| A revolução digital interessa ao SUS? Os estudos estatísticos sobre riscos de adoecimento na população interessariam apenas aos planos de saúde que faturam com a ausência de doenças entre as “vidas” que cobrem? Ou por outra, a ciência do cálculo atuarial interessaria também aos profissionais de saúde pública? A medicina de dados é apenas uma questão de mercado em saúde? Afinal. a tecnologia da informação é de Direita ou de Esquerda? São perguntas que começam a gritar, embora as respostas para elas nem sempre estejam muito claras na mente dos que defendem uma saúde pública e extensiva como direito a toda a população. Mas precisam ser encaradas de frente. Uma dessas questões, pelo menos, tive a surpresa de ver destrinchada pelo médico e doutor em bioética Luiz Viana Sobrinho, em obra que está sendo relançada agora, intitulada O Ocaso da Clínica, na qual ele alerta que os defensores da Reforma Sanitária não podem voltar as costas para as tecnologias da informação consubstanciadas na chamada medicina de dados. E adverte para o risco de se render e entregar ao setor privado uma ferramenta de enorme potência e alto interesse para o SUS |
| Sua hipótese parte do pressuposto que tais coisas são “vistas de esguelha” pelos defensores da Reforma Sanitária brasileira, argumentando que já é hora de o SUS entrar com força na disputa pelo desenvolvimento das tecnologias médicas e hospitalares, para utilizá-las de acordo com seus princípios coletivos de saúde. Do contrário, adverte, o nosso sistema público acabará perdendo espaço para a abordagem mercadológica que tenta combater. Trata-se de um debate cada vez mais atual, haja vista a recente investida do Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, notório porta voz daqueles segmentos que entendem a saúde dentro de uma lógica mercadológica, ao sustentar a criação do chamado open health, um sistema de compartilhamento livre de dados de saúde dos brasileiros com empresas de planos de saúde, hospitais, farmácias, organizações sociais e laboratórios. Tal proposta é considerada ilegal por juristas, mas foi devidamente festejada pelas empresas lucrativas que atuam no setor. Para Viana, o tal open health se encaixa como uma luva no contexto atual da medicina de dados. Com críticas contundentes ao atual governo na gestão da pandemia, o autor enxerga, todavia, um futuro possível de incorporação de tais tecnologias pelo SUS, de forma a estarem disponíveis de forma justa a todos os brasileiros. Afirma ele que é tal modelo de política de Estado que deve liderar uma verdadeira revolução digital da saúde, o que certamente não será fácil, mas está nas mãos do SUS reverter o quadro. Viana vê tais sinais presentes no cenário da saúde desde a década passada, mesmo antes do desenvolvimento de algoritmos mais complexos baseados no machine-learn, dentro do qual metas e práticas de gestão passam a ter peso mais decisivo nas decisões clínicas. Isso implicaria em reduzir toda a potencialidade do conhecimento médico à mera objetividade de dados, fazendo com que se aplicassem a extração e gestão desses dados em proporções gigantescas, de forma totalmente inédita até agora, o que é de altíssimo interesse das corporações médicas empresariais e mesmo estatais, como seria o caso do sistema de saúde da China, que já vem fazendo isso. No Brasil o tal open health vem sendo apresentado, com o beneplácito do governo atual, na pessoa de Queiroga, como verdadeira proposta de política sanitária inspirada diretamente pelo mundo financeiro, o qual, aliás, auferiu lucros enormes nos últimos anos, mesmo em plena vigência da pandemia. E este ponto de vista é veiculado pelo MS como aprimoramento e melhoria da dinâmica de concorrência no mercado de planos de saúde, demonstrando assim, com clareza, que o que se quer é a oportunidade de crescimento para melhores negócios, totalmente alinhada com uma dinâmica da de tecnologias de informação e de medicina dados. *** Pensando bem, eu já havia pressentido tal tipo de “distanciamento temático” por parte dos intelectuais do SUS desde muitos anos atrás, quando os planos privados de saúde começaram a ganhar corpo no Brasil, inclusive na ocupação de espaços políticos através de seus lobbies de defesa no Congresso Nacional. Na época, início dos anos 90, eu fazia mestrado em Saúde Pública na Fiocruz e já me perguntava quando é que me ensinariam alguma coisa sobre a ciência do chamado cálculo atuarial. Logo vi que não seria naquela ocasião –e nem nunca, aliás – porque ali ninguém entendia daquilo, mas só da epidemiologia clássica, que trata da incidência das doenças transmissíveis e não transmissíveis. Cálculo atuarial, para quem não sabe, é a base matemática e estatística dos planos de pré-pagamento em saúde e dos seguros em geral, através da qual se determina o risco e o retorno financeiro possíveis neste tipo de empreendimento. Conhecer essas coisas certamente nos teria feito críticos mais apurados das trapaças perpetradas pelas empresas de saúde, e não apenas seus eternos (e ineficazes) demolidores ideológicos. *** Leia a entrevista completa do autor https://outraspalavras.net/outrasaude/luiz-vianna-a-necessaria-lideranca-do-sus-na-revolucao-digital/ E mais, sobre o livro em foco https://www.scielo.br/j/csp/a/cVnmVFQCGDXDhnsYfBf6gjQ/?lang=pt *** Eterno amanhecer… Registro aqui, com satisfação, o lançamento do livro O LONGO AMANHECER DO SUS: REFLEXÕES PARA O SUS REEXISTIR, organizado por Fabiano Tonaco Borges, professor e pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF), no qual estão presentes pelo menos duas figuras históricas do movimento progressista em saúde, como Nelson Rodrigues dos Santos (“Nelsão”), Gastão Wagner, meus amigos pessoais. O título é uma rev(f)erência a Celso Furtado, que tem obra com o mesmo nome, sobre a situação política e econômica brasileira após a Nova República. No livro em foco se procura juntar diferentes gerações de pesquisadores para refletir sobre a luta para que o SUS se aproxime cada vez mais do modelo que foi idealizado nos anos 1980, pela Reforma Sanitária. Eu, modestamente, também tenho opiniões sobre isso, nem sempre em sintonia com o main-stream do pensamento progressista em saúde, que eu respeito e no qual, aliás, também me incluo. Sobre isso seguem abaixo links com posicionamentos meus sobre tal questão. · https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/11/20/a-luta-pelo-sus-continua-comentarios-a-um-texto-de-nelson-rodrigues-dos-santos/ · https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/12/06/entre-o-pensamento-desejoso-e-a-dialetica-do-exagero/ · https://veredasaude.com/2018/04/03/crepusculo-de-deuses/ ![]() Acesse também: O longo amanhecer do Sistema Único de Saúde: reflexões para o SUS reexistir |


