Já indaguei antes aqui: por onde e como andará a política de saúde inaugurada nos anos 90 e que já foi responsável pelo atendimento a mais de 100 milhões de brasileiros, a Estratégia de Saúde da Família? Praticamente não existem menções a ela no site da Secretaria de Saúde aqui do DF e nem na página do Ministério da Saúde, a não ser afirmativas genéricas e pouco atualizadas sobre seu conteúdo e alcance. A SF ainda vive, por certo, mas é flagrante o descaso com que vem sendo tratada no atual governo, com uma enxurrada de portarias burocráticas que a desfiguram a cada dia, até não chegar a ser sequer mencionada entre as políticas vigentes. É preciso conhecer os acontecimentos relativos à geração de tal estratégia de atenção à saúde, particularmente aqueles que vão do final do século XVIII até o momento atual, período genericamente conhecido como modernidade. Cabe recordar, todavia, que qualquer política social é sempre um fenômeno complexo e determinado de forma múltipla, com componentes de legitimação, reprodução econômica, mobilização social, racionalidades humanistas, ideológicas, libertárias, partidárias, religiosas. Aliás, questão social é, acima de tudo, um fato político entranhado em uma vasta gama de mecanismos representativos, de ações estatais, do produto das relações entre Estado, sociedade e mercado, gerando dinâmicas próprias e específicas. Conhecê-la significa explorar não só de seus fundamentos, conteúdos e orientações ideológicos e políticos, mas também as implicações resultantes das interações e dos embates entre as forças políticas em cada momento histórico.
Muito se fala sobre a importância vital da Atenção Primaria à Saúde (APS), também conhecida no Brasil como Atenção Básica, para os sistemas de saúde, pois está mais do que provado que ela representa uma estratégia que os torna mais resolutivos, mais eficazes, mais participativos e, principalmente, mais organizados. Aqui em Brasília ela costumeiramente abrilhanta os programas de quase todos os candidatos, o que não significa, entretanto, que venham a cumprir o que pressurosamente prometem em seus discursos. Mas não custa lembrar que embora não existam sistemas de saúde perfeitos, as evidências internacionais demonstram, não é de hoje, que os sistemas que se organizam a partir de uma base robusta de atenção primária, logram obter melhores resultados em termos de equidade e crescimento nas despesas em saúde. Isso sem esquecer que outros fatores sempre estão em jogo na saúde, tais como renda, educação, meio ambiente, habitação, acesso a água e saneamento, os padrões de comportamento etc. Assim, os sistemas de saúde jogam papel importante, mas com limites.
Não custa nada definir o que vem a ser uma APS que realmente mereça tal nome. Assim, não basta, naturalmente, ter uma placa na entrada da Unidade de Saúde dizendo que ela é isso ou aquilo. Placas aceitam qualquer coisa, inclusive absurdos. A APS verdadeira deve ter, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) ações de saúde, no âmbito individual e coletivo; (2) abrangência que inclua a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, além da manutenção da saúde; (3) trabalho em equipe, com médico, enfermeiro e pessoal auxiliar, inclusive agentes comunitários de saúde; (4) foco da ação dedicado a populações de territórios bem definidos e explícitos; (5) responsabilização sanitária formal de tal equipe; (6) domínio de tecnologias de elevada complexidade, embora de baixa densidade: (7) capacidade de resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância no território.
Além disso, não é demais recordar, a APS representa o contato inicial dos usuários com o sistema de saúde, orientando-se por princípios tais como universalidade, acessibilidade, coordenação do cuidado, vínculo; continuidade, integralidade, humanização, equidade e participação social.
Não custa nada trazer tais princípios à luz, porque tem muita coisa por aí chamada de “Atenção Primária à Saúde, tomando este “santo nome” em vão, ou seja, sem necessariamente merecê-lo. Os motivos são os mais diversos: receber repasses do Ministério da Saúde, arrebanhar votos, iludir usuários – ou quem sabe, ignorância mesmo. Mas o fato concreto é que existem em toda parte equipes nas quais falta o médico ou este muda a cada semana; os ACS estão em número reduzido, se é que presentes; a área de abrangência não está definida; faltam equipamentos básicos como espéculo, balança e mesmo um mapa da área e abrangência; as pessoas não estão treinadas para o exercício da APS etc. Vamos combinar: coisas assim, não são e nem podem ser APS – simples assim!
