O sonho de Dom Bosco: o povo de rua no DF ainda procura pela tal fonte de “leite e mel”

A Codeplan-DF nos apresenta os resultados de uma pesquisa sobre o perfil da população em situação de rua em nossa cidade, que teve como objetivo quantificar e diagnosticar o perfil da população em tal situação no Distrito Federal, visando subsidiar proposições e políticas públicas alinhadas às necessidades dessa gente. Assim, foi realizada não só uma contagem das pessoas em situação de rua que estivessem no espaço das vias públicas, em serviços de acolhimento institucional e em comunidades terapêuticas, mas também a caracterização, por amostragem, do perfil de tais pessoas. Esta pesquisa vem suprir uma lacuna de 11 anos sem estudos de tal natureza, já que o último destes, realizados pela Universidade de Brasília, data de 2011. O fato é que nesta última década muita coisa mudou na cidade – e para pior – considerando que nos últimos dois anos e meio tivemos uma pandemia, na qual a necessidade de isolamento trouxe novos impactos para a população em situação de rua. Afinal, se a ordem geral é para ir para a casa, para onde iriam as pessoas que não dispõem de moradia? E é em tal cenário que a população que ocupa os espaços da rua saltou aos olhos de todos nós, mesmo daqueles que não estavam acostumados – ou de alguma forma se recusavam – a enxergá-la. As constatações mais simples de tal estudo são que a população em situação de rua é heterogênea, está em uma situação de pobreza e sem vínculo com uma moradia fixa. Contudo, o que o senso comum diz sobre tais pessoas nem sempre é preciso, mostrando a pesquisa, por exemplo, que tais pessoas, no geral, estão em situação de insegurança alimentar, querem sair da situação de rua e buscam um emprego para conseguir essa mudança. O leitor poderá acessar o texto completo do relatório no link ao final, mas aqui vai uma síntese dos achados do mesmo, além de alguns comentários meus. Nada mais distante daquele sítio onde jorraria “leite e mel”, segundo o sonho atribuído a São João Bosco, ainda no século XIX e que faz parte do imaginário de Brasília desde os anos de sua fundação – sonho enganoso, como se vê.

