No Brasil, já não se adoece e nem se morre como antigamente…

Não sou tão velho, mas ainda na minha infância, nos anos 50, havia varíola na própria vizinhança de minha casa em Belo Horizonte e eram frequentes e temidas, além lamentadas em prosa, verso e reportagens de jornal, esta e outras doenças que matavam e inutilizavam muitos brasileiros, principalmente crianças, entre elas também o sarampo, o tétano, as gastroenterites, a esquistossomose. Hoje elas fugiram das estatísticas. Mas o que foi feito delas, afinal? Porém, antes de cantarmos vitória, devemos lembrar que surgiram outras moléstias, algumas delas ainda mais terríveis. A Covid 19 está aí para nos lembrar. Temos que entender tais mudanças nos cenários de doenças à luz não só do perfil demográfico da população, mas também das transformações que estão ocorrendo nas percepções das pessoas, nos fatores ambientais e também na estrutura das instituições de saúde. O certo é que no futuro – se é que não já agora – pode -se prever sérias implicações para os cenários e práticas de saúde, bem como para a estrutura dos sistemas de saúde como um todo, revelando mesmo uma premente necessidade de novos modelos de prestação de cuidados.

Assim, do ponto de vista demográfico, ou seja, das mudanças no perfil das populações, é clara a tendência, observada na maioria dos países, e mesmo no Brasil, para uma população com indivíduos idosos em proporções crescentes, com diminuição da participação dos jovens e, ainda, o desenvolvimento de uma nova estrutura familiar, marcada pelos novos papéis da mulher na sociedade e no mercado de trabalho, bem como pela existência de mais e mais pessoas que já se retiraram da vida produtiva e que necessitam de estruturas sociais e de um sistema de saúde que respondam às necessidades especiais próprias de sua condição de idosos.

Por outro lado, quanto aos aspectos da transição epidemiológica, ou seja, da mudança do perfil das doenças hoje amplamente reconhecida e discutida, constata-se o acúmulo das doenças crônicas e degenerativas; a reemergência ou o permanecimento de doenças endêmicas, tais como a dengue e a malária; a situação da epidemia de AIDS, ainda em alta e sem evidência de controle no curto prazo e, ainda, a alta prevalência das diversas condições de doença derivadas dos estilos de vida insalubres (fumo, vida sedentária, por exemplo) ou resultantes da interação predatória entre o homem e o meio ambiente.

Se não bastassem os problemas derivados do processo de transição demográfica e epidemiológica, como vistos acima, os desafios aos sistemas de saúde tornam-se ainda mais complexos e problemáticos devido aos obstáculos políticos e institucionais ainda existentes nos países mais pobres (e mesmo entre os mais ricos). Tais dificuldade são caracterizadas pela conjunção de fatores negativos variados, tais como a carência de recursos financeiros e, a consequente  disputa acirrada pelos mesmos; a elevação progressiva dos custos dos serviços médicos, em boa parte, fruto da incorporação desmedida de tecnologia de alto custos; a cultura de hospitalização tão difundida e praticada nos sistemas de saúde; a existência de um quadro profissional limitado e pouco adequado, seja do ponto de vista qualitativo ou quantitativo em relação às necessidades da população, entre outros. Sem falar no negacionismo e na irresponsabilidade de certos governos…

Neste cenário, as doenças agudas e infecto contagiosas, tão temidas em outros tempos, são agora substituídas por um cenário de doenças crônicas e não transmissíveis (DCNT). A Covid parece ser um ponto fora da curva, mas mesmo ela já se mostra com um marcante potencial de cronificação.

