 3% da população mundial e 11% das mortes por covid.
  2. Inflação de abril de 2022: a maior em 27 anos.
  3. O retorno do país ao Mapa da Fome.
  4. Orçamento para a habitação popular: queda de 98%.
  5. Crescimento do registro de armas em 300% e retorno da ascensão estatística das mortes violentas.
  6. Orçamento para combate ao trabalho infantil: reduzido em 95%.
  7. Desmatamento em terras indígenas: acréscimo de 138%.
  8. Recursos para compra de “kit robótico” superior ao gasto com creches, beneficiando áreas dominadas pelos caciques do Centrão
  9. Filho 01 com salário de 25 mil compra casa no Lago Sul por 6 milhões (com que dinheiro?)
  10.  Enquanto isso a Procuradoria Geral da República já engavetou 330 processos contra o Governo.

Para mim, Flavio Goulart, BOLSONARISMO É UM PROBLEMA DE CARÁTER, NÃO DE IDEOLOGIA…

Peço aos leitores que divulguem ,

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