  1. Perfil sociodemográfico: A pesquisa identificou 2.938 pessoas em situação de rua, sendo o Plano Piloto a região com maior percentual (24,8%). A maioria das pessoas (65,2%) localizava-se na rua no momento da realização da coleta dos dados e se autodeclarou parda (50,4%) pardas ou preta (20,7%). As pessoas que se declararam brancas somaram 14,7% e indígenas totalizaram 11,6%. Sobre o sexo de nascimento, predominou o masculino com 80,7% ao lado de 19,3% pessoas do sexo feminino. A maior proporção de pessoas está na faixa de 31 a 49 anos (47,1%) seguida da de 18 a 30 anos (22,0%). Os dados relativos ao sexo de nascimento e à raça/cor são próximos aos encontrados por outras pesquisas realizadas em outros locais do país com essa população (São Paulo, 2021).
  2. Tempo de rua e vínculo com moradia: Quase 40% das pessoas estavam em situação de rua há dois anos ou menos (38,2%), enquanto 29,2% delas estavam há mais de dez anos. Esses dados indicam uma tendência de permanência das pessoas por longos períodos no espaço da rua e, por outro lado, de um contingente considerável da população que está nessa situação há pouco tempo, podendo evidenciar consequências sociais e econômicas ocasionadas pela pandemia de Covid-19. Do total, 87% não têm vínculo com moradia fixa e, entre os que têm, 7,7% afirmaram que a localização da moradia é o Distrito Federal.
  3. Escolaridade e trabalho: A maioria das pessoas estudou ou está estudando um dos anos do ensino fundamental e apenas 28,8% alcançaram o ensino médio. 51,7% vieram para o Distrito Federal em algum momento de duas vidas, sendo a maioria natural (94,7%) de outros estados do Brasil e 2,4% vindos de outros países. O motivo mais comum da vinda para a capital foi a busca por trabalho (44,5%). O trabalho mais comum realizado por elas é a catação de material reciclável, indicada como trabalho principal por 33,6% e como uma das atividades realizadas para obter renda por 53,8%. Menos da metade afirmou receber algum benefício governamental (45,4%) e o benefício mais comumente mencionado foi Auxílio Brasil, o antigo Bolsa Família (83,4%).
  4. Renda: Considerando o salário-mínimo vigente de R$1.212,00 em 2022, a renda das pessoas varia entre: até R$ 100,00 (12,4%); entre ¼ e ½ salário-mínimo (R$ 303,00 e R$ 606,00) (33,8%) e; entre ½ e 1 salário-mínimo (R$ 606,00 e R$ 1.212,00) (21%). • Saúde e uso de álcool, cigarro e outras drogas: 37,7% das pessoas afirmaram ter depressão ou transtornos mentais e 35,7%, algum problema de saúde bucal.
  5. Em termos de saúde, unidades básicas de saúde foram o equipamento público de saúde mais acessado (42,1%). 58,0% das pessoas afirmaram ter vida sexual ativa e desses, 73,5% disseram usar camisinha quando faz sexo. O uso de álcool, cigarro e outras drogas é um traço comum às pessoas entrevistas no período anterior à chegada à situação de rua e o período atual. Antes de ir para a rua, 79% das pessoas usavam álcool, 62,6%, cigarro e 36,5% maconha, haxixe ou skank. Já no espaço da rua, 72,3% afirmaram usar cigarro, 65,9% álcool e 36,8%, crack. 66,5% delas disseram fazer o uso de pelo menos uma dessas substância diariamente.
  6. Vida na rua (segurança alimentar, acesso à internet e percepções sobre a própria vida): Uma a cada três pessoas afirmou ter um aparelho celular (35,7%) e pouco mais da metade do total acessa a internet, sendo mais frequente o acesso do próprio aparelho (20,6%). Mais de 40% das pessoas (41,3%) ficaram pelo menos 24 horas sem comer na semana anterior à pesquisa. A forma mais comum de acesso à alimentos é a doação, seja por restaurantes e lanchonetes (40,8%) ou de grupos que distribuem comida na rua (33,1%). A fonte de água é similar, sendo mais comum obter no comércio (26,7%). Boa parte das pessoas afirmou acessar o banheiro no Centro Pop (28,0%). A maior parte das pessoas não percebe nenhum lado bom de estar na rua (55,7%) e atribui à falta de segurança e o medo o lado negativo mais importante (40,7%). Geralmente, as pessoas se reconhecem como uma pessoa em situação de rua (72,9%) e se sentem insatisfeitas ou muito insatisfeitas com suas condições de vida (28,0% e 25,4%, respectivamente). 87,7% delas pensam em sair da rua sempre ou às vezes e, para tanto, precisariam ter um emprego ou renda suficiente (62,3%). •
  7. Serviços de acolhimento institucional já foram utilizados por 36,4% das pessoas. Para a maioria delas, o serviço prestado é bom (38,6%) ou ótimo (27,5%). A principal oferta dos serviços de acolhimento percebida pela população entrevistada é deixar de viver em situação de rua (30,4%) e se sentir mais seguro (24,0%). 38,0% das pessoas não veem problema algum no serviço ofertado.
  8. Presença de crianças e adolescentes: Do total de pessoas encontradas, 244 eram crianças e adolescentes, sendo a maioria formada por crianças (74,4%). Do total, 45,9% são nascidos no Distrito Federal, 39,5% são pardas e não realiza atividades para obter renda (86%). Por outro lado, 40,7% das que estão em idade escolar, nunca frequentaram a escola e 42,0% está matriculada e frequente.

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Meus comentários (FG)

O assunto é sobremaneira complexo e sua análise deve fugir de simplificações do tipo daquelas que o senso comum e os preconceitos anti-pobres divulgam.

Trata-se de situação cujo aumento de incidência é visível, por exemplo, naqueles pequenos acampamentos de barracas de lona que se viam pela cidade, basicamente na altura do setor de Embaixadas Norte, junto à UnB e hoje se espalham por extensões muito mais vastas, por exemplo, ao longo da via L3 Norte e outros lugares.

A ausência de estudos e pesquisas sobre o tema, diante do panorama de governos cada vez mais alheios às questões da pobreza e da perda de qualidade de vida, é bem um indicativo de como a questão vem sendo tratada nas políticas públicas do DF.    

Certamente, do ponto de vista sanitário, as consequências são também drásticas, ainda mais diante do cenário da pandemia, mas também pela pobreza reinante e pela acumulação de problemas de saúde já existentes entre essas pessoas, além do atendimento mais precário em função dos impactos da atual crise sanitária sobre os serviços locais de saúde, associado à precariedade crônica dos mesmos. 