Neste sentido, achei importante trazer aqui os resultados do recente Covitel, Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis, realizado pela Vital Strategies e pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com financiamento e apoio de instituições parceiras (ver link ao final, inclusive documento completo). Este é um inquérito de âmbito nacional, com representatividade para o Brasil e para as cinco grandes regiões do país. Seus achados compõem um retrato da magnitude do impacto dos principais fatores de risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) na população adulta, com 18 anos ou mais. Através do Covitel foram coletadas informações sobre atividade física, alimentação, saúde mental, estado de saúde, hipertensão arterial e diabetes, além de outras relacionadas com o consumo de álcool e de tabaco, comparando o período pré-pandemia com o primeiro trimestre de 2022, quando as entrevistas foram realizadas e as vacinas contra a covid-19 já estavam amplamente disponibilizadas para a população. Desenvolvido em um contexto de pandemia, este inquérito traz resultados relevantes para a construção de conhecimento sobre a influência da covid-19 nos fatores de risco para as DCNT no Brasil. São informações robustas e atualizadas, acrescentando insumos oportunos para a análise da situação de saúde da população em um momento ímpar que, muito provavelmente, trará implicações para a saúde das pessoas nos próximos anos e até mesmo nas próximas décadas. Isso certamente traz contribuições para o fortalecimento da capacidade analítica de gestores de saúde, no sentido de orientar prioridades e ações para a sua atuação frente à morbimortalidade por DCNT no país.

Vai aí uma síntese dos achados, em termos comparativos entre os períodos pré e durante a pandemia.

TABAGISMO

Observa-se que, em todas as regiões, homens fumaram mais que mulheres e que a região Centro-Oeste apresentou a maior desigualdade, enquanto a região Sul exibiu a menor desigualdade neste aspecto. Em todas as regiões, as desigualdades por sexo reduziram, mais marcadas nas regiões Norte e Nordeste. No quesito da escolaridade, observa-se um padrão em que os menos escolarizados possuem maior prevalência de tabagismo comparados aos mais escolarizados. As desigualdades por escolaridade parecem ter apresentado reduções mais sutis do que as desigualdades por sexo.

ALCOOL

Os homens consomem regularmente e abusam mais do álcool do que as mulheres. As maiores diferenças por sexo são vistas na região Centro-Oeste, e as menores, na região Norte. O consumo regular apresentou redução das desigualdades por sexo em todas as regiões. Em termos de escolaridade, as desigualdades no consumo regular não apresentam um padrão específico. Por exemplo, no Nordeste, o consumo regular é maior nos menos escolarizados, enquanto nas outras regiões, é maior naqueles com 9-11 ou 12 ou mais anos de estudo. Já o consumo abusivo aumenta à medida que aumenta a escolaridade, com exceção da região Centro-Oeste.

ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL

A prevalência de consumo regular de verduras e legumes foi maior no sexo feminino do que no sexo masculino, com exceção da região Norte no período pré-pandemia, embora a diferença seja virtualmente nula. Maiores diferenças foram encontradas nas regiões Centro-Oeste e Sudeste. Houve redução das desigualdades, pela maior redução da prevalência entre mulheres. Já ao avaliar desigualdades por escolaridade, percebe-se que o consumo regular é menor entre menos escolarizados. Houve aumento das desigualdades, pois o consumo reduziu mais nesse mesmo grupo de pessoas menos escolarizadas quando comparados os períodos pré-pandemia e primeiro trimestre de 2022.

Padrão semelhante foi observado com frutas. Mulheres têm maior consumo, e as desigualdades reduziram por uma queda maior nas mulheres nos períodos pré-pandemia e primeiro trimestre de 2022. O Nordeste apresentou maior prevalência e maior desigualdade no período pré-pandemia. Ao avaliar esse consumo regular de frutas por escolaridade, um padrão claro não é observado. Pode-se visualizar que as desigualdades aumentaram nos dois períodos avaliados, pela maior queda naqueles com menor escolaridade.

Em relação a refrigerantes e sucos artificiais, os homens consomem esses produtos mais do que as mulheres, com redução das desigualdades nos períodos estudados. Na região Nordeste, houve uma inversão do padrão: no primeiro trimestre de 2022, as mulheres passaram a consumir mais refrigerantes e sucos artificiais do que os homens. O consumo foi maior sempre nos grupos com menor escolaridade (de 0-8 ou 9-11 anos de estudos). Também houve redução da magnitude das desigualdades no período estudado.

