Ainda é tempo de pandemia..

Mais de 700 mil vidas perdidas no Brasil e o patético troglodita do Palácio do Planalto propaga que fez a coisa certa, entre uma ou outra referência à cloroquina e um lampeiro beija-mão concedido ao Conselho Federal de Medicina. Mas há coisas mais sérias no cenário. Por exemplo, matéria divulgada no The Lancet (não se trata de uma publicação comunista…), no qual se propõe novas estratégias para conciliar políticas de saúde e de desenvolvimento sustentáveis no período pós pandemia, que começa a raiar no horizonte. Seu conteúdo, naturalmente, se coloca em sentido totalmente contrário ao que divulgam as autoridades brasileiras, em seu notório charlatanismo mal informado e sobretudo mal-intencionado, que multiplica nossa vergonha perante o mundo. Ali se fala da construção de um futuro pós-pandêmico, no qual se deverá promover e proteger a saúde de todos os cidadãos, dentro da pressuposição de que os eventos atuais têm muito a ensinar. Os autores, especialistas de uma ampla variedade de origens institucionais e geográficas, foram reunidos pela Organização Mundial da Saúde, e se alinham a uma agenda ambiciosa para alcançar um futuro saudável e seguro para todos. Eles começam falando de como crises como os ataques de 11 de setembro de 2001, as consequências do conflito e da migração, a crise financeira de 2007 e a pandemia COVID-19 afetaram a situação social no mundo. A pandemia, como se sabe, se espalhou rapidamente entre os países, embora nem todos tenham sido afetados da mesma forma.

Para começar, afirmam que resultados mais desejáveis provaram ser ligados à liderança e a políticas baseadas em evidências, em vez de ideologia e preconceitos. Na pandemia COVID-19 as grandes questões foram e continuam sendo: os responsáveis ​​responderam rápida e decisivamente? Eles seguiram a ciência? Será que eles investiram nos modernos sistemas de saúde pública que, no passado, atuaram com relativo sucesso em surtos diversos, tais como SARS, Ebola, Zika?

Assim, citam três elementos-chave da resposta dos países do G20 à crise financeira de 2007, que poderiam ser aplicados à presente pandemia também: (1) planos de ação claros; (2) apoio político, com pessoas e instituições consequentes em torno das decisões; (3) geração de consenso para dar legitimidade ás ações. Só assim, segundo eles, poder-se-ia enfrentar uma “trindade impossível”, formada por soberania, integração econômica e democracia. E assim questionam: quais seriam as decisões mais corretas atuais da comunidade internacional em relação à recuperação pós-pandemia?

Em primeiro lugar, enfatizam, é necessária uma compreensão clara da ameaça. Como em grande parte das doenças infecciosas emergentes, o SARS-CoV-2 surgiu na interface entre humanos, animais e o ambiente natural. Decorre daí a filosofia e a abordagem denominada One Health, com foco em tal interface, que deve ter atenção geral.

Consequência imediata de tal abordagem é a maneira como a saúde pública é organizada costumeiramente, com os Ministérios da Saúde, em sua maioria, tendo atuação totalmente separada daqueles da Agricultura e do Meio Ambiente. No entanto, uma vez que o SARS-CoV-2 saltou a partir de espécies na natureza, o virus explorou, por assim dizer, as fraquezas das sociedades, afetando principalmente as comunidades já desfavorecidas. A pandemia revelou novos determinantes da saúde, como a exclusão digital, ao mesmo tempo que evidenciou o valor de muitos trabalhadores essenciais neste campo. O perigo crescente da corrupção e dos ataques cibernéticos também ficou evidente durante esta pandemia.

Consequência disso é a necessidade de se criar um modelo novo e abrangente dos determinantes da saúde para o século 21 e implementar o conceito de One Health – Uma Saúde, aplicável a todos os níveis da sociedade. Para tanto, são necessárias regras gerais, a serem seguidas por que todos os países. Mesmo que já exista um Regulamento Sanitário Internacional em vigor, torna-se necessário a emergência de um novo e específico Tratado de Pandemia.

Aliás, experiências positivas de tratados anteriores sobre temas como destruição da camada de ozônio, mudanças climáticas e biodiversidade, já apontaram para a importância de envolver a sociedade civil, incluindo a academia e as organizações não governamentais, em todas as etapas. Assim, um tratado de tal conformação, para ser eficaz, terá que ser verdadeiramente global. Os governos devem estar dispostos a permitir que a OMS, guardiã lógica de tal acordo, tome todas as medidas que julgar necessárias para garantir o cumprimento das disposições do mesmo.

