Aperfeiçoar o SUS não significa negar o SUS

Acabo de ler um interessante artigo, no qual são discutidas questões relativas à eficiência e à sustentabilidade do gasto público com saúde no Brasil, com autores brasileiros com projeção internacional na área de Economia da Saúde (ver link). Eles demonstram que mesmo com as inegáveis conquistas das últimas décadas, o SUS ainda enfrenta problemas estruturais muito sérios. O senso comum e as estatísticas mostram que o Brasil gasta pouco com a saúde, mas a pergunta fundamental é: gasta bem ou gasta mal? Em termos comparativos, os gastos públicos com saúde no Brasil são menores que os de países com sistemas de saúde com caraterísticas semelhantes, embora em termos per capita cresçam a taxas maiores do que o PIB. A questão central é a da eficiência de tal gasto, nem sempre devidamente considerada, já que a ineficiência presente acarretaria, estima-se, prejuízo ao SUS de quase R$ 40 bilhões por ano, afetando principalmente os componentes de média e alta complexidade. Ganhos de eficiência podem ser de fato alcançados no sistema , por exemplo, com o aprimoramento de escala na estrutura e operação de hospitais; com a integração dos serviços em redes de atenção; conferindo densidade e melhor distribuição da força de trabalho; aprimorando os mecanismos e incentivos entre pagamentos e resultados em saúde, além da incorporação de inovações gerenciais, por exemplo, parcerias público-privadas. Tudo isso tendo fazendo da Atenção Primária à Saúde o vetor organizador do sistema. Nem tudo isso é objeto de consenso, claro, principalmente entre os defensores mais radicais do papel do Estado na gestão do sistema. Mas uma coisa é certa: a sobrevivência do SUS, em suas ideias matrizes, dependerá certamente de profundas melhorias na eficiência e na qualidade dos serviços que o mesmo oferece à população do país.

Vai aqui uma síntese de tal artigo (disponível na internet – ver link ao final)

Nas últimas três décadas, o Brasil construiu e consolidou um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) representou um avanço nas políticas sociais no país, ampliando o acesso a serviços de saúde a milhões de brasileiros até então sem cobertura. A criação do SUS resultou em uma expansão considerável da rede pública de prestação de serviços de saúde, com resultados notáveis em termos de cobertura e acesso aos serviços de saúde e de melhoria dos indicadores de saúde da população brasileira (Gragnolati et al., 2013). Como resultado, o Brasil alcançou em 2017 a maior cobertura de serviços essenciais de saúde entre os 10 países mais populosos da América Latina, com um índice de cobertura de 79% de sua população.

Um dos pilares da expansão da cobertura por serviços tem sido a atenção primária de saúde (APS) por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Entre 1998 e 2020, o número de equipes de saúde da família (SF) aumentou de 4,0 mil para 43,3 mil.2 O aumento no número de equipes foi acompanhado por aumento na cobertura da ESF, alcançando 63,6% do total da população brasileira em 2020. Mais recentemente, com os incentivos ao cadastro implementados pelo Programa Previne Brasil, o número de pessoas cadastradas nas equipes de ESF chegou a mais de 145 milhões em 2020. O aumento da cobertura e do acesso foi, em certa medida, acompanhado pelo aumento da produção de serviços. Considerados os serviços de atenção ambulatorial do SUS, onde está incluído um volume considerável de ações de APS, verifica-se que, entre 2008 e 2016, houve um crescimento de 32% no volume per capita de serviços produzidos, embora tenha ocorrido uma redução de 26,2% entre 2016 e 2020, voltando a produção a níveis anteriores aos do ano 2008. Essa tendência, particularmente no ano 2020, deve ter sido afetada pela crise pandêmica, que resultou em redução da demanda (e da oferta) por serviços de saúde regulares.

No entanto, a expansão da oferta de serviços de saúde não teve efeitos proporcionais na redução dos gastos em saúde das famílias. Recente evidência aponta que, em média, os gastos com saúde respondem por 13,0% do consumo total das famílias, variando entre 12,1% para o decil de consumo mais baixo e 14,0% para o decil mais alto de renda. No orçamento familiar, a saúde corresponde à quarta maior despesa, após habitação (36,6%), transporte (18,1%) e alimentação (17,5%). Dados da última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2017-2018 do IBGE estimam que 33,4% das famílias brasileiras incorrem em gastos catastróficos em saúde (37% entre os mais pobres) e que mais de 10 milhões de brasileiros entram na faixa de pobreza anualmente devido aos gastos diretos com saúde. Isso corresponde a 4,7% da população brasileira, ou seja, representa um percentual maior do que o observado globalmente (2,5%) e/ou entre os países da América Latina e Caribe (1,8%). Esses dados refletem que ainda existem dificuldades de acesso aos serviços de saúde.