OBESIDADE

Homens mostram mais excesso de peso do que mulheres em todas as macrorregiões. Na obesidade as regiões apresentam padrões distintos: é maior em homens no Sul, Norte e Centro-Oeste e maior em mulheres no Nordeste e Sudeste. Maiores desigualdades são observadas nas regiões Nordeste e Sul. Em termos de escolaridade, o padrão de desigualdade para excesso de peso não é muito claro. Quando se avalia a obesidade, os menos escolarizados possuem maior prevalência do que os mais escolarizados, sendo as diferenças maiores no Nordeste e no Sudeste.

ATIVIDADE FÍSICA

Evidencia-se que mulheres são menos ativas no tempo livre que os homens. Houve redução da prevalência geral, mas esta foi mais acentuada nas mulheres, evidenciando-se assim um aumento das desigualdades por sexo. Em termos de escolaridade observa-se um padrão relativamente linear: maior escolaridade, maior prevalência de atividade física no tempo livre. As desigualdades parecem ter permanecido inalteradas, quando comparamos os períodos pré-pandemia e primeiro trimestre de 2022, embora com redução na prevalência geral desse indicador.

Observa-se ainda que homens são mais inativos que mulheres, exceto no Centro-Oeste. As desigualdades parecem ter permanecido estáveis, com exceção da região Norte: maior aumento de inatividade física entre os homens, o que ocasionou também um importante aumento das desigualdades. Ao avaliar desigualdades por escolaridade, no período pré- -pandemia, os mais escolarizados eram mais inativos, com exceção da região Nordeste. Já no primeiro trimestre de 2022, os menos escolarizados tiveram maior prevalência de inatividade física.

HIPERTENSÃO ARTERIAL E DIABETES

Mulheres referiram maior diagnóstico de hipertensão do que homens, com aumento de desigualdades em todas as regiões, por maior aumento no sexo feminino. O grupo menos escolarizado apresenta maior prevalência do que os mais escolarizados. As desigualdades apresentaram ligeiro aumento quando comparados os períodos pré-pandemia e primeiro trimestre de 2022. Na diabetes, as mulheres referiram maior diagnóstico de diabetes do que homens, com aumento de desigualdades em todas as regiões. A região Norte apresentou um aumento expressivo na prevalência entre mulheres, sendo o maior aumento de desigualdades quando comparadas todas as regiões. Ao avaliar o padrão por escolaridade, o grupo menos escolarizado apresenta maior prevalência do que os mais escolarizados. Houve ligeiro aumento das desigualdades quando comparados os períodos pré-pandemia e primeiro trimestre de 2022.

DEPRESSÃO

Mulheres referiram mais depressão do que homens em todas as regiões, observando-se também um aumento das desigualdades neste campo, sendo que a região Sul apresentou sempre a maior magnitude de desigualdades. Os menos escolarizados exibiram maior prevalência, e nas outras regiões, o oposto. Parece ter havido uma redução das desigualdades por escolaridade, com o aumento nacional da depressão, quando comparamos o período pré-pandemia e primeiro trimestre de 2022.

AUTOPERCEPÇÃO DE SAÚDE E DE DOENÇA

Homens relataram melhor percepção de saúde do que mulheres em ambos os períodos avaliados. Porém, a prevalência de saúde percebida como boa ou muito boa por mulheres caiu mais do que em homens, aumentando as desigualdades. No período pré-pandemia, as desigualdades eram maiores no Nordeste, enquanto no primeiro trimestre de 2022 essas desigualdades eram maiores no Sudeste. Uma boa percepção de saúde diminuiu conforme diminui a escolaridade. Percebe-se também um aumento das desigualdades por escolaridade em todas as regiões.

Em termos de suspeita de infecção, infecção confirmada e vacinação completa para covid-19, as diferenças não são evidentes. No esquema vacinal completo, importantes desigualdades são percebidas, sendo que as mulheres referiram maior cobertura vacinal completa do que os homens. A menor diferença foi notada na região Sudeste. Em termos de escolaridade as diferenças se mostram grandes, pois maiores suspeitas de infecção e infecção confirmada entre os mais escolarizados constituem padrão que se repete no esquema vacinal completo. Na vacinação, maiores diferenças foram observadas para as regiões Norte e Sul.

Acesse o documento completo do Covitel clicando no ícone a seguir.

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