Mas mesmo com as vantagens que apresenta, e com toda uma trajetória história honrosa e reconhecida em todo o mundo civilizado, por que seria que a APS ainda não decolou de verdade, seja em Brasília ou no restante do território nacional? Não há dúvida de que temos excelentes experiências no Brasil, algumas em curso, outras em decadência, mas de toda forma ainda a expressividade da APS como real ordenadora do sistema de saúde no Brasil está muito longe de se cumprir. Quais seriam as razões para tanto?
A primeira razão é que a APS em sua forma completa somente foi implantada no Brasil em alguns casos especiais, predominado adaptações diversas da proposta, entre as quais podem ser citadas: equipes sem médicos; equipes sem ACS; mal desempenho ou má formação de profissionais; má gestão; áreas de abrangência indefinidas ou exorbitantes; localização em “ilhas” rodeadas de desorganização; caráter não ordenador do sistema, tentativas de mix com o atendimento tradicional etc. vem daí o chiste de que trata-se de uma estratégia “10P”: “práticas precárias para pessoas pobres, periféricas, para político por placa”. O mais grave é coisas assim passam a fazer parte da paisagem e ninguém mais repara no erro.
Além disso, a APS, correta ou incorretamente implantada, é alvo de preconceitos dos dois lados da mesa. Os médicos a consideram uma especialidade pobre, de baixa tecnologia, que “qualquer um” pode exercer. Os pacientes não só absorvem tais disposições como consideram meramente burocrática uma instância pela qual são obrigados a passar quando na verdade o que desejam é um especialista, sentindo às vezes como autêntica perda de tempo o fato de serem obrigados a passar pelo generalista. A APS mal gerida e mal praticada acaba dando resposta a este tipo de distorção, ou seja, encaminhando pacientes aos especialistas sem maior critério, reforçando a ideia de que ela é, de fato, dispensável.
É frequentemente confundida com a atenção básica tradicional, aquela dos “postinhos” de saúde, que com ela convive até hoje, mas que em muitos lugares não é a modalidade dominante. Mas que se lembre: na modalidade antiga não há fixação territorial definida; a figura do ACS não está presente; visitas domiciliares não fazem parte da rotina; o trabalho é centrado no médico e não na equipe; o trabalho da enfermagem é meramente “paramédico”; o processo de trabalho é receptivo-passivo e não proativo; a promoção da saúde não faz parte da prática geral; o planejamento raramente é de fato realizado localmente e com indicadores ali produzidos; não há participação real dos usuários nas decisões relativas ao sistema local; as tecnologias típicas da APS não são utilizadas ou são negligenciadas.
A APS é geralmente tida como solução barata, no padrão “10P” (ver acima), o que não é confirmado pela realidade. São necessários investimentos, sim: para estruturas adequadas de atendimento, para tecnologias de informação e comunicação, instrumentos de supervisão e apoio, além de, principalmente, para qualificação das pessoas que nela vão atuar. Neste ponto, é bom insistir em algo que o senso comum às vezes nega: a APS requer o domínio de tecnologias sofisticadas, embora não sejam “densas” do ponto de vista material (hardware).
Outro problema, entre tantos, é que a qualificação do pessoal para todos os níveis geralmente é falha. Os ACS não recebem preparação adequada, mas apenas cursos superficiais e de curta duração, já que impera o pressuposto de que sua função é de pouca relevância. Os médicos e enfermeiros não são preparados em seus cursos de graduação para exercer as funções diferenciadas e especializadas que a APS exige, se rendendo muitas vezes ao estatuto social de preconceito quanto a tal atividade. Os gestores também não são preparados para atuar em uma área de fortes dinâmicas e exigências de decisões rápidas e eficazes, dentro de um terreno de tecnologias de extensiva complexidade.