Mas para que isso aconteça, são necessários compromissos e ações para corrigir as fraturas econômicas e sociais que deixaram nossas sociedades tão suscetíveis aos impactos negativos da pandemia. Esse esforço envolverá a coleta de dados para identificar aqueles que estão em maior risco durante uma crise, para compreender as razões de sua vulnerabilidade e para implementar mecanismos para protegê-los e apoiá-los. E a maneira como se registram os gastos públicos, sem reconhecer o valor do investimento no futuro, precisa ser mudada para fazer com que os governos invistam de fato nos sistemas de saúde pública.

São necessários, também, mecanismos para identificar ameaças futuras. A formação de conselhos intergovernamentais com tal escopo é fundamental, com pesquisadores renomados de ampla gama de disciplinas, de forma a compartilhar inteligência, evitar riscos e desenvolver respostas coordenadas para qualquer crise futura. Os ministros de finanças deveriam estar engajados em tal desafio e os governos participantes devem investir mais na infraestrutura de saúde pública. Cumpre testar a resiliência dos sistemas de saúde, mas também a resiliência dos bancos deve ser levada em conta. Enfim, recursos precisam ser efetivamente mobilizados quando se fizerem necessários.

Propõe-se ainda um Conselho de Saúde Global, reunindo ministros de saúde e finanças do G20 e de alguns outros países, o FMI, o Banco Mundial e a OMS, esta última em posição-chave. Lembram que atualmente a OMS pode declarar um estado de emergência internacional de saúde pública, mas só pode agir com os recursos de que dispõe, que são limitados. Tal conselho global poderia reunir os recursos necessários para uma resposta global eficaz, porém como já aconteceu com o Conselho de Estabilidade Financeira criado pelo G20 após a crise financeira de 2008, os ministros das finanças apenas aguardaram que os governos minimizassem os riscos.

Mas nada disso funcionará se a pandemia COVID-19 não for controlada globalmente. E para isso é preciso simplesmente vacinar o mundo. A equidade da vacina só será alcançada se reconhecer a importância dos bens públicos globais, neste caso, o conhecimento – atualmente limitado por regras sobre propriedade intelectual e transferência de tecnologia – que permitiria o necessário aumento de escala da produção da vacina COVID-19 e os benefícios da imunidade populacional. Concluindo, é preciso aprender as lições da história e nenhum país pode fazer isso sozinho. Torna-se necessário um sistema multilateral baseado em regras em que todos reconheçam sua interdependência neste pequeno planeta e ajam de acordo com isso.

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Em suma, o artigo já fala de um período pós-pandêmico e da necessidade de se organizar, através dos governos, recursos e processos para poder orientar ações e vencê-lo. Evidentemente, o modus operandi de um governo negacionista, avesso à ciência, incapaz de planejar ou pensar no futuro além de 2022 e no mais bastante irresponsável em todas as suas ações, não só na saúde como em outras áreas, já mostra bem o baixo alcance de propostas desse tipo no Brasil atual.

“Aprender com crises anteriores”, um dos pontos de reflexão destacados no texto é algo que também passa longe das ideias (?) dos tomadores de decisão em Brasília, nos tempos atuais. Da mesma forma, a geração de consenso e a busca de apoio político que não seja aquele que depende de manobras orçamentárias e do foco em interesses clientelistas de deputados e senadores “da base”.

“Uma compreensão clara da ameaça”: isso é algo completamente diferente de considerar a Covid apenas como “gripezinha” e espezinhar diária e publicamente sobre as medidas para sua detecção e controle.   

A relação entre Saúde, Meio Ambiente e Agricultura, destacada no texto, na verdade já acontece de fato no Brasil, só que para o mal, combinando negacionismo, protelações, foco no interesse econômico, desmonte regulatório, desvios de objetivos e incompetência geral dos agentes. Além de abertura total das porteiras para a boiada passar.

Adesão das autoridades da Economia à pauta anti-Covid: as ações concretas de Paulo Guedes neste campo dispensam comentários. Da mesma forma, ações solidárias no âmbito internacional.

Em suma, como dizem textualmente os autores: “resultados mais desejáveis provaram ser ligados à liderança e a políticas baseadas em evidências, em vez de ideologia e preconceitos”… E pelo visto, tudo o que deveria ser feito foi feito ao contrário aqui na Pátria Amada

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Leia o artigo completo:

A new strategy for health and sustainable development in the light of the COVID-19 pandemic. https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)01995-4/fulltext

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