O que garante a sustentabilidade da gestão em saúde?

O que faz uma obra humana perdurar no tempo? Para as pirâmides do Egito, o Taj Mahal ou os monumentos de Brasília a resposta é relativamente simples: pedra e cal (ou cimento) – além de muito suor humano claro. Mas para realizações, digamos, imateriais, como as iniciativas de governo, no caso, da saúde, a resposta é mais complexa e elaborada. Eu me preocupo com isso, pois em meus anos de prática de gestor público, seja em município, região ou no nível federal de governo, infelizmente vi muita coisa bem arranjada e consequente em um momento ser totalmente desfigurada ou mesmo extinta em outro. Lembro-me, por exemplo, quando coordenei a edição de uma publicação do Ministério da Saúde, no final da primeira década do século, de ter ido atrás de uma experiência exemplar e inédita de remuneração de médicos e equipes de saúde baseada em valor, ou seja, na mensuração do alcance real em termos de benefícios para a população da prática dos profissionais, diferenciando assim, para mais, as equipes com melhor desempenho. Pressurosamente liguei para o município em que a experiência fora desenvolvida algum tempo antes, para colher mais informações. Todavia, qual não foi a minha surpresa (e minha tristeza) ao constatar que havia mudado a administração municipal e nada mais daquilo restava de pé. Aliás, a pessoa que me atendeu, titular da área da saúde, relutou em tocar no assunto, mostrando-se constrangida ao ser indagada sobre o mesmo. No princípio da conversa chegou a me dizer que não acontecera nada daquilo ali, mas depois acabou me confirmando que a ideia fora abandonada pela administração do momento. Todo mundo sabe de casos assim. Tais histórias, infelizmente, se repetem em toda parte, neste brasilzão grande, atrasado e bobo…     

Em meu estudo sobre o Programa (ou Estratégia) de Saúde da Família, que deu origem à minha tese de doutorado na Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz (ver link), no início da década de 2000, tive oportunidade de aprofundar tal questão, ou seja, de tentar explicar como alguns castelos de pedra se transformam em casebres de areia, enquanto outros ganham solidez capaz de lhes garantir sustentação duradoura (falar em perene aqui seria um tanto arriscado, dadas as tradições da gestão pública em saúde nosso país).

Assim, aquelas seis experiências que estudei, consideradas sólidas e bem-sucedidas, até aquele momento pelo menos, mostravam algumas características comuns, particularmente por terem abrigo em ambientes institucionais nos quais as condições de gestão do SUSjá se encontram amadurecidas e que, além do mais, as práticas de assistência e gestão também se mostravam com perfil mais avançado, configurando uma gama ampliada de responsabilidades individuais e coletivas; preventivas e curativas; técnicas e políticas; locais e regionais; imediatas e remotas. Além disso, acumulam evidências de que resultam de um somatório de práticas inovadoras e bem-sucedidas de assistência e gestão, não só no campo da saúde, mas também em outras áreas de governo e, mais ainda, em um cenário de ações inserido em um ambiente onde predominavam decisão política forte, continuidade administrativa e política, qualificação técnica significativa, com engajamento consciente dos servidores nos projetos de mudança.

Mas havia mais coisas tangíveis, como sua articulação com redes de contatos externos, nacionais ou mesmo internacionais, de natureza formal ou informal, configurando um cenário de cosmopolitismo político e sanitário e de ampla visibilidade externa, graças não só à rede de contatos referida, como ao esforço local de envolvimento no cenário nacional das discussões e da produção científica relativas ao sistema de saúde. Nelas despontavam frequentemente lideranças jovens, altamente articuladas fora das fronteiras municipais, qualificadas empiricamente e, sobretudo, portadoras de traços de personalidade carismáticos e voluntaristas além de serem militantes partidários assumidamente imbuídas de uma ideologia política. Além das ações subsidiadas pelos conteúdos essenciais da Reforma Sanitária e do SUS, já despontavam no horizonte tendências de incorporação de uma nova pautade discussões mais eloquentes, como por exemplo, qualidade de vida, vigilância e promoção da saúde, ética, humanização, com um discurso especialmente alinhado com a democratização e a participação social.

Havia também um outro lado naquelas histórias, dado pela sua aceitação comunitária embora ainda marcada por posturas de “gratidão” e reconhecimento, não necessariamente por reivindicações mais proativas. Mas de toda forma ficara claro que melhores programas e práticas em serviços de saúde tinha a ver com uma sociedade melhor organizada, seja no plano político geral ou em relação a temas e setores específicos, como, por exemplo, moradores, portadores de patologias e outros grupos de interesse – configurando o que se denominou de comunidade cívica e capital social. No caso das injunções derivadas de uma ainda frágil política de recursos humanos, já se observava, entretanto, sinais de uma extraordinária capacidade local de articulação para a solução de problemas inerentes a tanto. Ainda neste aspecto, a chamada questão médica continuava a ser um dos aspectos problemáticos e propensos ao desenvolvimento de dificuldades tardias.

Tais experiências tiveram, ainda, como característica marcante o fato de representarem um efeito “espelho”, ou seja, de se converterem em pontos de atração da visão externa sobre a realidade local, cumprindo um importante papel pedagógico e de cooperação técnica horizontalizada. Mas tiveram seu peso, também, certos fatores culturais, seja aqueles ligados aos usuários ou aos profissionais, influenciando às vezes negativamente o desenvolvimento das propostas, exigindo, ao mesmo tempo, esforços materiais e intelectuais em sua compreensão e na sua abordagem.