Outra questão é a da associação do conceito de APS com o conceito de “redes”. São irmãos siameses, de fato! Com efeito, o modo habitual de organizar a saúde tem uma APS que não se comunica com os demais níveis, assim como com os sistemas de apoio ou logísticos. Os serviços de saúde atuam apenas de forma fragmentada, reativa e episódica, além de focada na doença e não na saúde. Os resultados disso são precários, mas mesmo assim isso é bastante valorizado pelos políticos, gestores, profissionais de saúde e também pelos usuários. Sistemas de atenção à saúde assim tão fragmentados precisam receber doses maciças de integração e coordenação interna, ou seja, se converterem em redes de atenção à saúde, definidas, conforme as palavras de Mendes (2011), como: <<Organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela APS – prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e segura e com equidade –, com responsabilidades sanitária e econômica pela população adscrita e gerando valor para essa população>>.
Modernidade sanitária é isso! Mas infelizmente, ainda estamos longe de algo assim no Brasil; no DF nem se fala. A triste rotina de um paciente por aqui é a de um “permanente recomeço” onde quer que ele se dirija, já que os vários serviços não se comunicam e nem há decisão política, gente especializada ou domínio de tecnologia para que isso aconteça. Isso não tem custo apenas humano, em termos de perda e tempo, sofrimento e risco para a vida, mas também é muito oneroso do ponto de vista financeiro e material.
Em suma, uma APS que não esteja inserida dentro de uma rede pode ser comparada à situação de alguém que compra um telefone celular e quando chega em casa descobre que ali onde mora não há disponibilidade de sinal que lhe permita fazer chamadas. Pode servir para jogos, escutar música e outras tarefas, mas não para aquilo que importaria mais. Lamentavelmente, contudo, em nossa realidade, ao faltarem ou serem muito frágeis as ditas redes assistenciais, não há como a APS se firmar, de forma que, em variedades assim tão capengas, ela pode não acrescentar real valor à assistência à saúde da população.
Por essas e por outras razões é que se poderia afirmar que, apesar de todo seu potencial de adicionar valor à assistência à saúde, a Atenção Primaria à Saúde ainda constitui uma prática paralela e até mesmo estranha ao sistema de saúde em nosso país. Isso tudo apesar de seu enraizamento na história dos melhores sistemas de saúde no mundo, conforme discutido no texto anexo.
Para encerrar, deve ainda ficar claro que em termos do desenvolvimento das políticas e modelos de atenção à saúde existem cenários em mutação e novos atores em jogo, no Brasil e no resto do mundo. As análises sobre tal tema, como a presente, correm o risco de estarem permanentemente desatualizadas, por não incorporarem novos aspectos da realidade. O sistema de saúde, que até há poucos anos voltava-se apenas para as populações urbanas vinculadas ao mercado de trabalho, atinge hoje novos contingentes de usuários: rurais, indígenas, minorias, portadores de necessidades especiais, populações marginalizadas e tantos outros. A política nacional brasileira de atenção básica em saúde (PNAB), na qual está a Estratégia de Saúde da Família, com sua expansão marcante, com seus componentes de equidade, integralidade e participação – mesmo chocando-se, particularmente no atual momento, com tradições políticas, profissionais e culturais desestabilizadoras – poderia de fato estar abrindo mais um desses novos cenários desconhecidos até há poucos anos atrás e, da mesma forma, revelando novos atores neles instalados. Era o que se esperava até alguns anos atrás, embora venha sendo negado ou postergado pela realidade do país.
A atenção primária made in Brazil, como a ESF, poderia até constituir um produto genuíno da criatividade brasileira e mesmo um produto de exportação. O que pode de fato diferenciá-la e qualificá-la é o modo como está sendo implementada e gerida; a capacidade formuladora e crítica de seus atores; as circunstâncias que os rodeiam; as tradições políticas e institucionais; a história; a força da ação política e das tradições comunitárias e até mesmo, quem sabe o concurso de fatores “imponderáveis”. Mas da maneira como a APS e boa parte das políticas públicas e sociais bem sucedidas estão sendo sucateadas e vilipendiadas no Brasil, corremos o risco de que, já no próximo governo (e que seja outro!), seja necessário reconstruí-la, porém a partir de trágicos escombros.
***
E vamos falar da tal Modernidade Sanitária – ver texto anexo, de minha autoria (FAG).