Esses resultados corroboram evidências anteriores que demonstram ineficiências no sistema público de saúde do Brasil. Embora as restrições de recursos, resultado dos baixos gastos públicos, sejam um dos motivos da consolidação limitada do SUS, o sistema opera com níveis relativamente altos de ineficiência. Caso essas ineficiências fossem sanadas, o SUS poderia obter melhores resultados de saúde mesmo sem mais recursos, o que é particularmente importante no contexto da crise fiscal brasileira. Em resumo, os principais desafios relativos à eficiência enfrentados pelo SUS são: (i) Arranjos institucionais que, ao descentralizar ao nível municipal, resultaram em fragmentação e deseconomias de escala; (ii) Organização da prestação dos serviços destinados a curar patologias agudas, com limitada coordenação entre os provedores e os níveis de atenção (primária, secundária e terciária). Os serviços hospitalares e de diagnóstico estão distribuídos de forma desigual e, muitas vezes, são pequenos demais para operar com eficiência e garantir qualidade; (iii) Mecanismos ineficientes de pagamento aos provedores dos cuidados de saúde (hospitais, clínicas etc.).

O problema é que as formas de pagamento atuais não são baseadas nos custos reais da prestação dos serviços, quase não são relacionadas aos diagnósticos clínicos e tampouco são ajustadas pela gravidade dos casos. A Autorização de Internação Hospitalar (AIH), mecanismo usado para pagar hospitais que têm contrato com o SUS, consiste no pagamento de um valor preestabelecido vinculado aos procedimentos. A AIH contribui apenas modestamente para o controle de custos, porque os montantes pagos são seriamente distorcidos. Frequentemente, os hospitais são pagos por meio de orçamentos por rubrica baseados em padrões históricos de gasto, que não remuneram qualidade nem contenção de custos. Na APS, os prestadores são principalmente assalariados; (iv) Oferta inadequada e uso sub ótimo de elementos essenciais dos sistemas de saúde. Por exemplo, existem situações de densidade populacional inferior a um médico de APS por mil habitantes. Novas tecnologias são muitas vezes incorporadas para atender às situações específicas, como demandas judiciais, sem qualquer avaliação de eficiência econômica.

Propor uma agenda de eficiência ao SUS é essencial para consolidar e expandir os avanços dos últimos 30 anos. Alcançar melhores resultados dos gastos com saúde é um desafio global. A maioria dos países enfrenta desafios para prover serviços de saúde eficientes e sustentáveis para sua população. A experiência dos países que consolidaram seus sistemas de saúde com reformas periódicas mostra que a consolidação do SUS depende da capacidade de adotar medidas de modernização e reformas estruturais, considerando a qualificação dos gestores, a ciência e o diálogo entre as múltiplas perspectivas dos agentes envolvidos na melhoria do sistema. O progressivo controle da pandemia da COVID-19, com as medidas sanitárias adotadas e o avanço da vacinação, representa uma oportunidade única para o debate inclusivo sobre as conquistas e os desafios do sistema público de saúde brasileiro e opções para seu aperfeiçoamento. Este debate é importante tanto para melhorar a atenção à saúde, garantindo serviços que satisfaçam às necessidades e expectativas da população brasileira, como para o equilíbrio das contas públicas, na medida em que a saúde tem um dos maiores orçamentos do governo brasileiro (R$ 304 bilhões para os três níveis de governo em 2019, R$ 128 bilhões apenas para a União em 2019). Mantido o padrão atual de crescimento nominal dos gastos, a conta do SUS alcançará mais de R$ 700 bilhões em 2030.

Uma agenda de eficiência para o SUS tem que enfrentar desafios estruturais, muitos deles exacerbados durante a pandemia da COVID-19, por exemplo: (i) Racionalizar a oferta e a gestão dos serviços ambulatoriais e hospitalares para maximizar escala, qualidade e eficiência e incentivar o acesso ao sistema e o poder ordenador da APS; (ii) Melhorar a integração e a coordenação dos cuidados dentro do SUS, por meio da implantação de redes integradas de atenção à saúde (RAIS); e (iii) Aumentar o desempenho dos serviços e da força de trabalho em saúde com expansão e melhor distribuição da oferta de profissionais, qualificação sistemática, mudanças nas relações contratuais de trabalho e introdução de tecnologias e incentivos para aumentar a produtividade dos profissionais. Tudo isso para aumentar a eficiência, a efetividade, e a qualidade dos serviços do SUS, de forma a garantir a sua sustentabilidade a médio e longo prazo.

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Sem o SUS, não há saúde para todos. Assine nossa petição e ajude a fortalecer o SUS.