A heterogeneidade da situação não indica que possam haver soluções simplistas, do tipo “devolução à origem”, apelo à caridade da sociedade ou construção de abrigos temporários, além da minimização das evidências e da espera de soluções dadas pelo passar do tempo. Entre as pessoas que vivem na rua há certamente os que perderam, materialmente falando, não só casa, como emprego, vínculos sociais e segurança existencial, mas também migrantes que vieram ter ao DF esperando melhorar de vida, além de pessoas portadoras de quadros psíquicos complexos que vêm na rua sua única possibilidade de subsistência, diante de um mundo familiar e social hostil.

Soluções para tal problema passam, naturalmente, pela conjunção de políticas públicas, nas áreas de assistência social, moradia, saúde, educação e articulações interfederativas, sendo este último aspecto pouco contemplado nas ações dos governos. A questão da segurança pública, ou seja, o uso da polícia para reprimir invasões ou outras formas de bloquear a circulação de pessoas é não só ineficaz como secundária no caso e, aliás, deveria estar restrita aos livros de história que registram a República Velha, pré 1930, quando diziam os políticos e a classe dominante que “a questão social é apenas uma questão de polícia”.  

Existe, todavia, na política pública para este tipo de problema uma marcante contradição, que é a de apenas garantir conforto para tais pessoas sem lhes retirar do ambiente da rua, a não ser parcialmente, nas noites frias por exemplo – o que é normalmente feito pelo Estado e pela ação caritativa – e ao mesmo tempo a necessidade de encontrar e prover para tais indivíduos ambientes de moradia dignos e adequados às suas condições psicológicas, econômicas e sociais. Políticas de renda mínima e emprego, por exemplo, seriam essenciais.

Uma coisa é certa: o tempo, por si só, não resolverá o problema, ao contrário. As condições de sobrevivência no Brasil, particularmente para os mais pobres, nunca foram boas e só têm feito piorar nos últimos 4 ou 5 anos. A destruição política, institucional, econômica e ética perpetrada pelo atual governo e sua caterva fisiológico-evangélico-verde-oliva, de instintos genocidas, com foco puramente eleitoreiro e monetário, além de obcecado pela suposta insegurança das urnas eletrônicas – tudo muito distante de qualquer preocupação com a Democracia e o bem estar social – nos augura um futuro tenebroso, esta é a verdade. “E daí?” diriam os delinquentes assentados nos poderes da nossa pobre República.

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Acesse mais informações sobre a pesquisa aqui…>>> https://www.metropoles.com/distrito-federal/codeplan-distrito-federal-tem-quase-3-mil-pessoas-em-situacao-de-rua#:~:text=A%20Companhia%20de%20Planejamento%20do,4%25%2C%20do%20sexo%20feminino.

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O sonho do Dom Bosco

Algumas palavras sobre o famoso sonho de Dom Bosco, de que muito se fala até hoje e no qual estaria contemplada uma antevisão otimista de Brasília. Alguns acham que, embora tendo tal sonho existido de fato, ele foi trazido à luz de forma oportunista por assessores de JK, no afã de convencer a Igreja Católica, na figura do Cardeal Primaz do Brasil, Dom Carlos de Vasconcellos Motta, a apoiar a construção da nova capital, considerando ser o prelado um influente conservador, ligado à turma da UDN de Carlos Lacerda, engajada em forte campanha contra a construção da cidade. Não deve ser por acaso que os Salesianos, congregação fundada por Dom Bosco, foram agraciados com substancial e já então valorizada gleba de terreno na W3 Sul, onde ergueram colégios e igreja. Mas na verdade, o tal sonho é um primor de imprecisão, ao descrever um sítio situado entre 15 e 30 graus de longitude, sem precisar se ao Sul ou ao Norte, e sem determinar a latitude, ou seja, que poderia se materializar em lugares tão diferentes como a América Central, o Norte da África, a Indochina, ao Norte. Ou então, ao Sul, numa faixa de terra onde estariam a Bolívia, parte do território brasileiro, todo o Sul da África e boa parte da Austrália (onde, aliás, uma capital planejada também foi construída). Mas o sonho do Santo erra mesmo é quando descreve uma “grande civilização, Terra Prometida, onde correrá leite e mel”, além do mais, de uma “riqueza inconcebível”. Certamente não foi aqui que isso veio a acontecer, na saúde e no acesso à moradia, particularmente.

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