Isso tudo me permitiu arriscar algumas diretrizes para a explicação do sucesso de uma experiência de gestão em saúde, como fora a implementação do PSF naqueles municípios. Ou, em outras palavras, que lições (“boas práticas”) foi possível apreender com elas. Aqui vai uma lista relativa a tanto, uma tentativa de sistematização sem caráter exaustivo, dada a riqueza e a complexidade dos processos em jogo, na qual se insere apenas aquilo que parece derivar da maioria dos casos, deixando de lado aspectos considerados demasiadamente particulares ou de aplicação muito restrita.

  • Boa condução é muito importante e, entre seus atributos, podem ser arrolados capacidade de tomada de decisões, liderança, carisma, espírito empreendedor, embasamento ideológico, além de qualificação técnica e continuidade.
  • A boa condução teria pouco a oferecer se não contasse com boas equipes técnicas, aspecto que pode ser traduzido por qualificação de conhecimentos, tradição de discussões em saúde, base ideológica, capacidade empreendedora associada a militância, sintonia com o projeto político, aceitação da liderança, organização e inserção em entidades representativas.
  • Boas práticas sociais também possuem um lugar de destaque, traduzidas: por equilíbrio e sintonia entre as propostas de participação originadas do governo e as da sociedade; associação sinérgica entre as noções de responsabilidade pública e de direito à saúde; bem como produção de efeitos concretos como resultado de tais práticas.
  • Como decorrência, a presença de um bom governo, que se traduz por práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além do campo da saúde, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública.
  • Boa articulação externa ou a prática de um cosmopolitismo político e sanitário, de preferência direcionada a interlocutores seletos individuais ou institucionais, que sejam capazes de oferecer respaldo técnico e cobertura política ao desenvolvimento dos projetos e programas de governo.
  • Boa implementação programática, o que significa investimento em padrões efetivamente substitutivos dos modelos de atenção, buscando a neutralização da competição e do antagonismo com os elementos estruturais e ideológicos dos velhos regimes de práticas.
  • Desenvolvimento de inovações, seja do ponto de vista gerencial ou assistencial, diferenciando-as das meras novidades, mas tendo como diretriz norteadora a ousadia e o destemor frente às possibilidades de erro e reversão.
  • Busca decidida da sustentabilidade das práticas desenvolvidas, não só em termos financeiros e de estrutura e processos, mas também nos planos cultural, simbólico e político, resultando no necessário enraizamento das experiências no imaginário da comunidade de  usuários e dos tomadores de decisão.
  • Efeito espelho: articulação e da difusão da experiência local entre interlocutores externos, diferenciados ou não, configurando a responsabilidade por uma pedagogia do exemplo fundamental no processo de construção de políticas públicas.

Observação final: isso se aplicou, na origem, apenas a experiências de implantação e manutenção de Estratégias de Saúde da Família, em momento mais favorável no cenário da saúde no Brasil (transição FHC – Lula), mas certamente teria implicações também para abrir caminhos explicativos sobre os problemas de sustentabilidade das experiências de gestão pública em geral. Lamentavelmente, no momento atual, tudo na saúde parece tocado por algum Midas inverso (ou perverso), dada a incúria e a irresponsabilidade do governo federal e de seus seguidores aqui e ali. Mas vai passar. Outubro vem aí…

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Leia mais: MINHA TESE DE DOUTORADO NA ENSP/FIOCRUZ (2002)

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Covid-19 no Brasil e no mundo

E por falar em sucesso (e insucesso) de gestões públicas, para quem ainda NEGA fatos verdadeiramente escandalosos, um estudo preliminar internacional, que permitiu comparar os resultados obtidos país por país, com dados até novembro de 2021, mostra que há diferenças enormes entre os efeitos da pandemia de Covid no Mundo e no Brasil de Bolsonaro. Assim, no planeta bolsônico, houve, entre outras irresponsabilidades, total desprezo pelo vírus, recomendação de tratamentos sem base científica, desautorização e demissão de ministros, prorrogação da compra de vacinas. Daí a tragédia documentada em números e a conclusão que ela foi, de fato, causada pelo energúmeno que alguns iguais chamam de “mito”. Comparem, no quadro abaixo, o que ocorreu no Brasil com as médias mundiais. Fica bem claro que muitos brasileiros morreram por causa das medidas adotadas (ou omitidas) pelo atual governo. O que já vem sendo dito e, toda parte agora é comprovado por números. Calcular exatamente quantas das mortes por covid podem e devem ser colocadas nas costas do desgoverno atual é difícil, mas acredita-se que supere as 50 mil, ou seja, número mais do que suficiente para condenar Bolsonaro, Pazuelo, Queiroga e cia por crime de responsabilidade, quem sabe homicídio ou genocídio.

 GLOBALBRASIL
TOTAL DE MORTES ACUMULADAS15.100.000720.000
MORTALIDADE ACUMULADA POR COVID-19 (POR 100.000 HAB)194,5  332,1
INFECÇÕES ACUMULADAS3.800.000.000  143.000.000
 TAXA DE INFECÇÕES ACUMULADAS (POR 100.000 HAB)49,166
PORCENTUAL CUMULATIVO DE INFECÇÕES43,959
 PROPORÇÃO CUMULATIVA DE INFECÇÕES6,915,5
 PROPORÇÃO CUMULATIVA DE HOSPITALIZAÇÕES1,2%1,2
PROPORÇÃO CUMULATIVA DE MORTES0,40,5

Acesse a matéria completa: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estudo-quantifica-a-tragedia-causada-por-bolsonaro-na-pandemia-de-covid-19-no-brasil,70004101713?utm_source%3Dpocket_mylist%26

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