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Nós, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco -, tomamos a iniciativa de promover uma campanha em defesa e pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde – SUS. Somos milhares de pesquisadores, professores universitários, profissionais de saúde que atuam no SUS e estudantes comprometidos com a garantia do direito à Saúde para toda a população do nosso país.  Os últimos dois anos demonstraram que um sistema de saúde não deve ser direcionado apenas à parte mais vulnerável da população. Na pandemia, todos fomos cuidados e acolhidos pelo SUS. Com a campanha de vacinação, estima-se que em 2021 foram evitadas 219 mil mortes. Outras tantas vidas foram salvas por profissionais de saúde em hospitais do SUS. Porém, o SUS é muito mais que isso e não se limita ao enfrentamento da pandemia. O SUS nasceu para fazer o direito à Saúde ser uma realidade em todo o país e para todos, mas sem deixar de compreender que as pessoas são diversas e, portanto, possuem necessidades distintas. Ele é assim porque foi uma conquista da sociedade brasileira, fruto da mobilização de milhares de pessoas antes e durante a Assembleia Nacional Constituinte, em 1988. Nenhum governo nos deu o SUS de presente.  Porém, nos últimos 30 anos, o dinheiro investido pelo Governo Federal em Saúde tem sido insuficiente para cobrir todas as despesas do sistema. Se a realidade fosse outra, certamente, o SUS faria ainda mais e melhor. Mesmo sendo crucial para as nossas vidas, o SUS não costuma ter a devida importância nos planos de candidatos. Enquanto isso, avançam projetos que buscam desmontar o sistema. Caso isso aconteça, estarão diretamente ameaçadas a vida e a saúde de mais de 80% da população brasileira. É por isso que afirmamos: Sem o SUS, não há saúde para todos. Devemos defender e proteger o SUS de quem quer o seu desmonte, mas precisamos ir além. Para fortalecer o sistema, precisamos que os governos aumentem o investimento em Saúde. Tanto a defesa do SUS quanto o seu fortalecimento dependem da eleição de presidente, governadores, senadores e deputados que tenham esse compromisso. Desejamos que a Saúde deixe de ser um privilégio, mas seja, de fato, um direito de qualquer brasileira e brasileiro. Para isso, contamos com você! Apenas com a mobilização de muitos poderemos fazer a nossa voz ser ouvida.  Queremos um futuro com Saúde e exigimos que candidatos à Presidência da República, aos governos estaduais, ao Congresso Nacional e às Assembleias Legislativas apoiem oito propostas que visam fortalecer o Sistema Único de Saúde. SEM O SUS, NÃO HÁ SAÚDE PARA TODOS!

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A invasão evangélica na Saúde Mental

Trago aqui matéria publicada na Revista Questão de Ciência (ver link ao final), que trata de assunto absolutamente pertinente ao momento brasileiro atual, quando um projeto de poder que mistura militarismo, autoritarismo e religião (não necessariamente nesta ordem) vem passando por tentativas de ser implementado no Brasil. Trata-se da questão do uso/abuso de drogas, objeto de respostas simplistas por aqui, como se isso fosse possível. Com efeito, o foco tem sido, nos últimos anos, na defesa da abstinência, com a criminalização e estigmatização dos usuários, o que está no cerne da atuação das chamadas “comunidades terapêuticas” (CTs) dedicadas ao atendimento de pessoas com uso problemático de drogas. Elas são em grande parte mantidas e administradas por organizações religiosas e têm sido alvo de diversas denúncias de violações dos direitos humanos de seus “internados”, ao mesmo tempo que os gastos públicos com sua utilização explodem. De olho nisso, Paula Napolião e Giulia Castro, pesquisadoras da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, realizaram um profundo estudo sobre tais instituições, destacando que elas são geralmente inseridas em denominações religiosas e que vêm conquistando espaço neste campo, graças, sobretudo, à sua aproximação com órgãos públicos e à sua inclusão privilegiada nas políticas de drogas nacionais e locais, com a consequente possibilidade de obter recursos do Estado, em um processo repleto de tensões e ambivalências, com ações mais superficiais do que estruturais, além do mais  inclinadas a conservar o sentido de tais espaços de difusão de princípios morais e religiosos tradicionais, como se isso fosse necessário e suficiente para o processos de cura ou recuperação desses pacientes.

Por fim, as autoras destacam que ainda que as comunidades terapêuticas possam ser o único recurso à disposição de famílias pobres para atendimento de pessoas com uso abusivo de drogas, não há evidências de que o “tratamento” oferecido por elas – baseado na abstinência total, no isolamento social, na imposição de fé e na “reforma moral” – seja eficaz, tampouco há meios de medir seus resultados, já que ele está longe de pautar-se por critérios técnicos de avaliação. Advertem as autoras: “Não se trata – é importante lembrar – de um questionamento das boas intenções que certamente animam operadores das CTs, muitos deles voluntários. Trata-se de questionar se o Estado deve investir recursos para promover ‘tratamentos’ altamente controvertidos, oferecidos por instituições privadas de origem confessional e de legalidade duvidosa, ou garantir a todos os cidadãos o acesso a serviços públicos de qualidade, diversificados e capilarizados, que respeitem direitos e necessidades individuais. A menos que se revogue a Constituição de 1988, e que o Brasil se transforme num Estado teocrático, a segunda opção é seguramente a mais adequada”.

 Veja a matéria completa em: Comunidades terapêuticas: a “cura”, e o dinheiro público, nas mãos de Deus | Questão de Ciência (revistaquestaodeciencia.com.br)

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